Ao
contar a um amigo algumas, umas poucas, das minhas rocambolescas andanças pela
nossa administração pública, ele respondeu-me de imediato com o título deste texto
(Para quê facilitar se pode complicar?) acrescentando: É o lema da nossa
administração. E eu respondi-lhe: Tu o dizes e, se calhar, não sabes da missa a
metade. Uma das minhas queridíssimas sobrinhas então presente, diz-me: Tio,
porque não escreves? É de interesse geral!
E por
isso aqui estou a escrevinhar estas linhas. Na verdade acabei de passar uma
semana tumultuosa. Arrasou-me os nervos, consumiu-me o meu precioso tempo de
forma excessiva e inútil e deixou-me muito preocupado com o futuro do País que,
como qualquer outro, tem na sua administração a chave do seu desenvolvimento e
progresso. Vou contar com alguma continuidade, apenas uma das inúmeras
peripécias por que passei.
Há 11,
repito onze, anos, portanto em 2002, fizemos, a minha mulher e eu, uma exposição-requerimento
dirigida ao então Presidente da Câmara Municipal da Praia solicitando a remição
de foro do terreno onde está implantada a nossa casa. Começou aqui uma das
nossas frequentes peregrinações à CMP. Tivemos contactos com toda a gente. Eu,
particularmente, fui recebido até por um tal Fonseca (um assunto marginal) de
quem guardo a impressão de uma pessoa mesquinha, amarga, ressabiada, mas
sobretudo incompetente que é a parte que me interessava, e que se escusou – abespinhou-se com o termo “recusou” quando directamente o confrontei – a cumprir um despacho
do Presidente da Câmara alegando que esse despacho não estava correcto. E até estava
porque era uma prática que vinha da Câmara anterior e que já tinha sido
retomada. Mas também fui recebido por outros funcionários e até pelo Secretário
Municipal da altura que me disse mais do que uma vez que não tinha encontrado o
meu processo e fez-me lá voltar, inúmeras vezes, sem me receber mais porque,
informavam-me na recepção, ou que ele não estava ou que ainda não tinham
localizado o processo. Fomos obrigados, na ausência de deferimento e nos termos
da lei a fazer o depósito bancário correspondente a 20 anos de aforamento. De
nada valeu porque ninguém me passava a indispensável declaração para fazer o
registo. Cansado, recorri aos serviços de um advogado. Também debalde. Vou dar
um salto nesta minha saga que conheceu um longo interregno quando percebi que
essa Câmara, por razões que só a ela diziam respeito, não estava disposta a
resolver-me o problema a que tinha direito por lei.
Recentemente,
a nosso pedido, fomos recebidos de imediato, pelo actual secretário municipal, munidos
de cópias de todos os documentos (recibos) que constituíam o processo mas já sem
qualquer esperança na remição do foro e com o intuito único de recuperar o montante
então depositado. Durante a audiência, gentilmente concedida e cordatamente
conduzida pelo Secretário Municipal, eis que somos literalmente SURPREENDIDOS,
por uma conversa amena e directa de que face aos nossos documentos não havia
qualquer problema na remição de foro e que não se compreendia a razão do
bloqueamento.
Passada
a almejada declaração no qual constava especificamente que havia sido pago o
IUP de remição no montante de X, dirigimo-nos à Conservatória para finalmente
fazer o registo. Consultados os documentos e o receituário do funcionário, este
diz-nos:
– Falta
o nº do prédio e o recibo do IUP da remição de foro.
Retorqui
de imediato:
– Está
aqui escrito na declaração da Câmara que o IUP de Remição foi pago e o número
do prédio é este, disse apontando-lhe um número na declaração.
– Não,
diz-nos o funcionário, o número não é este (dando a sua interpretação) e é
preciso o recibo, completou.
– Mas se
é a própria Câmara que é a beneficiária diz que foi pago o IUP e diz o montante
e identifica o documento, o que é quer mais?
– Tem
que trazer o recibo, diz peremptoriamente, dando-me de volta os meus
documentos.
Fui a
casa buscar o tal recibo que não levara comigo porque pensara – que
ingenuidade! – que tínhamos uma administração minimamente racional.
Ao
entregar o recibo disse-me:
–
Corrigiu a declaração?
– Ouça:
esta, com certeza não é a primeira declaração da Câmara sobre este assunto. E
isto deve ser “copy” “paste” com as alterações devidas.
Consulte as outras declarações e verá que não há qualquer divergência.
Com um sorriso,
simpático e sobranceiro, diz-me:
– Como
quer que eu consulte um processo?! Temos cá milhares.
E mais
não disse, ampliando esse seu sorriso.
Não
respondi. E como já passava das 4 horas, fui para casa a pensar em voltar à
Câmara no dia seguinte e “ensinar-lhes” como deviam passar um documento que já
haviam passado centenas se não milhares de vezes para “agradar” o funcionário
da Conservatória.
De
repente, lembrei-me de que tinha o endereço electrónico não só do Secretário
Municipal como do Chefe da Divisão Predial. Enviei ao Chefe de Divisão uma
mensagem com conhecimento ao Secretário Municipal que transcrevo na parte que
interessa: ”Pela presente comunico-lhe
que a Conservatória não aceitou a Declaração de remição que me foi
passada por considerá-la incompleta. Informam de que falta indicar o número
do prédio que, presumo, já está na certidão”.
No dia
seguinte, muito cedo, já estava na Câmara a fazer as diligências. Encontro-me
com o Chefe de Divisão que muito delicadamente me diz:
– Já
respondi a sua mensagem. O tal número está lá. Venha cá ver os documentos que
temos feito e nunca foram recusados”. E tirou uma pasta da estante e mostrou-me
outras declarações de remição que mutatis
mutandi eram rigorosamente iguais.
À
cautela regressei à casa para verificar o tal mail que me havia mandado e que passo a transcrever na parte que
interessa:
“Em relação a não aceitação da Declaração da
Remição de Foro, não vejo qual o motivo, uma vez que a Declaração está completa
à semelhança de todas as Declarações efectuadas pela Direcção da Administração
Fiscal da CMP. Nessa declaração o nº do prédio encontra-se com a seguinte
designação: “sobre o qual se encontra edificado o prédio urbano inscrito
na matriz predial urbana da freguesia de Nossa Senhora da Graça, sob o nº
24.563”. (o
sublinhado e o negrito são do original).
Voltei à Conservatória e mostrei-lhes o e-mail, acrescentando que a CMP disse
que não passaria outro documento. O funcionário voltou a contestar o conteúdo e
aí passei-me e explodi:
– Começo a ficar farto de uma administração
incompetente e acéfala. Porque é que não organizam um encontro entre os chefes
e definem os parâmetros que devem constar nos documentos? Eu sou um cidadão em
pleno gozo de todos os meus direitos e os senhores são servidores do Estado.
Entendam-se e não façam de mim uma bola de pingue-pongue. Não entro nesse jogo de
desconfianças e de acusações veladas de incompetências. Não sou eu
que devo dizer à Câmara quais são os parâmetros que devem constar das suas
certidões.
Depois do meu irado e indignado desabafo feito em
voz bem alta, o funcionário telefonou para alguém, o que já havia feito no dia
anterior, a comunicar as minhas observações transmitindo de forma subtil a
minha indignação. E com enormes reticências e em jeito de condescendência acabou
por me receber os documentos.
Afinal a Câmara tinha razão porque foi-me passada a
certidão sem mais dados complementares.
Mas de permeio há um episódio que merece ser
registado: Quando fui (primeira vez) buscar a Declaração à Câmara fui informado
de que “só faltava a assinatura” uma vez que o funcionário que a assinava
encontrava-se de férias e o documento devia-lhe ser enviado para casa para esse
efeito. Aí não me contive e perguntei:
– Como é? Um funcionário de férias a assinar-me
um documento? Este documento com essa assinatura não correrá o risco de
impugnação? Mas ele não tem um substituto ou está de férias “clandestinamente”?
É que na administração pública há o princípio da continuidade. Não pode haver
vazios? Se o próprio presidente quando se ausenta tem um substituto…
Tenho muitas e variadas histórias desta nossa
administração vividas ou presenciadas por mim nestes escassos últimos 10 dias.
Mas não cabem todas, de momento, nesta pequena narrativa. Não resisto de aqui
deixar alguns flashes:
1. Ainda nestes dias uma pessoa, minha conhecida, ao meu lado no balcão,
que solicitara uma certidão, já não sei de que natureza, mas sei que o informaram
de que estaria pronta dentro de três dias, puxara da sua caderneta de cheques
para pagar a conta. Diz-lhe o funcionário:
–
Cheques, só visados.
Responde-lhe
o utente:
– Mas eu
não tenho outro meio de pagamento.
–
Desculpe, mas são ordens…
Eu
intervim:
– Acha
que uma pessoa vai visar um cheque para pagar 25 contos? Além disso já passa
das 3 horas da tarde, e os bancos estão fechados. Acrescentei:
– Isto
faz jus ao vosso lema: “Para quê facilitar, se posso complicar?” Ele vem buscar
a certidão daqui a três dias, tempo mais do que suficiente para verificarem se
o cheque tem ou não cobertura razão porque se visa um cheque. Seria melhor e
mais sensato dizer que embora esteja na lei, não aceitam cheques! Esta história de “cheques visados” é uma
grande treta. É uma fuga ao cumprimento da lei por parte da própria
administração pública. É o mesmo que dizer: A lei só se aplica à nossa maneira
e para servir os nossos interesses. Continuei:
– Para
visar um cheque tem que se saber com antecedência o montante cujo cálculo é “segredo”
vosso. Tem que se deslocar ao banco, consumir tempo e pagar os serviços. Francamente,
o que é que têm os Serviços a perder, se têm 3 dias para verificar o cheque? Já
contabilizou a amplitude desta decisão?
Para
facilitar, vendo a pessoa aflita pelos transtornos que lhe iam causar e como a
conhecia disse-lhe que passasse o cheque em meu nome e eu lhe pagaria a conta
com o meu vint4. E assim fizemos!
2. Já houve ocasiões (várias) em que ao me dirigir aos balcões para tratar
de um determinado assunto, me respondem: Venha mais tarde, porque o funcionário
que trata deste assunto foi almoçar e só volta às duas e meia. E eu pergunto:
– Então, o horário não é contínuo?
– É. Mas o senhor compreende… É da lei, temos
uma folga para almoçar.
– Mas isto é um problema interno. O utente não
pode ser prejudicado pela má organização interna. Para o utente o horário é
contínuo. A intenção é facilitá-lo, a ele utente, e não ao funcionário.
– Não é má organização é a lei, retorquiu-me o
funcionário com autoridade.
– Não se trata de lei. Mas se a lei é contra o
cidadão que sustenta a máquina do Estado, mude-se a lei.
3. Por vezes, ainda neste contexto, já aconteceu comigo dirigir-me a um
Serviço para tratar de um assunto:
– O Director-Geral está de férias no Brasil e
só volta no dia X. Só ele é que trata destes assuntos.
– E não tem um substituto?
– Bem…
A verdade é que o problema foi adiado até à chegada
do Director-Geral pois era o ÚNICO que sabia e podia resolver o assunto.
4. Uma outra vez dirigi-me a um Serviço com toda a parafernália que julgava
necessária para tratar de um assunto e o funcionário ao conferir os documentos
diz-me: Falta fotocópia do Bilhete de Identidade.
–
Fotocópia do BI? Que eu saiba fotocópia não autenticada não é um documento. Tem
aqui o meu BI e tire ou confira os dados que precisar. O senhor é uma
autoridade.
– Não,
tem de ser fotocópia do seu BI!
– Vocês
estão para facilitar e não para complicar! [ii] Façam como os bancos. São eles é que
tiram as fotocópias dos documentos de identificação que necessitam para os seus
processos. Os senhores cobram várias dezenas de contos por um serviço e não são
capazes de incluir nos vossos honorários um “documento” que só serve a vocês e
a mais ninguém. Se não podem fazer como os bancos, façam como fazem com o NIF:
Vão ao Sistema… C’os diabos, não estamos nós num país de desenvolvimento médio?
Conformado,
timidamente avancei:
– Bem,
não têm uma fotocopiadora?... Eu pago!
– Não,
não fazemos fotocópias! disse o funcionário com tal veemência que não deixava
margens para qualquer diálogo.
Tive que
me meter no carro (táxi) dirigir-me a uma dessas empresas que fazem fotocópias
e fotocopiar o BI para esses Serviços. Ninguém contabilizou o tempo que perdi,
a minha deslocação, o desgaste psicológico, o voltar a pôr-me outra vez na
bicha e o duplo serviço do funcionário que voltou a verificar tudo. Isto não é
só incompetência é também PREPOTÊNCIA. E ninguém põe cobro a este desvario que
não é mais do que preguicite aguda e irracional que grassa na nossa administração.
5. Para terminar, vai mais esta: Ainda uma
outra vez em que um meu documento trazia anotações que pouco o identificavam
para os efeitos para o qual tinha sido passado, disseram-me, com toda a
simpatia, quando pedi a rectificação: Isto agora só com o NOSI.
– NOSI?!
O que é que eu tenho a ver com o NOSI?
– Não, não
é o senhor. Nós é que vamos tratar disso…
Mas a
vítima fui eu que tive de esperar mais dois
dias para corrigir o documento com mais algumas idas e vindas a esse Serviço.
6. E agora termino mesmo. Quantas vezes não se me
esconderam na já estafada FALTA DE SISTEMA. Até a informatização, paradoxalmente,
tem participado de forma activa no “porquê facilitar se pode complicar?”
Nunca a
administração pública cabo-verdiana, desde a independência a esta parte, havia
chegado a um patamar de tão baixo nível! Chega a ser confrangedor e
constrangedor o atendimento público a que nos sujeitamos.
Podem
crer que chega a ser também um verdadeiro calvário percorrer os balcões dos
serviços de atendimento público da Cidade da Praia! A falta de
profissionalismo, a falta do saber específico para atender o utente, a ausência
em termos de demonstração (na linguagem) de que está a perceber o que o utente
deseja resolver, a confrangedora percepção de que estamos num “front-office” preenchido por gente que,
sem pôr em causa as suas habilitações literárias ou académicas, é
manifestamente de baixa literacia.
Creiam
que isto é simplesmente assustador! Inquietante! Preocupante!
O
raciocínio dedutivo/analítico e sobretudo aquele raciocínio que conduz ao
pragmatismo e a um atendimento eficaz, para solucionar, são “ferramentas” que
os nossos atendedores desconhecem em absoluto, quando, ao que tudo indicaria, deveria
ter sido o “Abc” da cartilha da formação ou de raiz, ou em exercício, que em
princípio, este mesmo funcionário público terá realizado. Será que fez alguma
formação?... As dúvidas acumulam-se, por aquilo que nos é dado verificar no
dia-a-dia.
Mas
também perguntamos: Será que o entendimento das políticas para a administração
pública tem subjacente que para o atendimento público qualquer um serve? Que o
cidadão não merece mais? Ou será que ignora que o atendimento é a IMAGEM dos
Serviços e da Administração do País? Não será mais apropriado a esse “qualquer
um” executar internamente os actos que exijam rotina (repetitivos) do que estar
ao balcão de atendimento onde os assuntos são os mais abrangentes e
diversificados? É onde devem estar os melhores!
O
irónico de toda esta situação, é que toda esta ignorância é exibida por vezes –
quando não hostilizam com o ar de tiranetes que dominam a situação – com um
sorriso ambíguo que não se sabe se de simpatia e gentileza ou de zombaria e
escárnio que nos deixa a sensação de que ele (o funcionário público) apreendeu
o superficial, o tal sorriso, e que não interiorizou em absoluto a parte
substantiva.
Mas tudo
isto acontece porque temos uma sociedade civil enfezada, eunuca e timorata e um
PM que panteia todo enfatuado por este país fora em vez de dar verdadeira
atenção aos cidadãos.
Sendo
ele formado em Administração, é caso para se dizer com muita propriedade: “Em casa
de ferreiro, espeto de pau!”
A.Ferreira
[i] Quero aqui registar e
realçar que usei sempre o masculino independentemente do género da pessoa que
me teria atendido porque não tem nada de pessoal este texto.
Igualmente gostaria de assinalar
que nestes dias do meu “calvário” fui sempre recebido com muita delicadeza e
simpatia, o que muito agradeço, mas que trocaria de bom grado por
profissionalismo e eficácia.
[ii]
Facilitar não é deixar de ser rigoroso. É encontrar soluções pragmáticas e
racionais no quadro da lei que não “massacrem” o utente.