Tenho
lido ultimamente alguns artigos de opinião sobre o tema agora “em moda”,
trazido pelos denominados activistas sociais que é o da remoção de estátuas de
chamados esclavagistas, racistas, colonialistas e
outros epítetos que, com ou sem razão, diariamente nos transmitem pela
comunicação social.
Ora
bem, antes de iniciar ao que aqui me traz, gostaria de fazer uma questão prévia.
Como
qualquer pessoa minimamente escolarizada e humanamente formada, sei e
comungo da opinião de que há muito que a
escravatura é algo “consensualmente repugnante” citando o Historiador português
Rui Tavares num dos seus artigos.
Nesse mesmo artigo, o autor, tornando mais
abrangente a questão do terrível flagelo
humano do tráfico de escravos e desfazendo alguns mitos no tratamento do assunto, referiu-se à rainha Jinga de Angola e ao célebre Zumbi dos Palmares no Brasil, como
possuidores em larga escala, de seres humanos escravizados. No entanto, eles são
apresentados historicamente, como heróis anti-escravistas, enquanto, pelos vistos,
eram apenas competidores, rivais, dos Holandeses e Portugueses no mesmo negócio.
Afinal o “anti-escravismo” da rainha Jinga de Angola e do Zumbi dos Palmares do
Brasil, nada tinha a ver com a defesa dos escravizados, sendo tão somente uma
guerra de mercadores em que aqueles consideravam uma “concorrência desleal” dos
europeus num terreno em que eles julgavam exclusivamente seus: o mercado
de escravos africanos.
Ainda na questão prévia, gostaria de assinalar um outro episódio
sobre escravos, este muito mais recente, séc. XXI, passado no Níger, escutei-o recentemente
no programa, «Eixo do Mal» semanalmente transmitido num dos canais
da televisão portuguesa.
Tratou-se
de um testemunho dado por um dos jornalistas
do painel desse programa, sobre a sua experiência
no Níger, um dos muitos países problemáticos da África actual. Contou ele que
fez parte da delegação europeia àquele país africano que vive mergulhado em
problemas vários, entre os quais, conflitos com o povo nómada tuareg, entre
outros.
Ora
bem, o então membro/observador da delegação europeia, explicou a propósito do
escravismo, de que tanto se fala agora, que ele conheceu
presencialmente, no Níger do século XXI, povoados muitos, cujas populações
estão completamente à mercê, escravizadas, subjugadas por outras aldeias que
as vão “arrebanhar à força, adolescentes, jovens, homens e mulheres” e levam-nos
para campos e aldeias do país, sujeitando-as a trabalho escravo. E são milhões de seres humanos assim tratados.
Igualmente, o Jornalista narrou nesse mesmo programa que se
tornou amigo no Níger de um escravo tuareg, de nome Ibrahim que um dia decidiu por
iniciativa própria deixar de ser escravo. Estava farto e quis ganhar a
dignidade humana a que tinha direito. Conseguiu um lugar na missão da
Comissão Europeia e estabeleceu uma relação especial com o jornalista que desconfiou
sempre das eventuais repercussões da sua ousadia.
Acabado
o trabalho da missão europeia, e regressado a Portugal, ele soube que Ibrahim
havia sido detido pelas autoridades nigerinas com o fim de evitar que o “mau
exemplo” se propagasse.
Então, o nosso Jornalista temendo o pior, colocou, já em desespero
de causa, a fotografia de Ibrahim nas redes sociais, criando um quase
movimento, na esperança de que o seu gesto tivesse algum efeito de denúncia e o
salvassem. Soube mais tarde, com muita
tristeza e consternação que o amigo tuareg havia sido morto.
Dito
isto, e feito o desabafo, descrito no ponto prévio, vamos ao que hoje aqui me
trouxe.
Tal
como havia dito no início,
tenho lido ultimamente alguns artigos de opinião e muita informação em jornais
portugueses sobre esta matéria.
Mas
para melhor enquadrar o assunto terei de voltar um pouco atrás no tempo. Em
2017, num dos números do Jornal Público do mês de Outubro daquele ano, apareceu
uma notícia e lembro-me que a li meia estupefacta.
É que dizia que o Presidente do “SOS Racismo de Portugal” havia feito
declarações ao jornal sugerindo o
apeamento da estátua de Padre António Vieira, por ser “esclavagista ou, tal
representar.”
Dialoguei
logo com os meus botões, “... De onde este foi buscar tal ideia? De certeza que
nunca leu a vida e a obra deste padre jesuíta e muito menos terá lido e
conhecido o conteúdo das Cartas e dos Sermões de Pe. A. Vieira. Este tipo de
pedido só pode ter vindo de alguém completamente ignorante sobre quem foi este
religioso e os combates que travou com a sua pena e a sua voz, em Cartas e em Sermões...”
Assim
pensei eu, quando li a notícia sobre a pretensão exarada no Jornal e proferida
pelo Presidente da Associação SOS Racismo de Portugal.
É
que Vieira foi um defensor dos índios e dos escravos negros contra a brutalidade e a ganância dos senhores do
Brasil, no século XVII.
Logo,
só por isso, o que não seria pouco, merecedor de toda a nossa admiração e
respeito. Não foi por acaso que os índios Ameríndios chamavam-no: “Padre Grande” na língua deles. Língua que ele aprendeu e que falava fluentemente.
Volto a repetir, pela defesa
da vida dos Índios, valeria toda a nossa admiração. Podia até não ter sido tão
acutilante na defesa da vida dos escravos negros porque a escravatura era característica
da sociedade brasileira da época e corrente em
outras sociedades, americana, europeia, africana e asiática.
Padre A. Vieira foi missionário por muitos anos no Brasil, com permanência mais prolongada no Maranhão e na Baía.
Um
dos seus mais célebres Sermões, e «Sermão de Santo António aos Peixes» o santo protagonista do sermão, insurge-se contra a
violência e a brutalidade dos grandes donos de terras, (peixe graúdo, em que se
destaca o tubarão) contra (os peixes
pequenos) os seus fracos e maltratados escravos. Numa belíssima alegoria fabulária,
em que o Santo critica o comportamento dos Homens, representados
metaforicamente em diversas espécies de peixes.
António Vieira era mestiço, pelo lado do pai.
Este era filho de uma negra, e de um alentejano. Logo, Vieira é neto de uma
negra. Aliás, basta observar os retratos de Pe. A. Vieira para se lhe notar os
seus traços de mestiço. O que ao caso não acrescenta rigorosamente nada. Ele
podia ser caucasiano, negro, ou asiático que o que importaria para aqui era o
seu comportamento face aos maus tratos infligidos a seres humanos em posição de
mais fracos.
Além
do mais, para nós, acresce a admiração por António Vieira pois ele foi um profundo e fino
cultor da Língua portuguesa. Em plena época
em que imperava o estilo barroco, séc. XVII, Vieira distinguiu-se nos
seus escritos, pelo uso de uma oratória
individualmente trabalhada e que o singularizou de entre os seus pares
escritores da época e o alcandorou como o mais acabado exemplo de um estilo
rico que elevou a Língua
portuguesa, a patamares até aí desconhecidos, no tocante à estilística da
Língua.
Assim
o estudámos no Liceu e mais tarde o aprofundámos na Universidade.
Interessante
é que para nós cabo-verdianos que também estudámos a história da Cidade Velha,
a primeira capital deste Arquipélago, sempre nutrimos por este simpático
sacerdote, um carinho especial, pois que foi dele o primeiro grande elogio ao
cabo-verdiano, quando aqui passou uma temporada, incluído o Natal de 1653, na Cidade Velha, esperando pelo regresso ao
Brasil.
É
que foi da ilha de Santiago,que Vieira enviou uma carta ao rei D. João IV de
Portugal, em que dizia entre outras descrições elogiosas que fez dos religiosos
cabo-verdianos, o seguinte: “...Vi clérigos, negros como azeviche; tão doutos,
tão zelosos,(...) capazes de fazer inveja aos melhores do Reino.”
Este
elogio de Pe. A. Vieira foi repetido à exaustão, ao longo do tempo aqui nas
ilhas e por muitas gerações. Citado diversas vezes em discursos públicos por
políticos e outros, sempre de forma positiva. Antes e depois da independência
de Cabo Verde.
Outro
reparo elogioso que Pe. António Vieira nos fez nessa altura e na mesma missiva
dirigida ao rei foi que o cabo-verdiano tinha “particular talento para a
música,” isto é, possuía dotes para a música.
Dito
isto, questiono quem sabe se não terá sido o Padre António Vieira o primeiro – pelo menos dos primeiros – a chamar atenção e a
registar de forma escrita (1653) esta
particularidade/vocacional artística do ilhéu cabo-verdiano para a música?
Daí,
não admirar o quão chocada fiquei com o que se está passar com essa gente dita
activista, contra este homem religioso que desafiou o seu tempo na defesa dos
mais fracos e oprimidos com as armas que possuía e que por causa disso – como a sua voz e a sua pena incomodavam os
donos de escravos negros e que queriam fazer o mesmo aos índios – o padre foi
denunciado à Inquisição, pelos senhores do Brasil, como praticante herético e foi mandado de volta para o reino, Portugal, como prisioneiro da
Inquisição, para responder perante o Tribunal da Santa Inquisição. Ainda esteve
nos cárceres dessa temível organização católica de má memória – a Inquisição.
Sofreu injustamente, segundo os seus biógrafos.
Aqueles que o defenderam, o próprio rei D. João IV,
respeitavam-no pelo seu talento, saber e práticas humanistas. Daí, o terem-no
considerado inocente das acusações que sobre ele penderam, que mais não eram do que vinganças ardilosas pelos maiorais do Brasil. As cartas frequentes ao rei e aos que tinham poder em
Portugal, queixando-se dos desmandos dos grandes da então Colónia portuguesa,
eram provas da sua constante preocupação com a vida dos oprimidos.
A
história regista que o julgamento de Pe. António Vieira foi tortuoso e de
provas muito dífíceis para a sentença.
Libertado,
ei-lo em Roma – diz-se que a mando do rei para que Vieira, assim escapasse à
ira dos Inquisidores fanáticos – como parte da Legação portuguesa da Santa Sé.
Aí
permaneceu por algum tempo e ganhou a confiança e a admiração do Papa dada a
sua sapiência e a excelência de algumas homilias proferidas durante a estada na
Santa Sé.
E
agora, em 2020 gente ignorante, vandalizou a estátua do Padre António Vieira,
erigida pela Câmara Municipal de
Lisboa, fazendo pichagens com acusações injustas.
É
caso para recomendar a esses ditos fanáticos de derrube de estátuas, que leiam que hoje em dia com muita facilidade, através
da “net” se consultam os documentos sobre Pe. A. Vieira, indo até à Torre do
Tombo em Lisboa. Que leiam alguns Sermões. Eu recomendaria como suficiente para
o início, dois, a saber: o
«Sermão da Sexagésima» e o já aqui referido «Sermão de Santo António aos Peixes».
De caminho, leiam também algumas das muitas Cartas dirigidas ao rei D. João IV. Tenho a certeza que no fim, já
formulariam outro e diferente juízo deste Homem que foi grande – humanamente e
culturalmente – não deixando de ser um
homem do seu tempo – falou, escreveu e
defendeu o seu semelhante, sem olhar à raça, à cor ou à camada social de
pertença.
De
uma coisa lhes posso garantir, sairiam das leituras feitas muito mais cultos e
apetrechados para analisar e julgar Vieira no seu
tempo, entre os seus contemporâneos e, se calhar o considerar muito
progressista.
É que a cultura, a ilustração, ajudam e muito!
Apraz-me para o caso, citar
e partilhar o que escreveu Francisco Assis num dos seus artigos,
publicados no jornal «Público»: “Quando
um grupo de fanáticos precariamente alfabetizados invade e confisca o campo de
debate público, passa a haver sérios motivos de preocupação.”
Já
agora, acrescentaria que não é por acaso que existe nos Cursos de História em
Portugal, uma cadeira denominada “História
das Mentalidades”. Exactamente para prevenir e evitar que o
futuro Historiador fundamente e julgue o passado com os instrumentos de análise
de hoje.
Como remate deste escrito, menciono o
Presidente da República Portuguesa, Marcelo Rebelo
de Sousa que classificou o acto de vandalismo feito à estátua de Padre António
Vieira, de forma inequívoca, sem margens para dúvidas: “...trata-se de uma
grande imbecilidade”.
Ousada e estribada numa ignorância atrevida,
concluo eu.