A MUDANÇA E O ESPANTALHO DA PERSEGUIÇÃO

quinta-feira, 30 de junho de 2016

Pode daí não advir mal algum se alguém do PAICV tenha sido nomeado para um cargo dirigente pelo actual governo apoiado pelo MpD não obstante as eleições tenham sido ganhas sob o signo de MUDANÇA. É uma prática que não só não é virgem como constitui até tradição em democracias mais maduras e avançadas partilhar determinados cargos com a oposição de alternância governativa, equilibrando-os, em caso de conselhos de administração, pelo número de administradores e pela distribuição de pelouros. Pessoalmente, estou é mesmo interessado na competência da pessoa para o desempenho da função, sobretudo quando se trata de funções “meramente” técnicas.

A minha posição pessoal apoia-se no facto de presumir, que para funções de forte componente política, nenhum homem intelectualmente sério e honesto com profundo respeito pelo seu pensamento e pelo seu projecto de sociedade aceitaria permanecer no lugar para que tenha sido nomeado ou indigitado pelo governo anterior (mais) pelas suas simpatias políticas ou mesmo militância, isto é, pelas suas convicções ideológicas e confiança política do que (apenas) pela sua competência específica para o desempenho desse cargo; ou, mantendo-se com as suas convicções políticas, aceitar um convite de sentido contrário para execução das mesmas funções. Seria violentar-se, ou, então, o que é pior, fazer o papel de infiltrado ou, como sói dizer-se, de submarino. Contudo, como também se costuma dizer, cada um sabe com que linhas se cose.

O que na realidade, me parece uma posição ao mesmo tempo oportunista e desrespeitosa para a nossa ignorância, é a justificação que se ouve dos dois lados – governo e o nomeado – para esta “promíscua” coabitação.

Do lado do Governo, quando inquiridos pelos seus correligionários mais zelosos, que terão embarcado no voto de mudança, vem uma falaciosa, ingénua ou pueril justificação: “Para termos os votos que tivemos, muitos paicvistas terão votado em nós.” Uma lógica que se poderia aplicar a qualquer governo com maioria absoluta na Assembleia.

Dito dessa forma soa a falso. Ou é ingenuidade, ou configura um menor respeito à nossa ignorância o que não parece ser menos grave. O que sobressai é a hipótese absurda de que todos os eleitores são militantes de partidos, ignorando deliberadamente os “independentes” flutuantes e os novos que se formam ao longo de um mandato e que só exercerão (manifestarão) a sua “simpatia” quando tiverem 18 anos.

Se o MpD não se considera ainda um partido devidamente consolidado, é um problema que se põe aos seus militantes e que não me parece resolver-se com a actual direcção que luta com uma indefinição ou, se calhar, com uma deriva identitária, assente no carácter errático das suas decisões e tomadas de posição políticas.

Mas o PAICV é um partido bem definido que funciona consistentemente de acordo com as suas convicções, estatutos e inquestionável disciplina partidária. É preciso não confundir isto com a existência de eventuais facções ou correntes internas que, respeitando as regras, só enriquece a sua democracia interna. Que ninguém se iluda: estamos no século XXI perante um partido de organização marxista.

E pensar que um, um só militante do PAICV tenha votado na sigla MpD é um exercício, a meu ver, de pura heresia política. Não confundir as eleições legislativas, totalmente partidárias, com as presidenciais!

Façamos um pequeno exercício com as eleições legislativas, exceptuando as primeiras (1991) não pela atipicidade dos resultados – maioria qualificada – mas pelas circunstâncias políticas peculiares que as envolveram e que as tornaram transitórias e redutoras uma vez que a emigração não votava, o que só viria a acontecer graças ao MpD com a Constituição de 1992.

ANO (Legisla-tivas)
Nº de deputados
Nº de Votos
Nº de Eleitores
PAICV
MpD
Outros
MpD
PAICV
 
1996
22
49
1
 
 
 
2001
40
30
2
 
 
 
2006
41
29
2
 
 
 
2011
38
32
2
94 674
117 967
298.567
2016
29
40
3
122 881
86 078
350.388
Média
34
36
2
 
 
 
DP
9
9
1
 
 
 

:

Olhando para o quadro e numa análise grosseira e simplista – muitos outros parâmetros (omissos) cruzados exigiriam um estudo mais cuidadoso – concluímos:  

- A média de deputados de cada um dos partidos, desde a entrada em vigor da actual Constituição, é sensivelmente igual: 34 para o PAICV e 36 para o MpD; o pequeno desvio observado foi provocado pela maioria qualificada de 1996.

- Cada um desses grandes partidos tem garantido um eleitorado fixo correspondente a cerca de 29 (mínimo) deputados, dado que os resultados de 1996 fogem à normalidade (estatística), em democracia – maioria qualificada;

- Os restantes (±)12 deputados uma vez que a média dos pequenos partidos é de 2, serão os verdadeiros campos de acção dos partidos nas campanhas. Este número, não pertence, obviamente, a nenhum dos partidos (ou pertence a todos) e será disputado no terreno dos novos eleitores, mais os eleitores flutuantes sem cores partidárias que votam de acordo com as suas conveniências mais imediatas movidas pela propaganda eleitoral ou por outras causas.

- Nas últimas eleições – 2016 – votaram mais cerca de 52.000 novos eleitores do que nas eleições anteriores (2011);

O MpD ganhou, nestas eleições de 2016 mais cerca de 28.000 votos do que nas eleições anteriores; enquanto o PAICV perdia cerca de 32.000 votos e a UCID somava mais cerca de 6.000 votos. Os ganhos do MpD e da UCID juntos ((±34.000) são superiores à perda do PAICV ((± 32.000).

Concluir linearmente, num universo de 52 mil novos eleitores mais os eleitores sem partido (flutuantes), da transferência de votos do PAICV para o MpD ou que a vitória do MpD é fruto de gente do PAICV que votou no MpD, é, no mínimo, muito precipitado, mau grado se possa admitir o surgimento de um ou outro caso isolado sem qualquer relevância.

Quanto ao argumento dos nomeados que se justificam que estão ao serviço de Cabo Verde, esquecem que todos estão ao serviço de Cabo Verde mesmo os mais humildes servidores e que não é nem pode ser isto que está em causa.

O que suscita forte reflexão é a assumpção, por parte deles (nomeados), das novas orientações, das novas abordagens, em suma, do novo Projecto Político para o desempenho da função. É ainda a MUDANÇA… Como disse um analista político o que é que se pode esperar das mesmas pessoas, nos mesmos lugares com as mesmas leis que o actual Partido político que apoia o Governo rejeitou nas votações parlamentares?

A mim não me repugna ver quadros da oposição em funções dirigentes desde que essas funções sejam eminentemente técnicas e essas pessoas tenham já provas dadas – não amiguismo – da sua competência nessa área. Nesta linha, até posso compreender no aparelho do Governo a função de assessoria (assessores técnicos) em determinados sectores por gente (soft) de oposição. O que já não compreendo e que se me afigura uma autêntica quadratura do círculo é a de “conselheiro” oriundo da oposição. Um conselheiro tem associado uma forte componente política de sintonia não só de carácter ideológico como de meios, metas e objectivos com o aconselhado. A menos que as políticas para esse sector sejam rigorosamente as mesmas do governo anterior.

Mas o que me faz mesmo impressão e, como se costuma dizer, me tira do sério, é a cena de vitimização dos quadros do PAICV quando afastados. Depois de quinze anos a partidarizar toda a administração do Estado, no que é publicamente confirmado pelo seu próprio chefe, dizem-se agora perseguidos porque foram afastados, substituídos. Imagine-se, PERSEGUIDOS! A obsessão de que são os donos da terra e que só eles poderão governar, não os deixa ver de que hoje são OPOSIÇÃO e que este governo tem toda a legitimidade para fazer as mudanças que entender no quadro da lei e a coberto do voto popular. Mas a cena de vitimização tem de facto outro propósito: a de condicionar, intimidar o MpD e o seu Governo a não ir mais longe do que a simples substituição. A não denunciar as irregularidades, e os eventuais crimes existentes e praticados na sua gestão.

Pois bem, o Governo nada tem a temer com as suas mudanças e tem a obrigação de informar a população do estado de cada sector e agir em conformidade (sob pena de cumplicidade) para a sua salvaguarda e para a defesa do erário. Os gestores nomeados não têm que se envergonhar em ser MpD ou seu simpatizante, tomando atitudes gratuitas e folclóricas porque não é isto que caracteriza uma gestão, mas assumi-lo (o MpD) firmemente quando for necessário. Noblesse oblige!

    A. Ferreira


O texto que se segue, recebi-o há já algum tempo, enviado pelas mãos amigas de Valdemar Pereira, que sei leitor assíduo destes e de outros assuntos.
Com a devida vénia à autora e ao Jornal português «Expresso», aqui o reproduzimos pois que é de interesse para a leitura daqueles que  cépticos e contrários estão relativamente ao Acordo - ortográfico - do nosso desacordo...
 

 
 Nove argumentos contra o Acordo Ortográfico de 1990

Manuela Barros Ferreira *

Qualquer crítica - e qualquer defesa - que se baseie sobretudo em insultos não é crítica nem defesa: é mero desabafo. Não vale nada. Por isso apresento uma série de argumentos relativos à eficiência operativa do OA 90 e a aspectos de ordem linguística, educativa, sociológica, diplomática, económica e de preservação patrimonial que me levam a não concordar com a sua aplicação.

1. Argumento da pouca eficácia

O AO 90, em vez de diminuir o número de palavras que se escreviam diferentemente em Portugal e no Brasil, aumentou-o consideravelmente. Segundo um estudo de Maria Regina Rocha (que exclui três tipos de vocábulos), 2.691 palavras que se escreviam de forma diferente mantêm-se diferentes; apenas 569 que eram diferentes se tornaram iguais; 1.235 palavras que eram iguais tornaram-se diferentes e, destas, 200 mudaram apenas em Portugal, dando origem a soluções aberrantes como aceção, conceção, confeção, contraceção, deceção, impercetível..., enquanto no Brasil se continua a escrever acepção, concepção, confecção, contracepção, decepção, imperceptível, etc. (cf. “A falsa unidade ortográfica”, Jornal Público, 19.01.2013, retomado em http://ciberdúvidas.iscte-iul.pt/.)

2. Argumento de ordem fonológica

Uma das características da língua portuguesa falada em Portugal é a chamada “elevação das vogais átonas”, ou seja: para nós, a pronúncia das vogais “a” , “e” e “o” em posição tónica não é a mesma que a que têm em posição átona. Compare-se o primeiro “a” de “casa” com o de “casinha”: na primeira palavra o “a” é aberto, e na segunda o “a” é fechado. Compare-se o “e” de “mesa” com o primeiro de “meseta”: em “mesa” pronunciamos “ê”, em “meseta” o “e” é mudo. Mesmo que esse “e” desapareça da fala e digamos “mzeta”, continuamos a perceber que se trata de “meseta”. Dizemos “tolo” com “ô” mas em “tolice”, o “o” é fechado. Esta regra é de aprendizagem automática, desde a primeira infância. Existem excepções, por motivos etimológicos e de paradigma morfológico: caveira, dilação, especar, especular, padeira, relator, retrovisão e algumas mais. Algumas dessas palavras até costumavam, até certa altura, levar um acento grave para indicar que a vogal era aberta: pàdeira e rètaguarda por exemplo. Hoje ele só subsiste como indicador da junção do artigo “a” com a preposição “a” e com os demonstrativos aquele, aquela, aquilo (“Dei um bolo à Maria”, “Àquele nunca falo”). Em 1971 no Brasil e em 1973 em Portugal foi eliminado dos advérbios de modo, e assim “sòmente” e “fàcilmente” passaram a escrever-se “somente”, “facilmente”. Considerou-se inútil porque “os falantes da língua sabiam como se pronunciavam as palavras”. Foi talvez essa a primeira “facada” que os legisladores da língua deram na transparência que a escrita devia ter para quem o português não era a língua materna – como era o caso da maior parte dos nativos das colónias de então. Noutros casos subsistia porém o recurso a letras etimológicas, com a função de indicar que as vogais que as precediam eram abertas. É o caso de “nocturno”,“espectador”, “tractor”. Sem esse auxílio, a regra de fechamento da vogal que não tem acento tónico tende a aplicar-se. É por isso que o AO 90 induz a que se leia “nuturno” ou, quando muito, “nôtúrno”; “espetador” como um derivado de “espeto” e “trator” com “a” fechado, vocábulo que não existe. Quer dizer, o AO aumentou desmesuradamente o número das excepções a uma regra de pronúncia que permitia uma leitura intuitiva.

3. Argumento de ordem morfológica

Há um princípio básico de qualquer ortografia: a coerência morfológica. O AO 90, seguindo estritamente a produção fonética, exige que se escreva “os egípcios são os nativos do Egito”. Conserva-se, e muito bem, o “p” do “egípcio” porque se pronuncia, mas em “Egito” perde-se a ligação gráfica entre o nome do país e o dos seus habitantes.

4. Argumento de linguística histórica

A língua portuguesa é, como todas as línguas naturais, um produto da História. A nossa deriva maioritariamente do latim, tem muitas raízes gregas, muitas achegas vocabulares árabes, tem remodelações renascentistas, tem neologismos oriundos das nações até onde viajou e dos variadíssimos povos, objectos e ideias que aqui foram chegando através dos séculos. A escrita reflecte essa riqueza.

Sobretudo com o Renascimento, a nossa língua sofreu um impulso extraordinário. A partir dessa altura foram criadas ou recuperadas numerosas palavras com base no grego e latim. Não falemos nos termos da Botânica, Medicina, Biologia, Química, que não há lugar nem tempo para tamanha empresa. Falemos apenas de um processo: o da criação de palavras derivadas.

Se repararem bem, a coerência morfológica que mencionei acima, é coisa que aparentemente falha: as palavras derivadas muitas vezes diferem daquela que lhes deram origem. Por exemplo, “lunar” e “luneta” não derivam de “lua”, “pedal” não deriva de “pé”, “lacticínio” não deriva de “leite”, “nocturno” não deriva de “noite”. Todas estas (e tantas, tantas outras...) palavras foram criadas, não a partir da palavra portuguesa (que sofreu todas as evoluções que o tempo imprimiu à raiz latina), mas sim directamente a partir do étimo latino, recuperado por pessoas eruditas: “luna-”, “pede-“, “lacte-“, “nocte-“. Uma coisa é o ter-se a pronúncia do latim transformado por via popular, através dos séculos (perdendo o “n“, o “l” e outras consoantes sonoras intervocálicas, transformando “–ct” em “-it”, etc.) outra coisa é criar-se uma palavra nova, aproveitando, reciclando um étimo já longínquo para fazer frente às novas necessidades de vocabulário. Deste modo, muitas das nossas palavras derivadas conservaram o étimo latino a partir do qual foram criadas. Elas fazem parte do património da língua, veiculando uma dupla marca de origem: social (erudita) e temporal (tardia).

5. Argumento educativo

Como ensinar a uma criança que “soturno” se lê com “o” fechado, pronunciado “u” na maior parte do país, e a palavra “noturno” se lê com “o” aberto”? A resposta é fácil: não se fala no assunto e fica o caso arrumado. Como ensinar a uma criança que da palavra “noite” se formou “noitada”, mas que “noiturno” e “noitívago” não existem, o que existe para o AO 90 é “noturno” e a dupla grafia “notívago” e “noctívago”?

Não seria mais fácil escrever estas últimas com “ct” e dizer-lhe que são palavras entradas na língua por via erudita e não por via popular? E que, se elas, crianças, comeram papa “láctea”, esta é outra palavra também erudita, tal como “lacticínios” ? Escrever “laticínios” não remete para outra coisa a não ser para “lata”. Talvez a lata de leite condensado que se vende nos supermercados?

6. Argumento sociológico

Antes de 1990 já existiam duas grafias em Portugal: a norma de 1945, muito bem destrinçada e explicada em Prontuários Ortográficos; e uma grafia difusa, sempre em reconstrução e evolução - a das mensagens juvenis - caracterizada pela simplicidade extrema, minimalista, com consoantes isoladas representando palavras, sem pontuação, nem cedilhas nem tiles. Esta tendência não fez senão acentuar-se com a generalização do uso electrónico. É nesta situação dicotómica que se insere uma terceira forma ortográfica, a do AO 90. Os defensores da norma de 45 agridem verbalmente os defensores da de 90 e vice-versa. E os jovens? Uns são penalizados nas notas por escreverem à antiga algumas palavras-ratoeira; outros são menosprezados porque escrevem à sua, deles, moda “simplex”; e os que escrevem “à moderna” deixam de respeitar as edições existentes na biblioteca da sua escola e inclusive invocam o pretexto da “confusão gráfica” para deixarem completamente de ler.

Se o AO 90 não é um erro sociológico, não sei o que será.

7. Argumento diplomático

O Acordo Ortográfico de 1990 tinha-se proposto unificar a escrita de todos os países de língua oficial portuguesa. Este objectivo não foi conseguido. Portugal impôs unilateralmente uma grafia que não tem o acordo de todos .

Diz-se que o AO 90 foi feito, essencialmente, para aumentar as vendas de livros portugueses no Brasil. Para isso pretendia unificar a escrita. Não unificou. Temos, por exemplo, acentos agudos onde os brasileiros têm acentos circunflexos (fenómeno /fenômeno, o que corresponde a uma efectiva diferença de pronúncia); e eliminamos o “c” e o “p” que são pronunciados em palavras brasileiras e não o são nas correspondentes portuguesas. Por exemplo, no Brasil: respectivo, perspectiva, recepção; em Portugal, segundo o AO: respetivo, perspetiva, receção, embora os “e” destas palavras não se pronunciem como os de “repetido” e “recessão”.

Angola e Moçambique não assinaram o AO 90 (o que me parece um grande exemplo de bom senso, sobretudo se tivermos em conta o argumento que se segue). A opinião destes países de língua oficial portuguesa devia ter sido ponderada e tida em conta pelo governo português antes de avançar para uma “situação de facto” extremamente difícil de reverter.

8. Argumento económico

O que seria economicamente mais recomendável?

Adoptar como obrigatório o AO 90 em nome de futuras vendas de futuros livros, tornando obsoletas as bibliotecas existentes? Ou manter a escrita de 1945, com todo o enorme acervo literário e científico que produziu?

Leiamos as palavras da escritora moçambicana Paulina Chiziene:

“Quantos dicionários Moçambique terá de comprar de novo? Quantos livros terá de mandar reescrever? Quantos livros de escola terão de ser refeitos, em nome de um acordo ortográfico? Será que vale a pena sacrificar tanto dinheiro dos pobres só para tirar um “c” e um “p” do que está escrito? [...] Penso que é um capricho tão desnecessário quanto caro”. (Tradutores contra o Acordo Ortográfico).

9. Argumento da preservação patrimonial

É natural que uma língua que se começou a escrever e ensinar há relativamente pouco tempo – por exemplo, o mirandês, no fim do século XX – não tenha qualquer obrigação de respeitar formas que os portugueses foram elaborando ao longo dos séculos. Porém a mim parece-me que todos nós, portugueses, que dispomos de uma língua escrita desde, pelo menos, D. Afonso II, temos obrigação de manter o mais possível as marcas históricas das palavras que até nós chegaram.

A grafia portuguesa já em tempos renunciou a algumas marcas históricas: por exemplo, o “ph” e os “ll” etimológicos (pronunciados “f” e “l”), dado que esse modo de escrever induzia a leituras erradas, e podia, por isso mesmo, ser descartado. Porém o AO 90 vai longe demais, ao afectar de modo evidente a leitura das vogais não acentuadas e a íntima conexão lógica que existe dentro de cada paradigma vocabular.

Ao modificar-se a escrita, com base numa (suposta) maior facilidade da sua aprendizagem, estabeleceu-se uma enorme confusão nessa mesma escrita e perdeu-se a possibilidade de jovens e menos jovens compreenderem os mecanismos de formação das palavras. Perdeu-se o nexo entre elas.

Para terminar:

Outra coisa ainda deveria ser tida em conta: ao renunciar de modo cego às marcas históricas, este “acordo” insere-se num movimento global de apagamento da memória e de negação da História. Terrível movimento, que cada dia se torna mais evidente e que deixará sem raízes, sem passado, uma série de povos, se não a maioria. E que já está deixando o mundo à deriva, presa dócil de todas as tiranias. Admiramo-nos do modo como estão sendo destruídos monumentos, museus, cidades, inúmeras etnias e línguas. Este desrespeito, este crime que hoje nos parece abrupto, começou devagar, por pequenas coisas, aparentemente insignificantes.

É inelutável? Será irreversível? Há quem diga que é demasiado tarde para recuar. Mas talvez ainda se possa fazer qualquer coisa. Mesmo este Acordo, que ainda não está instaurado em todo o mundo lusófono, é passível de emendas fundamentais.

* ex-investigadora do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa

 

 

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quarta-feira, 22 de junho de 2016

Porque estamos em período de exames; porque se trata de uma época muito particular para os alunos e para quem os tenha em casa a estudar; achei interessante e oportuno trazer ao leitor deste Blogue o presente texto  -  com a devida vénia ao autor, Henrique Magalhães, e ao Jornal «Público» de 22/06/2016 - pois que reflecte de forma verosímil, o “animus” de um aluno em provas finais. Mas afinal, são etapas necessárias na vida do estudante em processo formativo.
 

Se o exame de História tivesse rosto
 
Diário do aluno
Henrique Magalhães
 
Talvez o exame de História tenha identidade própria. Sorria quando vê a minha mão mergulhada em tinta e o meu pensamento a sufocar com a matéria como se estivesse imobilizado dentro de um oceano profundo, a segundos de se afogar. Ou talvez seja eu que estou assustadoramente cansado. Não consigo pensar em melhor metáfora para alcançar a maturidade do que esta prova.

É impossível conseguir bons resultados sem lutar e lutar contra aquela folha medieval e tenebrosa, sem suar, sem sentir uma cortante e gélida brisa na espinha ao ver as horas a acumularem-se no relógio e continuar trémulo e hesitante enquanto tento reflectir sobre três aspectos estruturantes do impacto da Grande Depressão e das prioridades económicosociais do regime nazi. A todos os redactores destes exames, um severo obrigado! Ainda ontem, olhei pela janela do meu quarto, num dos poucos segundos que tive para respirar no meio de todo aquele fumo de revoluções e contra-revoluções e tratados e conferências que suspiravam através dos milhentos livros e fichas espalhadas pela minha escrivaninha, e vi duas crianças a jogarem à bola com um carinhoso sorriso nos lábios. Desejei expulsá-las, porém, nesse momento, apercebi-me de uma melancólica verdade: eu já fui assim, despreocupado e cheio de energia. Estarei a ficar velho? Não! A culpa é da História. Penso para os meus botões: será que posso colocar no meu currículo que fiz o exame até ao fim? Independentemente da nota, será que ter sobrevivido a 15 páginas, quatro grupos e 700 anos de acontecimentos confinados em duas ou três folhas de teste é o suficiente para arranjar um bom emprego no futuro? Devia! Será que se, numa entrevista de trabalho, disser isto chamar-me-ão piegas? Provavelmente. No final da prova reparei que tinha as mãos sujas de tinta esferográfica e não consegui deixar de pensar que talvez isso tenha uma razão de ser. A cada letra que escrevi, a cada erro que cometi tracei um bocadinho mais do meu futuro, um bocadinho mais da minha pessoa. Qualquer que seja o nosso fado, enfrentaremos toda a história que está para vir com bravura. Agora descansemos, que também faz bem.

Aluno do 12.º ano, Secundária Rainha Dona Amélia, Lisboa
terça-feira, 21 de junho de 2016

Assinala-se o X ano da morte (2006) do escritor Henrique Teixeira de Sousa. Em jeito de homenagem a um grande nome das Letras cabo-verdianas, «Coral Vermelho» junta-se às efemérides evocativas, focando o perfil deste inesquecível contista e romancista que boa obra nos deixou.
 
Resenha bio-bibliográfica
 
1919 – Nasce na Freguesia de São Lourenço, na localidade de S. Domingos, na Ilha do Fogo, Henrique Teixeira de Sousa, filho do capitão de longo curso, João de Sousa, natural da Brava e de Laura Teixeira de Sousa, natural do Fogo.
1926-1930 - Instrução Primária em S. Filipe.
1931 - Preparatório para o Liceu.
1932-1938 - Estudos secundários no então Liceu Infante D. Henrique, na cidade do Mindelo.
1936 – Publicação do Conto «Tchuba é nós Governador» no Jornal Juventude, órgão dos estudantes liceais. No antigo 6º Ano do Liceu de Gil Eanes em Mindelo, S. Vicente.
1938 – Ingresso na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.
1945 – Conclusão do curso de Medicina.
1946 – Cursos do Instituto de Medicina Tropical, de Medicina Sanitária, da Universidade do Porto.
1946 – Ingresso no Quadro de Saúde do Ultramar, tendo sido colocado em Timor, como médico interno no Hospital central e Professor da escola de Enfermagem.
1947 – Publica no n.º 5 da Revista «Claridade» o estudo sobre: Estrutura Social da Ilha do Fogo em 1940.
1948 – Transferido para Cabo Verde e colocado como Delegado de Saúde da Ilha do Fogo, onde construiu e renovou  os actuais Hospital e Maternidade.
1949 – Publica no n.º 8 da Revista «Claridade»: Sobrados, Lojas & Funcos.
1950 – Inicia uma colaboração duradoira no Boletim “Cabo Verde” que só termina no último ano de publicação da revista, em 1964.
1955-56 – Frequenta em Marselha, França o II Curso para Formação de Médicos Nutricionistas para a África ao sul do Sahara.
1957 – Nomeado médico-adjunto da Missão Permanente de Estudo e Combate de Endemias de Cabo Verde e Presidente da Comissão de Nutrição de Cabo Verde. Torna-se membro titular da Societé Scientifique d´higiene alimentaire de Paris. Chefia a Delegação Portuguesa à III Sessão da Conferência Inter-Africana de Nutrição reunida em Luanda. Ainda no mesmo ano é colocado no Hospital de S. Vicente.
 
1958 – Participa na cidade do Mindelo no Colóquio sobre o Homem cabo-verdiano, sob  coordenação do Professor Almerindo Lessa. Igualmente participa no Congresso de Paludismo e Medicina Tropical em Lisboa, onde apresentou o trabalho: «Cabo Verde e a sua gente». Publicado em separata, pelas Edições Propaganda, Praia, Imprensa Nacional de Cabo Verde, 1958.
 
1959 – Participa em Lwiro (antigo Congo Belga) no Seminário de Nutrição.
 
1960 –Publica o futuro Conto «Raiva» no Boletim «Cabo Verde» nº 124 de Julho, sob epígrafe: Episódios verídicos da minha vida clínica.
 
1961/64 – Presidente da Câmara Municipal de S. Vicente.
 
1965  e seguintes – Médico do Hospital de S. Vicente.
 
1972 – Publica a Colectânea de contos, Contra Mar e Vento.  Editora Europa/América.
 
1972/73 – Deslocações profissionais periódicas à Ilha de S. Nicolau, onde inicia os manuscritos do futuro romance, Ilhéu de Contenda.
1973 – Nomeado Adjunto do Chefe da Repartição de Saúde e Assistência de Barlavento.
1975 – Pertence ao grande número de cabo-verdianos que deixa Cabo Verde por motivos que se prenderam com os tumultuosos e conturbados momentos primeiros, vividos com os anúncios da Independência do Arquipélago. Discorda do projecto de unidade Guiné/Cabo Verde do PAIGC e parte para Portugal onde fixa residência no Concelho de Oeiras e retoma a vida profissional.
1978 – Publica o romance Ilhéu de Contenda, pela Editorial «O Século». Aposenta-se e continua muito ligado à sua terra natal à qual dedica toda a sua produção literária.
1980 – Inicia e mantém por largos anos, uma colaboração de índole cultural, com o mensário «Terra Nova».
1981 e seguintes -  Reconcilia-se, faz as pazes, com o então governo e o regime de Partido único, agora PAICV. A forçada Unidade Guiné/Cabo Verde havia erodido com o Golpe militar na Guiné-Bissau(1980). São-lhe devolvidos os bens  então confiscados e nacionalizados no Fogo e em S. Vicente.
É também altura em que é frequentemente convidado pelo Governo de Cabo Verde, Ministério da Cultura e pela Associação de Escritores Cabo-verdianos. Desloca-se ao país amiudadamente. A última visita a Cabo Verde verificou-se nos finais de 2005). Iniciam-se em Cabo Verde, a partir de então, os prémios literários, as condecorações e as homenagens ao escritor que é Teixeira de Sousa.
1984 – Publica Capitão de Mar e Terra, romance – Publicações Europa – América.
1986 - Recebe o prémio «Claridade» pela sua obra, Ilhéu de Contenda, outorgada pelo Ministério da Cultura e Informação de Cabo Verde.
1987 – Publica Xaguate, romance, Publicações Europa – América.
1988 – Prémio «Jorge Barbosa» da Associação de Escritores Cabo-verdianos para o romance Capitão de Mar e Terra.
1990 – Publica Djunga, romance, Publicações Europa – América.
1992 – Prémio «Fialho de Almeida» da Sociedade Portuguesa de Escritores Médicos, para o romance Djunga.
1994 – Publica Entre Duas Bandeiras, romance, Publicações Europa – América.
1998 – Publica Na Ribeira de Deus, romance.
2005 – Publica Oh Mar de Túrbidas Vagas, romance.
2006 – Faleceu em Portugal, (onde residia desde 1975) a 3 de Março, vítima de atropelamento.