EMPURRAR OU NÃO O ROCHEDO DE SÍSIFO?

quinta-feira, 30 de abril de 2015
                 
Em memória da minha amiga Maria Margarida Salomão Mascarenhas,  contista e cronista, falecida a 8 de Janeiro de 2011, que comigo partilhou  muitas reflexões filosóficas sobre a condição humana.



Com a ilustração desta imagem, a minha amiga Maria Margarida fez-me destinatário de uma reflexão poético-filosófica, revisitando o absurdo da condição humana, na peugada de Camus (1). A fotografia permite-nos evocar a tortura de Sísifo, de que nos dá conta a mitologia grega. Tendo desafiado os deuses, Sísifo foi condenado a empurrar sem descanso um enorme rochedo até ao cume de uma escarpa, de onde rolaria por aí abaixo para ser de novo empurrado, e assim repetidamente por toda a eternidade. Os deuses entenderam que não há castigo mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança. E Sísifo não desiste, vai aí acima vezes sem conta apenas para rebolar de novo até ao fundo sempre que está prestes a alcançar o cimo. Albert Camus utilizou esta metáfora para sustentar a sua “filosofia do absurdo”, segundo a qual as nossas vidas não têm qualquer utilidade, não valendo mais do que a aparência ilusória do que criamos ou julgamos criar. E assim, perante uma vida inútil e sem sentido, para Camus a alternativa ao destino de Sísifo poderá ser o “suicídio”, ou seja, o fim de uma existência desprovida de sentido.
A minha amiga andava então a tratar-se de um carcinoma da mama que, infelizmente, a haveria de matar. Mas, mulher de uma estóica resistência e grande energia moral, arrostou com o sacrifício do penoso tratamento ao longo de anos, procurando no reencontro consigo própria a inabalável força interior para não desistir da sua luta tenaz. Os seus escritos funcionavam para ela como um poderoso estímulo, uma espécie de bálsamo para as dores físicas mas também para as angústias momentâneas:
“…. Sinto-me hoje com uma boa calibragem química devido ao tratamento de ontem e  vinha cavalgando uma filosofia libertária à Henry Miller, Anaïs  Nim ou June  dos anos trinta. Mas como transformar o sofrimento em escrita?”;
“….Não gosto de ser eterna. Pelo menos dentro da realidade que conheço, mas como um outro correio me fala de engenhocas que no futuro conduzirão ao futuro  (já agora ao passado), não sei se presentemente estou vivendo sem consciência uma realidade já vivida. Mas também não gosto de ser Sísifo, embora aprecie os ritmos da vida, da noite e do dia e das estações do ano, dos rituais festivos que me transmitem a noção do Tempo.”; 
“…. O sol despontou e incidiu sobre um trevo de quatro folhas cobertas de pérolas de cacimbo brilhando como diamantes e sei que amanhã a cortisona vai-me mandar a conta com juros.”
Repare-se que a Maria Margarida disse que “não gostava de ser Sísifo”, é verdade, mas também sei que ela era da estirpe daqueles que não desistem da busca contínua do sentido das coisas para o fortalecimento da sua consciência crítica.
Mas continuemos com a mitologia. Um dia, Sísifo chega ao topo, e, antes de voltar a resvalar por aí abaixo no seu eterno suplício, tem um assomo de clarividência e apercebe-se de que começa a ser mais forte que o rochedo, a assenhorear-se do seu próprio destino. E isso transmite-lhe um misterioso alento para recomeçar tudo de novo, preferindo a eternização do suplício ao termo da sua existência, isto é, ao “suicídio”. Daí poder-se dizer que Sísifo simboliza o heroísmo do “absurdo da existência humana”. A clarividência que devia fazer o seu tormento consagra a sua vitória.
Recentemente, foi noticiado o dramático caso de alguém que, esse sim, recusou ser Sísifo ou… Maria margarida Mascarenhas. Um septuagenário, cansado de cuidar da mulher doente e em estado vegetal, talvez apercebendo-se da inutilidade do seu esforço e do vazio de sentido da sua vida, matou-a e suicidou-se a seguir. Não é inédito, muitos casos semelhantes têm acontecido e vão continuar a ensombrar os nossos dias.
O “absurdo” da alegoria de Camus assume nos tempos que correm uma evidência ainda mais flagrante, com o Homo sapiens a dar razão a que se duvide de que o cosmos tenha sido feliz quando o privilegiou com a capacidade racional para reinar entre os outros seres da Criação. Numa era em que se esperava que o salto vertiginoso do progresso tecnológico alavancaria o homem para alturas superiores da sua clarividência, estamos a assistir precisamente ao inverso. Um pouco por todo o lado, emergem inumeráveis narrativas sobre a sordidez da natureza humana: guerras por motivos fúteis; barbárie; genocídios; massacres; execuções em massa; tráfico de seres humanos; escravidão sexual; tortura; etc. Este milénio parece apostado em demonstrar que a mente humana está mais próxima do cérebro reptiliano do que podemos imaginar. Assistimos ao paradoxo de as manifestações primárias daquele cérebro serem sadicamente divulgadas pelas tecnologias criadas precisamente pelo cérebro racional: câmaras de filmar, televisão, facebook, etc. A racionalidade devia ser o comando firme e esclarecido da  mente e a emoção o tempero equilibrador da alma, mas a simbiose entre as duas virtudes parece tão contingente quanto o seria nos primeiros passos da humanidade. As exasperação e o desnorte crescem, a questão filosófica central no pensamento de Camus mantém uma impressionante actualidade.
Assim, neste cenário de um mundo desprovido de sentido, coerência e unidade, é angustioso o dilema da  existência que se coloca ao homem, confrontado  com os limites da sua razão e a inquietação metafísica sobre o seu destino. Perante isto restar-lhe-ia o suicídio face à perda de sentido da sua vida. Será? Não, para Camus o suicido não será a melhor resposta ao “absurdo” da nossa condição, pois que cortar o fio da existência não resolve o problema. Entende que a assunção de um estado de  “revolta” é a atitude correcta porque aviva no homem a consciência de si próprio e estimula-lhe o inconformismo e a recusa obstinada às armadilhas do quotidiano e às servidões e ameaças a que está sujeito. Se uma atitude de revolta contra o “absurdo” não garante conforto e tranquilidade ao homem, coloca-o porém no “cume vertiginoso” que para Camus é a experiência inteiramente consciente de estar vivo. Pois foi assim que Sísifo descobriu que “a lucidez que devia constituir a sua tortura ao mesmo tempo coroa a sua vitória”. O escritor-filósofo diz que devemos imaginar Sísifo feliz, pois “ser consciente da própria vida num grau máximo, é viver num grau máximo”. Tentando compreender a lógica do “homem absurdo”, Camus propõe assim a sua moral, deixando-nos pistas para responder às perplexidades, terrores e angústias que assaltam o nosso quotidiano, seja à escala das vivências individuais, seja à escala dos grandes desafios colectivos.
Quem é verdadeiramente o Homo sapiens? Quais são os limites da sua racionalidade?
A dado passo do meu diálogo com a Maria Margarida sobre esta problemática, lembrei-lhe estas palavras de Kant: “o nosso entendimento cria as suas leis, não a partir da natureza, mas prescreve-as à natureza”. E então contei-lhe que certo dia um cão aproximou-se de mim (estava eu sentado num jardim) e por momentos olhou-me de uma forma tão estranha e penetrante que me perguntei se aquele animal dito irracional não apreende coisas do mundo natural que escapam aos meus sentidos. Teria ele momentaneamente captado a essência do meu ser? A diferença entre mim e o animal estará apenas na capacidade de elaboração e sistematização do que vejo, enquanto ele deve chegar a alguma dimensão que me é interdita? O Criador deu ao homem a capacidade racional mas em troca lhe sonegou alguns poderes concedidos a outros seres considerados inferiores? Com estas incógnitas, concluí eu, de nada vale cortar pelas nossas mãos o fio que nos liga à existência. É que pouco sabemos de nós e do mundo natural para taparmos os ouvidos ao chamamento interior da nossa consciência.  
Acredito que a alma da minha amiga se tenha acolhido na eternidade, lá onde existe aquela infinita dimensão do Tempo que ela incessantemente procurou.
(1) As palavras e expressões entre aspas referem-se ao livro O Mito de Sísifo, de Alberto Camus, exceptuando a transcrição dos excertos de textos da Maria Margarida Salomão Mascarenhas.

Tomar, Maio de 2015
Adriano Miranda Lima
terça-feira, 21 de abril de 2015

Breve nota explicativa
A crónica que se segue é um inédito de Maria Margarida Mascarenhas e que chega ao «Coral Vermelho» pelas mãos amigas de Adriano Miranda Lima.
Maria Margarida Mascarenhas, cabo-verdiana, natural de Mindelo. Aí fez os seus estudos liceais.
Formou-se em Portugal em Turismo e Línguas.
 Escritora com muita vivência da cidade da Praia, que se tornou no “habitat”  criativo por excelência, de quase todos os seus contos.  Autora conhecida e apreciada pela forma de narrar em que  alia a arte de contar à linguagem poética. Exemplos disso, os contos: «O Baptizado da Hirondina» «Vigília» entre outros. MMM ainda jovem, iniciou-se nas lides literárias. Data dos anos 60 do século XX, a sua estreia no antigo Boletim Cabo Verde. Igualmente colaborou no «Seló –página dos novíssimos» publicado no Jornal Notícias de Cabo Verde em 1962. Autora do livro de Contos, «...Levedando a Ilha», publicado em 1988. Figura em antologias e colectâneas de Contos. É uma das contistas presentes no «Elas Contam...»2008, edição do IBN de Cabo Verde.

 

 

AQUELA ACÁCIA

 

 

Encontrei-a na véspera do Natal de 2004,  naquela esquina da Rua do Corvo para a Rua dos Correios, por detrás da Catedral  no Platô,  e o meu coração descontrolou-se  acompanhando o badalar dos sinos.

 

Conheci-a pequenina quando lá foi plantada  e a rodearam de um bidon velho nos começos dos anos sessenta.  Havia uma campanha promovida pelo director da Fazenda Pereira e Silva, que plantou rosas na Praça Alexandre Albuquerque e acácias pelas ruas.

 

Lembro-me, entre tantas críticas, a do Belmirinho, que me disse que as acácias  desertificam tudo em redor.

 

Mas aquela acácia  ainda lá está  resistindo. Graças a uma daquelas relações estranhas que se desenvolvem entre seres e animais, seres e coisas, pessoas e criaturas.

 

O sol quando se põe em África faz, fazia, nascer aquele desamparo  difícil  de suportar de que o meu pai sofria e creio que eu também.

 

 Regressava do trabalho,  dava umas voltas no passeio em frente à nossa casa assoprando aquele maldito “falcão” que o mataria anos mais tarde.  Eu ficava por detrás das persianas  vendo-o  e divertindo-me um pouco com aquele desespero até que plantaram aquela acácia que passou a ser a razão  dos seus passeios.

 

Nas noites ventosas e de ruas desertas, lá estava ele resmungando,  compondo o bidon,  derrubado e amparando os ramos da árvore, por vezes furioso  com o vandalismo dos  meninos e dos cães. Depois dos bidons, puseram umas ripas de madeira e lá ia ele arranjar e endireitar após cada curta volta no passeio.  Por vezes, entrava em casa e levava um jarro com água para regar a árvore.

 

Partimos todos e esquecemo-nos da arvorezinha.

          

Qual não foi a minha surpresa naquela véspera de Natal ao deparar com a acácia que agora já é uma árvore!

Se por detrás de todas as acácias houvesse uma vontade de vencer e resistir?

           

Peço a todos os que leiam este relato que ao passarem naquela esquina  prestem uma homenagem por mim àquela acácia e ao seu  amigo. Mesmo que se riem de vós como eu me ria do amigo.

            

Aliás, prestem homenagem à luta e à resistência de todas as acácias! Quando mais retorcidas melhor.

                                     

                                              

                                                M.M.M

 

                     (Maria Margarida Salomão Mascarenhas)

 

 

 Maria Margarida Salomão Mascarenhas nasceu no Mindelo em 1938. Neta de Francisco Resende Mascarenhas, foi funcionária pública, primeiro em Cabo Verde e depois em Portugal, onde vivia desde 1964. Colaborou no Cabo Verde - Boletim de Propaganda e Informação e, depois da Independência de Cabo Verde, na revista Raízes. Foi a primeira coordenadora do boletim da diáspora cabo-verdiana, em Lisboa, Presença Crioula, que depois mudou o nome para Presença Cabo-verdiana (órgão da Casa de Cabo Verde). Faleceu de doença prolongada em 8 de Janeiro de 2011.

 

"Como Cultivar a cidadania na escola?"

domingo, 19 de abril de 2015

 

 
O título não é da minha autoria. Explico-me: fui convidada recentemente pela Associação dos Professores Católicos de Cabo Verde, para participar, numa tarde  de Sábado, num debate à volta do tema: «Como cultivar a cidadania na escola?».

Embora  sob epígrafes vários, mas próximos em termos de conteúdo, o tema tem vindo a ser recorrentemente tratado nos meios educativos.

Não obstante, suscitou o meu interesse pela forma como a APC. pretendia agora abordá-lo, não o queria como ponto assente em termos de pertença natural da escola,  mas antes, interrogar-se: como cultivar a cidadania na escola?

Entendi-o também como um desejo implícito da Associação, de que valores e educação voltassem a ser parte integrante da nossa escola.

Da minha parte, lá fui à procura de alguns eventuais contributos que pudessem minimamente  juntar-se aos dos outros participantes e ajudar a mim própria,  a entender algo que à primeira vista  podia parecer até óbvio, uma vez que em  perspectiva conjunta estaria um trinómio indissociável Escola/Educação/Cidadania. Esta última há-de funcionar como  meta almejada pela escola - na difusão do seu saber, do saber/ fazer. Ou seja, a cidadania, saber/ser, como ponto de chegada do processo educativo e formativo da criança e do adolescente.

Ora bem, olhando, com realismo, para a configuração actual da sociedade cabo-verdiana e fazendo uma breve retrospectiva histórica, da independência a esta parte, algumas questões se me colocaram e se me colocam, tais como: a educação é actualmente uma obrigação, um dever da escola? A questão assim posta pode parecer paradoxal.

Mas se nos ativermos no transcurso destas últimas quatro décadas e sobretudo nos primeiros anos de vivência enquanto país, Cabo Verde,  não obstante todo o meritório e digno trabalho levado a cabo no sector da educação, com vista à sua edificação, no entanto, à escola foi-lhe transmitida a directriz  primeira, de que só lhe cabia o ensino das matérias curriculares. A educação, “lato senso” caberia e algo difusamente, ao Estado e possivelmente também à família (embora esta estivesse ao tempo, ideologicamente secundarizada pelo primeiro).

Mesmo que fossem orientações dos primeiros conturbados e interrogativos momentos do país na procura de caminhos o que é certo é que a ideia vingou.

Na esteira desse (des)acerto educativo, os professores como que se tolheram com receio, de que uma advertência, de que uma chamada de atenção ao aluno com propósitos educativos não fossem bem-vindos. A pouco e pouco, a boa educação, os valores por nós julgados muito úteis no desenvolvimento cívico e social da criança e do adolescente foram gradualmente desaparecendo da sala de aula, tanto da fala do professor como do comportamento e da atitude do aluno.

Claro que o tal Estado que havia de fornecer, não se sabia muito bem como, a educação, os valores, nunca deu o “ar da sua graça”! e instalou-se uma espécie de grande vazio, e gerou-se também, vale dizer, uma certa apatia, um certo comodismo, no meio disso tudo.

Resumindo, foi um tempo de demasiada descompressão e de muita permissividade; valia na aula o dito “professor-camarada” no mau sentido. Portanto, quando voltou o equílibrio, pelo caminho, perderam-se os já referidos valores.

A escola deixou de chamar a si, pariticipativamente, esta transcendente reponsabilidade social.

A marca ficou, entranhou-se no comportamento escolar, o hábito gerou o resto e resultado: nunca mais a educação e os valores voltaram a ser partes estruturantes, equitativas e fundamentais, da escola cabo-verdiana. O que é uma pena!

Pois bem, a educação e o ensino que deviam ser, dado o caso particular da configuração familiar e social cabo-verdiana, como  frente e verso de uma mesma folha de papel, estão hoje completamente divorciados uma do outro.

 Do mesmo modo, a escola que devia ser um modelo ideal de transmissão de valores, principal expoente da educação dita formal, foi ficando cada vez mais vazia  e encontra-se actualmente, desprovida de valores.

A família  com destaque para a oriunda da base bem larga da nossa pirâmide social, isto é, do extracto social menos qualificado em termos de rendimentos, de literacia e de cidadania, com complexos e graves problemas de desestruturação, de disfuncionalidade, de monoparentalidade, não possui capacidade endógena de, no lar, possibilitar essas “ferramentas” básicas e fundamentais à criança no seu processo de socialização e de crescimento.

Resultado, o aluno chega à escola, sobretudo aquele que se dirige à escola pública, com etapas queimadas; ignorante de noções básicas de boa socialização, pois em casa, na chamada educação não-formal, quase que não teve contacto com adultos capazes de  influenciar positivamente o desenvolvimento do seu carácter e do seu sistema de valores ( nomeadamente, a ausência da figura paterna que é gritante na família cabo-verdiana da camada social menos favorecida).

Ora estes dois males, por um lado, a desmunição de valores que a própria escola apresenta e, por outro lado, o desconhecimento assaz penoso de noções básicas de sociabilização com que aluno entra na sala de aula, penalizam, reduzem fortemente, o aproveitamento e comportamento académicos e no seguimento, inibem o seu desenvolvimento e a sua formação como cidadão.  

 Infelizmente, e não é por acaso, que Cabo Verde vive actualmente nos seus centros urbanos, sobretudo na cidade capital,  a maior crise de sempre, de delinquência e do crime juvenil.

 Perante esta realidade, perante estes sinais tão alarmantes e tão preocupantes, a atenção vira-se agora para a escola, como última esperança, o último baluarte,  que despiste, que corrija e que debele esta crise sem precedentes que se abateu sobre larga faixa juvenil da população. 

Qual é, qual deve ser o papel da escola? Como cultivar a cidadania na escola?

É o desafio que nos lança agora e em boa hora, a Associação dos Professores Católicos de Cabo Verde, APC.

Só através de um trabalho sistemático, estruturador e consciente, realizado no interior da comunidade escolar, isto é, da escola - enquanto instituição que realiza a instrução e a  educação - dos professores, dos pais e encarregados de educação, dos alunos, e coadjuvados por associações e fundações da sociedade civil, enfim, por agentes próximos e activos e mais contributivos para a causa da Educação.

 Só assim conseguiremos que, por um lado, na sala de aula, no corredor e no pátio da escola se construa e se viva a cidadania, nos gestos, nas atitudes, nos comportamentos prof/aluno, aluno/prof, prof/prof, aluno/aluno. Isto é, a escola ser geradora de cidadania. Por outro lado, a escola virar-se, abrir-se em atenção à comunidade onde se encontra implantada; à sociedade e ao mundo que a rodeia e deles colher exemplos de boa prática de cidadania para sobre  isso reflectir e difundir na própria escola.

 Finalizando, devemos aproveitar, como alguém já disse e bem, os momentos do achamento do “eu” que a escola proporciona ao aluno e neles cultivar a cidadania.

Parabéns à sociedade civil cabo-verdiana

domingo, 12 de abril de 2015
Pois bem! Nós − Ondina e eu − estávamos a cumprir uma assertiva e interessante observação que um bom amigo meu um dia me fez citando, dizia ele, um outro amigo dele: “Os avós são o único electrodoméstico de uma família que não pode avariar-se”. E lá fomos nós… diga-se de passagem com muita satisfação, “ficar” com os nossos adoráveis e irrequietos netos. Por isso não estivemos presentes para assistir, para tomar parte numa das mais importantes manifestações (normalmente não sou de manifestações públicas meramente por agorafobia, embora ténue) assumidamente da sociedade civil contra uma das mais vergonhosas e escabrosas tomadas de decisão da classe política cabo-verdiana. 

A classe política dirigente no seu TODO. Ninguém nem nenhum dirigente partidário pode, como sói dizer-se, tentar passar por entre os pingos da chuva. A borrada está feita e são todos, sem qualquer excepção, responsabilizados. Principalmente os do topo. Nenhum dirigente político partidário poderá eximir-se de responsabilidades.

Já se escreveu muito sobre isto. Não penso trazer qualquer novidade mas apenas registar a minha vergonha pela nossa classe política dirigente – aqueles que recebem ou esperam receber do Estado recompensas chorudas (à escala do País) pelo seu dito “trabalho cívico” – e a minha profunda indignação por esse comportamento tão egoísta, cínico e insensato que esses nossos dirigentes políticos exibiram. Finalmente levantaram o véu. Bem interpretou o Mestre Baltazar Lopes o provérbio “a ocasião faz o ladrão” quando nos dizia que “a ocasião não faz o ladrão mas sim, revela o ladrão que já lá estava”. Atenção que este aforismo é aqui usado apenas como uma metáfora e nada tem a ver com a honradez dos políticos da qual não posso nem devo duvidar e nem se enquadra no objectivo deste exercício. Após esta breve chamada de atenção, continuo:

O mais grave, e que causa espanto, é que não se trata de uma atitude irreflectida, espontânea, ou feita sobre os joelhos em que se possa – dirigente político − alegar ignorância ou desconhecimento prévio. Foi um assunto acertado não só nas jornadas parlamentares entre os deputados de cada partido com os respectivos líderes partidários mas também, aceite na conferência ou reunião de líderes da Assembleia Nacional

A lei já vinha sendo cozinhada há muito tempo, nas costas do povo, com o acordo tácito de todos os partidos com representação parlamentar, sem olhar minimamente aos condicionalismos políticos e económicos que enformam a conjuntura universal e à situação económico-financeira do País que tanta crítica vem merecendo da oposição. Uma oposição que nem sequer tinha necessidade de se associar ao evento... O PAICV tem uma maioria que lhe permite sozinho fazer passar todas as leis. Ou seriam necessários dois terços? E nenhuma oposição atenta e alternativa de governação se associa à situação, ao partido no poder, para votar uma lei impopular ou potencialmente polémica, mesmo que este facto configure demagogia. É de La Palice!

É verdade que o comportamento do Governo e do PAICV com o autêntico “bodo aos pobres” que é essa coisa de pensão e regalias aos “combatentes da liberdade da pátria” muitos maquiavelicamente descobertos quarenta anos após a independência, estatuto este, humilhante e oportunisticamente aceito e celebrado por alguns deles, é nítida e profundamente encorajador para derivas fantasiosas e deu o “mote” para uma incursão do tipo a que acabamos de verificar.  

Mas são esses mesmos políticos que há escassos meses recusaram um aumento de 3% à polícia que hoje conseguem − imagine-se! − ter moral para legislar em proveito próprio aumentos e regalias substanciais para o seu bem-estar actual e futuro. Que conclusões a tirar da classe política? Uma, que se consideram cidadãos especiais que estão imunes e indiferentes à situação do País? Outra, que estão muito mais preocupados com o seu bem-estar pessoal do que com o dos outros cidadãos que representam e juraram defender os interesses? Há, eventualmente, outras hipóteses que não caberão, em linguagem e conteúdo, num texto deste género. 

Não está em causa se a classe política merece ou não, mas se é sensato, se é oportuno e se é moralmente aceitável. Uma questão de valores e de equidade!...

Os titulares dos cargos políticos que são directa ou indirectamente eleitos pelo povo são normalmente “voluntários em comissão cívica de serviço” e têm ou deviam ter um carácter transitório que a lei lhes confere. É esta perspectiva – transitoriedade – que deve ser encarada e não a de profissionais bem remunerados desses cargos o que não lhes impede de os exercer indefinidamente, por renovação através do voto, se o povo assim entender. Infelizmente no nosso país votamos em partidos e não em pessoas ou personalidades, misturando deste modo, alguns bons com muitos medíocres, o que faz com que os clientes partidários, aqueles que não encontram respaldo nas suas profissões de origem prefiram o “exercício cívico” tornando-o, eles próprios, cada vez mais apetecível para se eternizarem nessas funções. É simplesmente imoral!

O aumento do salário e regalias dos titulares dos cargos políticos deveria constar dos programas eleitorais dos partidos políticos para que seja previamente sufragado pelo voto. Nenhum deputado ou programa de governo foi explicitamente mandatado para esse efeito – juiz em causa própria. Legalidade não é legitimidade.

Os líderes dos dois grandes partidos portaram-se ambos muito mal. Não falarei do chefe do Governo que é militante de base e, aberrantemente, é também chefe da líder do seu partido numa questão fundamentalmente “partidária” – governação. Cabo-verduras!... 

Assim, dos dois, nenhum pode apontar o dedo ao outro. Ambos estiveram muito mal na fotografia.

O líder da oposição porque não soube tirar partido de uma medida que era nitidamente antipopular pelo estado crítico do País que ele mesmo não se cansa de frisar mostrando-se deste modo incoerente e inconsequente. Não foi competente, não foi politicamente inteligente, não teve a lucidez, a argúcia e o arrojo intelectual dos verdadeiros líderes, sobretudo de um líder de oposição e deixou-se levar pela ganância dos seus pares. Ou então foi muito mal aconselhado e deve daí tirar as suas conclusões e agir em conformidade. A Oposição infelizmente perdeu uma oportunidade de ouro para marcar pontos, fazer a diferença e exercer efectivamente oposição para o qual foi mandatada.

A líder da situação também não ficou bem na fotografia porque sabe tão bem como qualquer cidadão minimamente informado que nenhuma lei pode passar na Assembleia Nacional sem a concordância e o aval do partido que ela dirige – o PAICV. É responsável político de tudo o que se passa no PAICV. Dizer-se contra a lei ou alegar desconhecê-la previamente não a abona nem a beneficia absolutamente nada. Antes, demonstra que ela não tem força para dirigir o seu partido onde, pelos vistos, a sua opinião não é tida nem havida em conta. Também significa que desconhece, o que é muito grave, o que se passa no interior do seu Partido e não tem pulso no seu Grupo Parlamentar. Não o tem também na sua Comissão Política que coordena muito mal pois esta devia emanar orientações ao seu Grupo Parlamentar que parece ignorá-la de todo. Não poderá, consequentemente, tê-lo, o pulso, para governar o País, a menos que faça uma demonstração convincente em como foi desautorizada e que tal procedimento não terá mais lugar porque foram totalmente erradicadas as suas causas. 

O líder máximo de um partido não pode ter “opinião pessoal pública” sobre o que se passa ou se passou no interior do partido que dirige. Jamais poderá demarcar-se displicentemente dos seus dirigentes e dos seus militantes, isto é, sem apresentar medidas enérgicas contra eles. Só pode publicamente expor uma posição que é, com toda a segurança, a do partido. Ou então não é líder. É apenas chefe de uma facção! 

Assim. nesse particular é de realçar a hombridade e a dignidade com que o líder da oposição não descartou quaisquer responsabilidades mesmo sabendo que provocariam desgaste da sua imagem pessoal e do partido, avocando a si todas as decisões que foram tomadas em nome do partido e do seu grupo parlamentar como suas e comportando-se deste modo como o verdadeiro líder de todo o partido e não de uma parte.


Mas tudo vai acabar em bem porque fora dos partidos felizmente temos um Presidente da República muito atento, que tem demonstrado muita sensatez, muita competência política e que é um verdadeiro oásis no meio deste deserto político. Um verdadeiro provedor do Povo. Parabéns aos cabo-verdianos pela sua escolha!
A.   Ferreira

segunda-feira, 6 de abril de 2015

O NOSSO EGOCENTRISMO E O MUNDO SENSÍVEL

 

 

Sem nenhum propósito a comandar-me, a minha atenção fixou-se, mais do que habitualmente, numa senhora idosa que passava na rua com um grande ramo de flores. Mais adiante, num jovem casal que conversava animadamente numa esplanada, e, mesmo ao lado, numa petiza sentada num cavalinho eléctrico estacionário instalado frente ao mesmo estabelecimento. Perguntei-me então por que motivo o meu olhar interior se focalizou com inusitada atenção naquelas cenas do trivial quotidiano, réplicas tão naturais do simples acto de viver  que nem sequer nos damos por elas, de tantas vezes repetidas.

 

Mas não, neste dia o binómio senhora idosa-ramo de flores revelou-se-me, como se  pela primeira vez, uma ligação biunívoca entre o homem e a natureza que cada vez mais escapa à nossa moderna e frívola sensibilidade. O jovem casal representou-se-me a continuidade da vida, a promessa de futuro, nos tempos em que este se cobre de tons sombrios sem, no entanto, o banirmos dos nossos sonhos assimétricos. A petiza ao cavalinho eléctrico pareceu-me a revelação de que a fantasia infantil talvez seja o último resguardo da nossa autenticidade.

 

Mas se todo este repertório do nosso mundo sensível afinal existe, por que é que só hoje o “vi”? Pertencem a um universo paralelo só apreensível aos que são dotados de percepções extra-sensoriais? Por aí não vou. Integram um universo real que só nos passa “despercebido” porque anestesiamos a nossa percepção do mundo que nos rodeia à custa de se repetirem exaustivamente os mesmos estímulos exteriores? Quero perfilhar esta última hipótese. De facto, as nossas reacções são regidas por um certo automatismo que, operando no inconsciente, tende a bloquear a nossa capacidade dialéctica com o mundo sensível. Deve ser este o caso. Assim se explica que  até as coisas mais extravagantes que desfilam aos nossos olhos tendem a banalizar-se e a serem ignoradas ao fim de um certo tempo, se constantemente repetidas. É o resultado de um processo de contínuo amortecimento da nossa sensibilidade. Um exemplo disso é o cortejo de desgraças que a televisão nos despeja a toda a hora sem que a nossa consciência sofra hoje em dia um verdadeiro sobressalto.

 

E então cabe perguntar que relação tenho eu com cada um dos pequenos universos que observamos, ou não observamos, todos os dias. O mesmo é querer saber se a senhora idosa deslumbrada com as suas flores, o jovem casal prazeroso com a vida e a menina embevecida à sela do seu cavalinho imaginário, assim como as desgraças do mundo, querer saber, dizia eu, se são partículas de universos autónomos ou se são parte do meu universo individual. Mesmo que peque por presunção intelectual,  quero acreditar que integram o meu universo egocêntrico, ou antropocêntrico, se preferirmos. A nossa existência devia ser auspiciosamente concêntrica,  presidida por uma lógica de  centralidade para a qual nos convergiríamos. Só que tendemos, com o hábito e a rotina, a desligar a tomada de ligação com o exterior, e só com a injunção de uma voltagem de retorno é que conseguimos ocasionalmente fortalecer os circuitos internos que iluminam o nosso espaço interior e nos permitem divisar todos os universos que integramos.

 

Contudo, no fundo eu sou o centro do meu universo e por muita afinidade que tenha – e tenho – com o que me rodeia, nada tenho a ver intrinsecamente com o meu semelhante e o mesmo pode intuir cada pessoa. Resta é saber em que medida os diversos egocentrismos são capazes de formar um conjunto integrado e coerente que dê sentido à nossa existência planetária. Porque seria razoável que os nossos universos individuais fossem parcelas minúsculas dum universo maior e aglutinador. Só assim seria possível uma dialéctica inteligente com o mundo sensível e encontrar respostas para superar as nossas fragilidades e limitações naturais. Dir-se-á então que isso seria um imperativo da nossa racionalidade, sem o que nos limitamos à infrene gestão do trivial e a não passarmos de simples escravos das nossas inclinações primárias.

 

Hoje, parecemos rodeados de universos paralelos que nos são antagónicos, como o chamado Estado Islâmico e o Capitalismo selvagem, sem que aparentemente lhes consigamos opor o trunfo da nossa racionalidade. E é quando nos voltamos a interrogar sobre a casualidade associada à teoria evolucionista, pelo menos na leitura que dela faz Edgar Morin, no pressuposto de que para o evolucionismo a inteligência é um mero produto que evoluiu num organismo vivo, sendo imprevisível a metamorfose da morfologia cerebral e do entrelaçamento dos seus neurónios conducentes a uma inteligência e a uma espiritualidade superiores. Em campo oposto, estão os que se perguntam se a inteligência não será também produto de faculdades psíquicas, exteriores ao homem, e  que por isso transcendem a nossa percepção racional e nada têm a ver com o organismo físico. Mas, se assim é, de onde virão  essas capacidades? Este entendimento nos levará ao encontro da tese da predestinação do homem, logo a recuperar a teoria do universo geocêntrico, doravante numa perspectiva estritamente espiritual, o que por enquanto escapa à nossa razão.

 

 

Tomar, 5 de Abril de 2015

 

Adriano Miranda Lima