Elas Contam e a escrita no feminino…

sábado, 31 de março de 2012
A propósito do mês de Março, mês da mulher, a Associação Cabo-verdiana em Lisboa, realizou um interessante ciclo de actividades culturais em que foram ouvidas conferências sobre a escrita literária e científica no feminino e em que também homenageadas, mulheres escritoras.

Neste âmbito, fui convidada pelo Coordenador cultural da referida Associação, o poeta José Luís Hopffer Almada para um dos painéis constantes do ciclo de palestras, para falar sobre a escrita de Maria Helena Spencer e apresentar a colectânea «Elas Contam…».

Devo esclarecer que a referida colectânea foi publicada e apresentada na Praia, em 2008, de modo que se tratou mais de uma representação, embora para uma audiência diferente.

Não tive a pretensão de esgotar ou de incluir todas as contistas, apenas pretendi no livro ter uma amostra mediana das nossas mulheres contistas.

Com efeito, a ficção que nos ocupou neste volume foi o conto literário, herdeiro afinal, em larga medida, do conto oral, o mais antigo se não dos mais antigos géneros literários que a humanidade conhece, anterior à própria escrita.
No caso desta colectânea são já contos classificados pela escrita literária, integrados como um dos géneros da Literatura.

São vinte e cinco os contos seleccionados e coligidos no volume, contos esses saídos da pena de onze Contistas diferentes na sua forma de contar, mas com alguns denominadores comuns que eu aliás notifico na Nota de Abertura do volume.

Nesse meio tempo, muita coisa aconteceu entretanto; algumas boas como possivelmente, novos contos publicados; outras nada boas, como foi o desaparecimento físico de três das autoras presentes na Colectânea, Maria Helena Spencer, Leopoldina Barreto e Maria Margarida Mascarenhas. Sobre esta última Contista, transcrevo uma passagem da carta que dela recebi, quando eu estava ainda a organizar o volume, a concordar com a proposta da resenha biográfica que figuraria na Colectânea e com a escolha dos Contos. «(…) Achei curiosa a selecção que não tem sido dos mais referidos, mas que devido às malhas que o tempo tece, serão os que se encontram mais sintonizados com a MMM de hoje. A condição feminina em Cabo Verde foi e continua a ser um factor de indignação para mim (…). Fim de citação.

Qual terá sido o «mobile» que me levou a distinguir Contistas, mulheres?
Ora bem, já repararam, que as correntes literárias nacionais são masculinas? Vejam, por exemplo: «Claridade», «Certeza» sempre no masculino em termos de autores.

Costumo observar isto meio a brincar, meio a sério… Poderia até citar dois casos que eventualmente exceptuarão a regra: o de Orlanda Amarilís que vem da Academia «Cultivar» do Mindeloe de onde saíram quase todos os escritores e poetas do movimento «Certeza» os quais escreveram e publicaram quase tudo, nas décadas de 40 /50, do séc. XX. A nossa Contista aproxima-se dos participantes do referido movimento literário, mais em termos históricos ideológicos, do que em publicação coeva, uma vez que ela só publicaria os seus contos na década de 70. O outro caso sim, foi de paridade, o da poetisa Yolanda Morazzo que participou e publicou os poemas, ao lado da contra parte masculina no «Suplemento Cultural» (do Boletim Cabo Verde) em 1958.

Porém, garanto-vos que não me norteou qualquer motivação com sentido de exclusão, ou seja a oposição feminina versus masculina em termos de escrita literária. Não, não foi este o motivo ou o “animus” fundamental que conduziu a reunião dos Contos.

Foi mais um reconhecimento de que as mulheres contistas deviam ser distinguidas num conjunto que valorizasse (passe a pretensão) o seu trabalho ficcional.

Os Contos presentes na colectânea espelham afinal, mais de uma geração de mulheres contistas. Cada uma na sua singularidade, com o seu estilo e mais do género “cada um(a) é seus caminhos” tomando de empréstimo um verso do poeta português António Gedeão, são aqui conclamadas e reunidas num cruzar e num inte-cruzar contínuo das suas heranças sociais e culturais para narrar histórias várias. Fundamentalmente, histórias da condição humana, com algum realce para a de mulheres. Tudo isso com arte de ficcionista.

A narração de cada história como que remete para/e sintoniza o leitor no universo das ilhas, universo esse reflectido na intertextualidade cultural, com as suas marcas de época, de tempo, de ambiências sociais humanas e do tempo histórico do Arquipélago, confluindo de modo particularizado no texto de cada uma das autoras.

Também vale dizer, que se pretendeu, com a selecção dos contos, aflorar interrogativamente algumas hipóteses, tais como: até que ponto convergem tematicamente os contos escolhidos? Em que consiste esta eventual convergência? O ponto central das histórias aqui reunidas versa a mulher? A condição da mulher entre nós? Apenas isso? Ou as histórias são mais abrangentes? Observam o mundo das ilhas dentro e fora delas. Creio que se verificam todas essas condições nos contos selecionados.

Outra questão que se me pôs sempre de forma interrogativa, serão estas escritoras ou parte delas “parentes,” “próximas” afastadas da Claridade? Da Certeza? Comungam elas dos mesmos caminhos, credos, e tons perseguidos e percorridos por outros contistas cabo-verdianos anteriores ou, pelo contrário, elas serão outra voz? Uma voz à parte? Uma voz diversa? Diferenciada na sua maneira de narrar? Foram algumas das questões que me ocorreram quando coligia os contos.

O critério da ordenação dos Contos obedeceu ao ano da publicação, isto é, do mais antigo ao mais recente incluído na Colectânea. É assim que o leitor tem como mais antigo o conto intitulado: Num Baile de Maria Adelaide das neves, retirado do Almanaque de Lembranças, publicado em 1889.

Depois seguem-se os contos de Maria Helena Spencer, Maria Margarida Mascarenhas e Haydeia Avelino Pires, dados à estampa no antigo Boletim Cabo Verde das décadas de 50/60 do século XX, cruzando caminhos com os Contos de Orlanda Amarílis dos anos setenta, de Maria Isabel Barreno e os de Fátima Bettencourt, de Dina Salústio, Ivone Lopes e de Leopoldina Barreto dos anos noventa e indo até aos da Camila Mont-Rond, publicados em 2001.

Voltando ao título deste escrito e para finalizar, direi que afinal, há já um longo arco do tempo que “Elas contam,” escrevendo sobre as gentes das ilhas, de fora delas e sobre as gentes das ilhas vivendo nelas.

As mágoas da D. Lú…

quarta-feira, 28 de março de 2012
Aqui há dias, num Domingo qualquer, procurava eu um salão de cabeleireiro pois, sentia-me necessitada de melhor arranjo exterior…

Bem sei que o Domingo é dia santo e de descanso para nós cristãos. Mas guardava uma secreta esperança de que haveria de encontrar um aberto e perto de casa, em Oeiras. Eis que vejo um. Entrei e a dona, cabeleireira de profissão, uma patrícia. Mais precisamente oriunda da região do Tarrafal, Santiago. Aliás, como a maior parte dos imigrantes cabo-verdianos que aqui vivem e trabalham em Oeiras.

Conversa vai, conversa vem, estabeleceu-se uma boa empatia entre as duas e a Lú, assim se me apresentou, contou-me como cá chegou…

Corria o ano de 1974, mais precisamente o mês Julho durante a conturbada fase de transição para a independência das ilhas de Cabo Verde com os mandantes do PAIGC e os militares a fazerem prisões a homens que eventualmente, estivessem contra a unidade Guiné, Cabo Verde, não obstante muitos se tivessem declarado ser pela independência. Aliás, do mesmo modo que também prendiam os considerados latifundiários, não alinhados com eles, retirando-lhes as terras. Foi um período histórico bem confuso e de muitos desmandos.

Ora bem, o pai da nossa cabeleireira - esta na altura com treze anos - era empregado/trabalhador, nas então propriedades do conhecido Eng. Almeida Henriques, em Santa Cruz. O grande leito da Ribeira Seca, terrenos junto a foz, de frondosas e belas bananeiras que se vêm extinguindo, com escassos vestígios nos dias de hoje.

E continuou a minha narradora:

Uma manhã de Julho do referido ano, saiu o progenitor para ir trabalhar como era a sua rotina diária. Quando o filho mais velho, ao meio-dia, lhe foi levar o almoço a mando da mãe, soube que o pai havia sido preso nessa manhã. Preso porquê? Era a angustiante interrogação posta pela família. Por trabalhar para o patrão. Apenas isso. Fora a justificação dada.

Segundo a minha relatora, foram tempos de grande sofrimento, de enormes privações em casa e em que ela via a mãe a chorar diariamente, os oito irmãos menores, ela incluída, sem o amparo e sem o sustento do pai.

Enfim, um quadro trágico que a marcou, segundo ela, para o resto da vida…
Os dias foram-se arrastando, até que numa certa noite dos finais do mês de Maio do ano seguinte, uma pessoa amiga do pai lhes bateu à porta para comunicar que iriam juntar-se ao progenitor em Portugal e que se preparassem, pois ele havia-lhes comprado a passagem e que deveriam partir na madrugada seguinte para o Sal e aí apanhar o avião para Lisboa. Tudo muito à pressa. Com muita barafunda. Recorda-se ela de que nessa noite já não dormiram. A casa encheu-se de vizinhos e de familiares em alto choro como se a partida e a “morte” os tivessem visitado ao mesmo tempo…

Anos transcorreram. A família fixou-se em Oeiras. A minha cabeleireira só voltou à terra natal, trinta anos depois.

Finalizou as suas mágoas passadas com duas notas tristes que guardadas lhe ficaram: a primeira, o facto de o pai pouco tempo depois de ter sido libertado, já em Portugal para onde os prisioneiros do já considerado, Tarrafal II, haviam sido entretanto transferidos, ter adoecido e falecido alguns meses depois da reunião da família; a segunda, a angústia que lhe ficou pois queria agradecer, pessoalmente, o benfeitor que os tirou de lá para os juntar ao pai. Só que quando ela retornou a Santiago e por ele procurou, teve o triste conhecimento de que o seu bom “samaritano” já não pertencia a este mundo.

Retalhos de vida? Sim. Mas não deixam de ser também pequenas páginas da nossa História mais recente.

Fenómenos de descrioulização? Ou de novo o “Crioulês”?

quarta-feira, 7 de março de 2012
Aprecio o programa televisivo «Conversa em Dia» conduzido pela Jornalista Margarida Fontes. Regra geral, quando o tema me interessa e a ocasião propicia, vejo-o e escuto-o.
Aqui há dias foi uma dessas ocasiões. O tema versava “Língua Materna” e bem intencional, pois que, se assinalava com o referido programa, o Dia Internacional da Língua Materna.
Dos três convidados, dois são conhecidos especialistas do nosso Crioulo cabo-verdiano e o outro convidado, embora do ramo das ciências ditas exactas e que se apresentou nessa qualidade em que a transversalidade linguística e outras, também faculta. Aliás, no dizer de Georges Mounin, a Linguística é: «a ciência – piloto das ciências humanas» e que interpela etnólogos, filósofos, sociólogos, psicanalistas, estetas, críticos, entre outros cientistas.
De qualquer forma, e em relação a este último participante do painel do programa em apreço, é na minha perspectiva, igualmente, um estudioso e um atento observador dos fenómenos por que passam as Línguas cabo-verdianas.
Apraz-me registar que qualquer deles esteve bem nas posições expendidas. Destas, algumas, já expectáveis, outras, interessantemente em mudança de paradigma conceptual, o que só abona o estudioso das questões complexas, diversas e mutáveis que desafiam as nossas duas línguas vivas, faladas e escritas entre nós.
Em jeito de resumo, diria que cada um dos intervenientes defendeu posições a sua opinião (ideia, pensamento) com a lógica e o conhecimento respeitáveis de quem sabe e se debruça sobre a matéria.
Mas eis que o meu interesse de ouvinte, acabou por se centrar, surpreendentemente, no modo como se expressaram – falaram em Crioulo – os dois especialistas do Crioulo, já que o outro convidado do programa, aludindo ao bilinguismo de que se compõe estas ilhas, fez questão em se expressar nos dois veículos linguísticos, (o português e o crioulo).
Efectivamente, pude degustar algumas passagens fabulosas, saborosas, em que o já considerado “pecado” da descrioulização ou, o que jocosamente, chamamos de “crioulês,” estiveram bem presentes e fizeram-se ouvir com intensidade em toda a sua extensão.
Digo, “considerado pecado” de descrioulização, pois que para mim, se trata tão-somente de um fenómeno natural no processo diacrónico da prática alargada, sobretudo, da oralidade do crioulo cabo-verdiano deste tempo de globalização. Resultado natural também do seu enriquecimento e do seu apetrechamento vocabulares, de rápida e constante troca, de contaminação e influência comunicativas, de maior alfabetização e literacia do próprio falante do crioulo. Tudo isto vem fazendo com que a aproximação à matriz da língua portuguesa do século XX/XXI seja notável!
Para encurtar caminho, tomo a liberdade de aqui transcrever, com a devida vénia aos seus autores, procurando enquadrá-las contextualmente, algumas dessas passagens escutadas e absorvidas, durante a exposição oral dos dois Linguistas do Crioulo cabo-verdiano, em defesa da oficialização do mesmo e da pertinência do ALUPEC em se constituir seu representante gráfico, entre outras matérias afins.
A determinada altura, um dos participantes, questionado sobre os focos de resistência e de alguma rejeição que existem sobre a aceitação do ALUPEC, respondeu em crioulo, da forma que a seguir transcrevo:
« (…) Em trinta anos de independência é o único projecto de escrita de incidência etimológica e de base fonológica, sistemático, consistente e abrangente…Tudo estudo académico qui fazedo utiliza Alupec, o que ta demonstra que é reconhecido o valor e a funcionalidade de alupec enquanto consistente e sistemático pa aprende todas as regras de escrita (…)» (Fim de transcrição).
Mais à frente, interrogado sobre as causas de tão pouca produção literária em crioulo, o mesmo inquirido, sempre em crioulo, explicou-se:
«(…) ‘m ta tomá palavra apenas pa fazê um ponte sobre o porquê que tem tão pouca produção literária em cabo-verdiano. Se o português e crioulo desenvolvessem harmoniosamente ca tinha esse problema (…)» (Fim de transcrição).
Mantendo este registo de oralidade em crioulo, uma outra intervenção a propósito de como a UNI-CV, vem praticando a didáctica do ensino do cabo-verdiano, e também como celebrou a efeméride, (Dia da Língua Materna) eis o que se ouviu da outra participante:
«Em termos de proposta, nu tem um programa amplo com um metodologia adequada (…) É claro que o processo bilingue é transitivo, no caso de Cabo Verde até que não seria errado (…) Nesta fase é mais a nível académico qui tem que ser feito um experimentação pa sabê se ALUPEC é eficaz ou não. (…)«…» A UNI-CV tem um vasto programa e teve a iniciativa de convida outras universidades para diversas actividades, durante o dia. Para além disso, à tarde nu ta retôma com uma conferência linguística, e em S. Vicente nu tem previsto um Mesa-Redonda. (…)” «Nu tem como projecto mais recente, um projecto de Língua gestual, aliás é compreensível, digamos, nu tem já um comunidade razoável de jovens com necessidade de língua gestual, pa integra na mundo de trabalho (…)» (Fim de transcrição).
Voltando ao primeiro inquirido crioulista, a propósito das questões que se levantam a esta problemática, ele avançou:
(…) O próprio Ministério da Educação mestê faze uma reflexão profunda. O problema fundamental é os professores. (…) Há necessidade de efectivamente se fazer um estudo a curto, a médio e a longo prazo» (…) (Fim de transcrição)
Creio que as falas escutadas, e aqui transcritas, não carecem, no meu entender, de qualquer tradução para um falante da língua portuguesa.
Acresce que a oralidade do Crioulo de Cabo Verde, na boca do cabo-verdiano com significativa escolaridade, apresenta-se por vezes, como que “decalcado” da língua portuguesa actual – quando se trata de matéria técnica ou científica – em que apenas a entoação, o “sotaque,” alguns eventuais elementos de ligação frásica, de conectores conjuncionais, preposicionais e enfáticos nos remetem para o crioulo.
É um fenómeno deveras interessante!
Mas atenção: Trata-se aqui neste escrito, apenas – volto a repetir – ressaltar um fenómeno há muito previsto e esperado na evolução da língua viva e materna dos cabo-verdianos.
E mesmo, mesmo a fechar coloco a seguinte questão: Será que a representação gráfica, isto é, a escrita do nosso Crioulo, pretendida com o ALUPEC estabeleceria a fronteira diferenciadora entre as duas Línguas da mesma família e poria termo à “malfadada” descrioulização?

THE RULE OF THE LAW – O PRIMADO DA LEI

sábado, 3 de março de 2012
Não sou assíduo de nenhum jornal digital. Isto faz com que me escapem várias notícias importantes devido a provisoriedade das suas exposições. Presumo que alguns textos não resistem mais de 24 horas. E, sinceramente, são tantos os jornais digitais (incluo blogs) que não tenho tempo para os visitar diariamente todos e muito menos suficiente curiosidade intelectual para me recorrer de forma sistemática aos arquivos, o que só faço quando alguém mo recomenda.

Mas tive a oportunidade de ler um texto que me causou algum desconforto não, certamente, pelo discurso escorreito e bem articulado (também já causa estranheza!) mas pelo seu conteúdo impactante e algo vergonhoso para os visados pela frontalidade vernácula com que é apresentado. Julgo que a questão não é nova – uma casa (vivenda) não se constrói em dois dias.

Por motivos que acima aludi e pelo meu distanciamento voluntário (não afastamento) da coisa política ainda não tinha tido conhecimento do facto. Trata-se da mensagem do editorial do “Liberal “ de 23 de Fevereiro último, sobre um assunto, ao que parece, recorrente para esse jornal.

Antes de expor as razões do meu assombro vou partilhar com os eventuais leitores deste meu texto que ainda o não tenham lido (o editorial), apenas um parágrafo cujo conteúdo me causou uma profunda indignação pela passividade desta sociedade, sobretudo a política, pela inépcia dos principais actores políticos designadamente da oposição e pelo cínico e deleitoso sorriso que vislumbro nos infractores pela virtual ausência de instrumentos legais (não éticos nem políticos) para o seu combate a que se acrescem a negligência e o parcialismo das (in)competentes autoridades judiciais.

Vou citar: “Como já tivemos ocasião de referir [“Democracia contra salteadores”], parece que na 26ª democracia do mundo se convive bem com a trapaça, a corrupção e mesmo a mais descarada roubalheira. Aludimos, então, ao caso do próprio Primeiro-ministro que, descaradamente, ocupou terreno do Estado, aceitou como prenda uma casa e utilizou fundos do tesouro para acorrer às dificuldades financeiras de uma “amiga especial”, entre outros expedientes nunca justificados e publicamente conhecidos. E isto ao mesmo tempo que JMN tem sempre a boca cheia de supostos princípios éticos e auto-elogios de seriedade.” (Fim de citação. O negrito é meu).

Como se não bastasse o conteúdo transcrito, o articulista refere-se também, na esteira deste estado de coisas, a outros protagonistas deste governo de que me escuso de abordar. Para o meu desgosto, chega-me e sobra-me o Primeiro-ministro. Se ele o pode fazer porque não há-de um director-geral ou ministro fazer o mesmo? Receber como prenda apartamentos, carros ou mesmo milhões em dinheiro.

Parece que tudo é legal neste permissivo país no meio do mar semeado.

Confesso ter tido, e ainda a tenho, dificuldade em acreditar que o PM do meu País tenha recebido de PRENDA (!!!) uma casa, ainda por cima construída em terreno do Estado. Pela maneira como o assunto é posto, enrolado em “corrupção”, “trapaça”, “descarada roubalheira” entre outros enfeites, não posso imaginar que tenha sido de um parente muitíssimo próximo que lha ofereceu por um dos seus aniversários mas provavelmente de um “amigo” como sinal de agradecimento por um relevante serviço que lhe tenha prestado ou de que espera ele venha a prestar. Ele há-de haver uma razão, real ou conjecturada, bastante plausível. Há prebendas que só os nossos pais (para eles a justiça impõe regras) ou irmãos ricos estão autorizados a dar-nos.

Não deixo de me inclinar perante a inteligência, a “sagesse” e a generosidade do “benemérito” nem de me acabrunhar com a ingénua ingenuidade do meu PM em pensar que também nós – a sociedade civil – achamos que se trata de um acto inocente, de uma desinteressada “prenda”.

Mas se a prenda pode ser “legal”, o que eu, sinceramente, duvido, já a ocupação, por um PM, de um terreno do Estado, pertencente a uma instituição, para a construção de casa própria configura uma flagrante ilegalidade, um abuso de poder.

É o que dá a impunidade? Pessoas julgarem que estão acima da lei em países que se dizem democráticos e se consideram estados de direito?

Quem é que já se esqueceu do célebre episódio de “dinheiro sujo”? O que é que lhe aconteceu? NADA.

E eu a lembrar-me que em pleno século XVII, um rei, Carlos I de Inglaterra, foi executado a mando do Parlamento por abuso de poder, por ignorar o primado da lei que impõe que ninguém, em circunstância alguma, esteja acima dela – The rule of de law. Isto sem referir, mais proximamente, à resignação compulsiva do Presidente Nixon pelas mesmas motivações.

De repente remeti-me aos alvores da 2ª república em que tivemos a visita de um ilustre político estado-unidense. Era secretária de estado uma pessoa que me é muito cara e que fora incumbida de “acompanhar” esse político.

Quando andava à procura de uma prenda condigna, em conformidade com o estatuto do convidado, foi avisada pela Embaixada dos EUA que o valor da prenda não podia ultrapassar os 50 dólares (!!!). Imagine-se, cinquenta dólares! Ao aludido político estava-lhe vedado, como tal, aceitar prendas acima desse valor…

Não me preocupo em saber se esse tecto foi alterado mas em registar com muito agrado a sua existência, ainda que o seu valor fosse cem vezes superior.

É claro que no nosso ordenamento jurídico não pode existir um “plafond” nos mesmos moldes qualquer que seja o valor. Os nossos legisladores, estes, parece, preferem o vazio, espaço a que atribuem a sinonímia da liberdade, dando ao político a faculdade de usar a sua sensatez ou o seu livre arbítrio, para "distinguir" entre uma simbólica lembrança e um subreptício suborno. E a ocasião não fará o ladrão, contrariando o ditado popular, mas revelá-lo-á, seguramente.

Isto, porque alguns dos nossos influentes governantes, felizmente poucos, enredam as suas escabrosas maquinações em teias fictícias a que chamam “diplomacia” e, por vezes, mais pomposamente “diplomacia económica” no sentido de obter vantagens financeiras pessoais, alimentar a clientela e satisfazer as suas mesquinhas aspirações de poder.

Quanto à casa do PM, a ser tudo verdade – nesta fase muito poucas são as razões para se duvidar – e tendo sido construída em terreno de Estado, espero que ele siga as nobres peugadas do seu mais ilustre conterrâneo vivo, que ao deixar a presidência da república em 2001, doou, de imediato, todas as prendas que recebera ao longo dos dez anos no desempenho dos dois mandatos que o povo lhe conferira, ao concelho de Santa Catarina para a criação de uma casa-museu.

É assim que procedem os verdadeiros Homens de Estado.

A. Ferreira