Em memória da minha amiga Maria Margarida
Salomão Mascarenhas, contista e cronista,
falecida a 8 de Janeiro de 2011, que comigo partilhou muitas reflexões filosóficas sobre a condição
humana.
Com a ilustração desta imagem, a minha amiga Maria
Margarida fez-me destinatário de uma reflexão poético-filosófica, revisitando o
absurdo da condição humana, na peugada de Camus (1). A fotografia permite-nos evocar
a tortura de Sísifo, de que nos dá conta a mitologia grega. Tendo desafiado os
deuses, Sísifo foi condenado a empurrar sem descanso um enorme rochedo até ao
cume de uma escarpa, de onde rolaria por aí abaixo para ser de novo empurrado,
e assim repetidamente por toda a eternidade. Os deuses entenderam que não há
castigo mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança. E Sísifo não
desiste, vai aí acima vezes sem conta apenas para rebolar de novo até ao fundo
sempre que está prestes a alcançar o cimo. Albert Camus utilizou esta metáfora para
sustentar a sua “filosofia do absurdo”, segundo a qual as nossas vidas não têm
qualquer utilidade, não valendo mais do que a aparência ilusória do que criamos
ou julgamos criar. E assim, perante uma vida inútil e sem sentido, para Camus a
alternativa ao destino de Sísifo poderá ser o “suicídio”, ou seja, o fim de uma
existência desprovida de sentido.
A minha amiga andava então a tratar-se de um carcinoma
da mama que, infelizmente, a haveria de matar. Mas, mulher de uma estóica
resistência e grande energia moral, arrostou com o sacrifício do penoso
tratamento ao longo de anos, procurando no reencontro consigo própria a inabalável
força interior para não desistir da sua luta tenaz. Os seus escritos
funcionavam para ela como um poderoso estímulo, uma espécie de bálsamo para as
dores físicas mas também para as angústias momentâneas:
“…. Sinto-me
hoje com uma boa calibragem química devido ao tratamento de ontem
e vinha cavalgando uma filosofia
libertária à Henry Miller, Anaïs Nim ou
June dos anos trinta. Mas como transformar
o sofrimento em escrita?”;
“….Não gosto
de ser eterna. Pelo menos dentro da realidade que conheço, mas como um outro
correio me fala de engenhocas que no futuro conduzirão ao futuro (já agora ao passado), não sei se
presentemente estou vivendo sem consciência uma realidade já vivida. Mas também
não gosto de ser Sísifo, embora aprecie os ritmos da vida, da noite e do dia e
das estações do ano, dos rituais festivos que me transmitem a noção do
Tempo.”;
“…. O sol
despontou e incidiu sobre um trevo de quatro folhas cobertas de pérolas de
cacimbo brilhando como diamantes e sei que amanhã a cortisona vai-me mandar a
conta com juros.”
Repare-se que a Maria Margarida disse que “não gostava
de ser Sísifo”, é verdade, mas também sei que ela era da estirpe daqueles que
não desistem da busca contínua do sentido das coisas para o fortalecimento da
sua consciência crítica.
Mas continuemos com a mitologia. Um dia, Sísifo chega
ao topo, e, antes de voltar a resvalar por aí abaixo no seu eterno suplício, tem
um assomo de clarividência e apercebe-se de que começa a ser mais forte que o
rochedo, a assenhorear-se do seu próprio destino. E isso transmite-lhe um
misterioso alento para recomeçar tudo de novo, preferindo a eternização do
suplício ao termo da sua existência, isto é, ao “suicídio”. Daí poder-se dizer
que Sísifo simboliza o heroísmo do “absurdo da existência humana”. A
clarividência que devia fazer o seu tormento consagra a sua vitória.
Recentemente, foi noticiado o dramático caso de alguém
que, esse sim, recusou ser Sísifo ou… Maria margarida Mascarenhas. Um
septuagenário, cansado de cuidar da mulher doente e em estado vegetal, talvez
apercebendo-se da inutilidade do seu esforço e do vazio de sentido da sua vida,
matou-a e suicidou-se a seguir. Não é inédito, muitos casos semelhantes têm
acontecido e vão continuar a ensombrar os nossos dias.
O “absurdo” da alegoria de Camus assume nos tempos que
correm uma evidência ainda mais flagrante, com o Homo sapiens a dar razão a que se duvide de que o cosmos tenha sido feliz quando o
privilegiou com a capacidade racional para reinar entre os outros seres da
Criação. Numa era em que se esperava que o salto vertiginoso do progresso
tecnológico alavancaria o homem para alturas superiores da sua clarividência,
estamos a assistir precisamente ao inverso. Um pouco por todo o lado, emergem
inumeráveis narrativas sobre a sordidez da natureza humana: guerras por motivos
fúteis; barbárie; genocídios; massacres; execuções em massa; tráfico de seres
humanos; escravidão sexual; tortura; etc. Este milénio parece apostado em
demonstrar que a mente humana está mais próxima do cérebro reptiliano do que
podemos imaginar. Assistimos ao paradoxo de as manifestações primárias daquele
cérebro serem sadicamente divulgadas pelas tecnologias criadas precisamente
pelo cérebro racional: câmaras de filmar, televisão, facebook, etc. A
racionalidade devia ser o comando firme e esclarecido da mente e a emoção o tempero equilibrador da
alma, mas a simbiose entre as duas virtudes parece tão contingente quanto o
seria nos primeiros passos da humanidade. As exasperação e o desnorte crescem,
a questão filosófica central no pensamento de Camus mantém uma impressionante
actualidade.
Assim, neste cenário de um mundo desprovido de
sentido, coerência e unidade, é angustioso o dilema da existência que se coloca ao homem, confrontado com os limites da sua razão e a inquietação metafísica
sobre o seu destino. Perante isto restar-lhe-ia o suicídio face à perda de
sentido da sua vida. Será? Não, para Camus o suicido não será a melhor resposta
ao “absurdo” da nossa condição, pois que cortar o fio da existência não resolve
o problema. Entende que a assunção de um estado de “revolta” é a atitude correcta porque aviva no
homem a consciência de si próprio e estimula-lhe o inconformismo e a recusa
obstinada às armadilhas do quotidiano e às servidões e ameaças a que está
sujeito. Se uma atitude de revolta contra o “absurdo” não garante conforto e
tranquilidade ao homem, coloca-o porém no “cume vertiginoso” que para Camus é a
experiência inteiramente consciente de estar vivo. Pois foi assim que Sísifo
descobriu que “a lucidez que devia constituir a sua tortura ao mesmo tempo
coroa a sua vitória”. O escritor-filósofo diz que devemos imaginar Sísifo
feliz, pois “ser consciente da própria vida num grau máximo, é viver num grau
máximo”. Tentando compreender a lógica do “homem absurdo”, Camus propõe assim a
sua moral, deixando-nos pistas para responder às perplexidades, terrores e
angústias que assaltam o nosso quotidiano, seja à escala das vivências
individuais, seja à escala dos grandes desafios colectivos.
Quem é verdadeiramente o Homo sapiens? Quais são os limites da sua racionalidade?
A dado passo do meu diálogo com a Maria Margarida
sobre esta problemática, lembrei-lhe estas palavras de Kant: “o nosso
entendimento cria as suas leis, não a partir da natureza, mas prescreve-as à
natureza”. E então contei-lhe que certo dia um cão aproximou-se de mim (estava
eu sentado num jardim) e por momentos olhou-me de uma forma tão estranha e penetrante
que me perguntei se aquele animal dito irracional não apreende coisas do mundo
natural que escapam aos meus sentidos. Teria ele momentaneamente captado a
essência do meu ser? A diferença entre mim e o animal estará apenas na
capacidade de elaboração e sistematização do que vejo, enquanto ele deve chegar
a alguma dimensão que me é interdita? O Criador deu ao homem a capacidade
racional mas em troca lhe sonegou alguns poderes concedidos a outros seres
considerados inferiores? Com estas incógnitas, concluí eu, de nada vale cortar
pelas nossas mãos o fio que nos liga à existência. É que pouco sabemos de nós e
do mundo natural para taparmos os ouvidos ao chamamento interior da nossa
consciência.
Acredito que a alma da minha amiga se tenha acolhido
na eternidade, lá onde existe aquela infinita dimensão do Tempo que ela
incessantemente procurou.
(1) As palavras e expressões entre aspas referem-se ao
livro O Mito de Sísifo, de Alberto Camus, exceptuando a transcrição dos
excertos de textos da Maria Margarida Salomão Mascarenhas.
Tomar, Maio de 2015
Adriano Miranda Lima