A Terceira Lei de Newton
Por achar
oportuno e bem conseguido o texto que se segue da autoria da engenheira Mônica
Pinto Ribeiro do jornal Observador; com a devida vénia à autora, e ao Jornal, tomámos a
liberdade de o publicar, uma vez que aborda um tema de interesse do leitor do
Coral-Vermelho. E para o ilustrar aqui se transcreve a súmula do mesmo assunto
explanado no texto e feita pela autora: “Livros clássicos e contemporâneos arrastam-se cabisbaixos ao
verem que há quem discuta seriamente reescrevê-los à medida dos fanáticos e dos
ignorantes. Mas cada acção tem uma reacção - é da Física. (…) Apanhados nas teias do tribunal popular, que se
alimenta do equívoco, que acusa, julga e condena à medida de interesses e
ideologias, muitos são os livros que se queixam, indignados com as acusações de
que são alvo.”
Por Mônica Pinto Ribeiro*
Clássicos de sempre, lidos e relidos, geração
após geração, habituados ao respeito que se deve à cultura e àqueles que a ela
se dedicam, repousavam tranquilos nas estantes, alheios aos ventos de mudança
que o extremismo à esquerda e à direita preparava com a diligência dos
fanáticos e a cegueira dos ignorantes.
Das bibliotecas e das nossas estantes chegam,
agora, murmúrios de receio, pois, não se sabe exactamente como, de repente, o
impensável se tornou opção, o absurdo se vestiu de normal, a intolerância
perdeu pudor e já quase tudo lhe é permitido.
Alarmados, os livros marcam, ao melhor estilo das
nossas empresas públicas de transportes, um plenário para discutir o problema e
definir formas de luta.
Consta que a Cinderela e a Branca
de Neve são perigosas influências para as crianças e suas relações com
as respectivas madrastas, a que se vem juntar, no caso da Branca de Neve, o
infame pecado de ser branca… como a neve.
Parece que os livros do Tintim são, afinal,
colonialistas e racistas, disseminadores de estereótipos e preconceitos que
desrespeitam os descendentes de milhões de oprimidos por anos de colonização.
O livro do capuchinho vermelho é acusado de
normalizar o uso excessivo da força contra o lobo mau.
A colecção do Astérix, vendo-se acusada de
reforçar uma visão estereotipada dos países e dos seus povos, procura em vão
lembrar que o humor vive, em grande parte, da caricatura e do excesso.
Uns insurgem-se e prometem luta, outros,
aturdidos, recuam envergonhados, culpados de expressar uma qualquer ideia
contrária a um dos lados das barricadas erguidas por extremistas à esquerda e à
direita.
Tentam explicar que, noutros livros, fala-se de
regimes autoritários que, em tempos idos, na velha Europa, queimaram e
censuraram livros e recordam que em muitos outros livros conta-se a História
que é preciso conhecer para compreender o enquadramento social, cultural e
político de cada época, exercício indispensável para se apreciar, entender e
respeitar qualquer obra que se leia.
E eis que chega o dicionário, o livro que é pai
das palavras. E, como todos os pais, sai em defesa dos filhos.
Começa com o exemplo da palavra ”preconceito”,
injustamente maltratada, cujo significado ficou refém de uma conotação
pejorativa, que impede os mais apressados de compreender o seu verdadeiro
sentido.
Diz que a palavra “preconceito” está arrasada,
deprimida, sente-se incompreendida, é vítima de bullying, sofre
porque todos falam mal dela. Não tem amigos.
E a palavra “preconceito” não é a única a ver a
sua saúde mental comprometida pois, garante o dicionário, há inúmeros casos de
palavras que já ninguém respeita, como civilidade, ética, dever, coerência,
honestidade, decência, responsabilidade, humildade…. Com a idade, foram
trocadas por outras, como carisma, força, mediatismo, popularidade… enfrentam
um sério problema de autoestima.
O dicionário refere o caso especialmente
preocupante da palavra ”verdade”, abalada por uma grave crise de identidade. Já
ninguém sabe o que é a verdade.
Nos jornais, televisões e redes sociais, vê-se
políticos e cidadãos a faltar à verdade, a juntar, em discursos vazios,
desventuradas palavras que se encolhem vexadas, quando se descobrem metidas em
tão lamentáveis preparos.
Durante a pandemia, boatos e mentiras contestaram
a opinião de especialistas, desvalorizaram recomendações médicas, promoveram a
desconfiança contra as vacinas e acabaram por custar a vida a muitos daqueles
que, enganados, trocaram o saber científico por teorias da conspiração e
esqueceram o significado da palavra “verdade”.
Depois há o caso das palavras “fascismo” e
“radicalismo”, que, de tão solicitadas, sentem-se exaustas, à beira de um burnout. Vulgarizadas,
aplicadas em excesso e por excesso, descobrem-se, subitamente, apartadas da
importância que carregam. Antes usadas com a prudência que o seu significado
impõe, são, hoje, utilizadas sem o cuidado, a solenidade e o recato que
costumavam merecer.
Aos adjectivos, determinantes, pronomes e artigos
há quem queira retirar as letras que lhes definem o género, amputando-os dos
seus vetustos “a” e “o”’ para enxertar o indiferenciado “e”, transformando-os
num Frankenstein ortográfico, sugestão a que o livro de Mary Shelley reage com
pesar, pois, melhor do que ninguém, sabe que os monstros acabam,
inevitavelmente, por virar-se contra aqueles que cometem a imprudência de os
criar.
Diz o dicionário que, entre livros, palavras e o
uso que deles fazem os homens, reina o caos no mundo das humanidades e das
ciências.
Os problemas alastram e, psicologicamente afectados,
há inúmeros livros e palavras a aguardar consultas no SNS, mas tardam em ser
chamados, dizem-lhes que estão em lista de espera…
O dicionário regressa à palavra “preconceito”
para explicar que somos todos preconceituosos porque, sendo o preconceito o
resultado das nossas próprias experiências e do que ouvimos e vemos ao longo da
vida, todos, sem excepção, formamos, involuntariamente, ideias pré-concebidas
sobre a maioria dos temas.
Mais explica o dicionário que o preconceito é uma
forma de aprendizagem e uma consequência desse mesmo processo de aprendizagem e
que o problema não está nos nossos preconceitos, mas no que fazemos com
eles e, por isso, a palavra que interessa é “escolha”.
Mais do que depressa, o livro Harry
Potter e a Câmara dos Segredos junta-se à discussão para citar um dos
seus personagens, Albus Dumbledore, que, muito oportunamente, explicou ao
protagonista da saga que aquilo que nos define não é o que somos, mas as nossas
escolhas.
Embalado pela achega de “Harry Potter”, o
dicionário explica que, vez por outra, todos somos testados pelos nossos
preconceitos e que o verdadeiro desafio reside em sermos capazes de, na solidão
das nossas reflexões, reconhecer a diferença entre o certo e o errado e fazer
as boas escolhas, decidindo não de acordo com os nossos preconceitos, mas
apesar desses preconceitos.
O dicionário esboça um sorriso triste e recorda
que, outrora orgulhosos, muitos dos nossos livros, clássicos e contemporâneos,
arrastam-se, hoje, cabisbaixos, perplexos por perceberem que há quem discuta,
seriamente (se é que tal advérbio pode ser aqui utilizado…) a possibilidade de
excluir ou reescrever determinadas obras à medida dos que renegam a ciência e
dos que não enquadram, não pensam e não percebem que os livros são, sempre, um
reflexo do seu tempo e um ponto de partida para compreender a evolução desse
mesmo tempo.
A leitura, a educação, a ponderação justa e
equilibrada de contextos e conjunturas promovem a compreensão do outro e são a
base para o respeito e a sã convivência entre diferentes culturas, única forma
de promover, verdadeiramente, o entendimento entre pessoas e povos e evitar
derivas autoritárias e extremistas, contrárias aos valores das democracias
ocidentais.
Esgotado o anacrónico discurso do proletariado
contra o grande capital, a esquerda radical teve de se reinventar e fez das
causas identitárias e do activismo climático radical as suas novas bandeiras,
promovendo e exacerbando as suas manifestações mais extremadas.
Era apenas uma questão de tempo até que os
excessos defendidos e cometidos, viessem cobrar a sua factura.
Essa factura chegou-nos da extrema-direita,
através de fenómenos mais recentes, mas igualmente perigosos, como o
negacionismo, o terraplanismo, o criacionismo e outros “ismos”, que ignoram o
saber científico, muitas vezes a duras penas conquistado.
Hoje, muitos são os que, alheios aos conselhos
daqueles que escrevem e lêem os livros, decidem contestar a importância das
vacinas, negar as alterações climáticas, afirmar que a terra é plana,
contrariar a teoria da evolução e declarar falsa a chegada do homem à lua…
O problema de negar o conhecimento científico é
que, ao contrário do que acontece com as letras, o mundo da ciência está
assente em leis que os homens não podem mudar ou interpretar ao sabor da sua
vontade ou ideologia.
Com o resultado das últimas sondagens à vista de
todos e com aquilo que se vai assistindo nos Estados Unidos e um pouco por toda
a Europa, muitos se interrogam sobre os motivos do crescimento da extrema-direita.
A resposta a essa questão está, como não poderia
deixar de ser, nos livros, mais precisamente naqueles que nos ensinam as leis
da física.
Posto isto, é chegada a hora de regressar aos
trabalhos do plenário para assistir à intervenção do honorável livro Philosophiae,
Naturalis, Principia, Mathematica, publicado por Isaac Newton no século
XVI.
O ilustre livro começa por explicar que a
Terceira Lei de Newton, nele enunciada (também conhecida por Princípio da acção-reacção),
estabelece que cada acção de intensidade, direcção e sentido exige uma força de
sentido contrário e igual direcção e intensidade para, de seguida, concluir
que, em consequência da citada Lei, o crescimento da extrema direita será tanto
maior quanto maior se mantiver o extremismo à esquerda. Física pura…
O plenário já vai longo quando os livros,
cansados e preocupados com este mundo em que os extremos se tocam, esmagando o
centro, habitual reduto da sensatez e do bom senso, declaram-se inconformados,
decidem que irão lutar e que o farão com as suas armas de sempre, o
conhecimento que acolhem nas suas páginas.
Generosos, os livros disponibilizam-se para ser
lidos até à exaustão. Não se importam de fazer horas extras, de adiar as férias
e prescindir de fins de semana, de estar na linha da frente e de passar de um
leitor para outro, sem descanso. Fá-lo-ão até que as suas páginas se soltem e
se percam, até que as suas letras se esbatam, até que voltem a ser fonte
privilegiada de saber, até que as pessoas reaprendam a pensar…
Os livros, remédio para as dores da alma
e terapêutica segura contra a ignorância, são de venda livre, podem ser
consumidos sem moderação, diariamente, a qualquer hora, em qualquer lugar, por
adultos e crianças, antes ou depois das refeições e causam habituação.
Nesta contenda, estou, como sempre, ao lado das
palavras e dos livros, a quem aproveito para homenagear pois, companheiros de
uma vida, quando me chega a dúvida, me falta a calma ou me assolam as
angústias, é neles que encontro distracção, conforto, conselho, inspiração e
que recupero a fé na humanidade.
*In: Jornal Observador de 28 de
Janeiro de 2024.