segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

 

A Terceira Lei de Newton

Por achar oportuno e bem conseguido o texto que se segue da autoria da engenheira Mônica Pinto Ribeiro do jornal Observador; com a devida vénia à autora, e ao Jornal, tomámos a liberdade de o publicar, uma vez que aborda um tema de interesse do leitor do Coral-Vermelho. E para o ilustrar aqui se transcreve a súmula do mesmo assunto explanado no texto e feita pela autora:Livros clássicos e contemporâneos arrastam-se cabisbaixos ao verem que há quem discuta seriamente reescrevê-los à medida dos fanáticos e dos ignorantes. Mas cada acção tem uma reacção - é da Física. (…) Apanhados nas teias do tribunal popular, que se alimenta do equívoco, que acusa, julga e condena à medida de interesses e ideologias, muitos são os livros que se queixam, indignados com as acusações de que são alvo.”

 

 

Por Mônica Pinto Ribeiro*

Clássicos de sempre, lidos e relidos, geração após geração, habituados ao respeito que se deve à cultura e àqueles que a ela se dedicam, repousavam tranquilos nas estantes, alheios aos ventos de mudança que o extremismo à esquerda e à direita preparava com a diligência dos fanáticos e a cegueira dos ignorantes.

Das bibliotecas e das nossas estantes chegam, agora, murmúrios de receio, pois, não se sabe exactamente como, de repente, o impensável se tornou opção, o absurdo se vestiu de normal, a intolerância perdeu pudor e já quase tudo lhe é permitido.

Alarmados, os livros marcam, ao melhor estilo das nossas empresas públicas de transportes, um plenário para discutir o problema e definir formas de luta.

Consta que a Cinderela e a Branca de Neve são perigosas influências para as crianças e suas relações com as respectivas madrastas, a que se vem juntar, no caso da Branca de Neve, o infame pecado de ser branca… como a neve.

Parece que os livros do Tintim são, afinal, colonialistas e racistas, disseminadores de estereótipos e preconceitos que desrespeitam os descendentes de milhões de oprimidos por anos de colonização.

O livro do capuchinho vermelho é acusado de normalizar o uso excessivo da força contra o lobo mau.

A colecção do Astérix, vendo-se acusada de reforçar uma visão estereotipada dos países e dos seus povos, procura em vão lembrar que o humor vive, em grande parte, da caricatura e do excesso.

Uns insurgem-se e prometem luta, outros, aturdidos, recuam envergonhados, culpados de expressar uma qualquer ideia contrária a um dos lados das barricadas erguidas por extremistas à esquerda e à direita.

Tentam explicar que, noutros livros, fala-se de regimes autoritários que, em tempos idos, na velha Europa, queimaram e censuraram livros e recordam que em muitos outros livros conta-se a História que é preciso conhecer para compreender o enquadramento social, cultural e político de cada época, exercício indispensável para se apreciar, entender e respeitar qualquer obra que se leia.

E eis que chega o dicionário, o livro que é pai das palavras. E, como todos os pais, sai em defesa dos filhos.

Começa com o exemplo da palavra ”preconceito”, injustamente maltratada, cujo significado ficou refém de uma conotação pejorativa, que impede os mais apressados de compreender o seu verdadeiro sentido.

Diz que a palavra “preconceito” está arrasada, deprimida, sente-se incompreendida, é vítima de bullying, sofre porque todos falam mal dela. Não tem amigos.

E a palavra “preconceito” não é a única a ver a sua saúde mental comprometida pois, garante o dicionário, há inúmeros casos de palavras que já ninguém respeita, como civilidade, ética, dever, coerência, honestidade, decência, responsabilidade, humildade…. Com a idade, foram trocadas por outras, como carisma, força, mediatismo, popularidade… enfrentam um sério problema de autoestima.

O dicionário refere o caso especialmente preocupante da palavra ”verdade”, abalada por uma grave crise de identidade. Já ninguém sabe o que é a verdade.

Nos jornais, televisões e redes sociais, vê-se políticos e cidadãos a faltar à verdade, a juntar, em discursos vazios, desventuradas palavras que se encolhem vexadas, quando se descobrem metidas em tão lamentáveis preparos.

Durante a pandemia, boatos e mentiras contestaram a opinião de especialistas, desvalorizaram recomendações médicas, promoveram a desconfiança contra as vacinas e acabaram por custar a vida a muitos daqueles que, enganados, trocaram o saber científico por teorias da conspiração e esqueceram o significado da palavra “verdade”.

Depois há o caso das palavras “fascismo” e “radicalismo”, que, de tão solicitadas, sentem-se exaustas, à beira de um burnout. Vulgarizadas, aplicadas em excesso e por excesso, descobrem-se, subitamente, apartadas da importância que carregam. Antes usadas com a prudência que o seu significado impõe, são, hoje, utilizadas sem o cuidado, a solenidade e o recato que costumavam merecer.

Aos adjectivos, determinantes, pronomes e artigos há quem queira retirar as letras que lhes definem o género, amputando-os dos seus vetustos “a” e “o”’ para enxertar o indiferenciado “e”, transformando-os num Frankenstein ortográfico, sugestão a que o livro de Mary Shelley reage com pesar, pois, melhor do que ninguém, sabe que os monstros acabam, inevitavelmente, por virar-se contra aqueles que cometem a imprudência de os criar.

Diz o dicionário que, entre livros, palavras e o uso que deles fazem os homens, reina o caos no mundo das humanidades e das ciências.

Os problemas alastram e, psicologicamente afectados, há inúmeros livros e palavras a aguardar consultas no SNS, mas tardam em ser chamados, dizem-lhes que estão em lista de espera…

O dicionário regressa à palavra “preconceito” para explicar que somos todos preconceituosos porque, sendo o preconceito o resultado das nossas próprias experiências e do que ouvimos e vemos ao longo da vida, todos, sem excepção, formamos, involuntariamente, ideias pré-concebidas sobre a maioria dos temas.

Mais explica o dicionário que o preconceito é uma forma de aprendizagem e uma consequência desse mesmo processo de aprendizagem e que o problema não está nos nossos preconceitos, mas no que fazemos com eles e, por isso, a palavra que interessa é “escolha”.

Mais do que depressa, o livro Harry Potter e a Câmara dos Segredos junta-se à discussão para citar um dos seus personagens, Albus Dumbledore, que, muito oportunamente, explicou ao protagonista da saga que aquilo que nos define não é o que somos, mas as nossas escolhas.

Embalado pela achega de “Harry Potter”, o dicionário explica que, vez por outra, todos somos testados pelos nossos preconceitos e que o verdadeiro desafio reside em sermos capazes de, na solidão das nossas reflexões, reconhecer a diferença entre o certo e o errado e fazer as boas escolhas, decidindo não de acordo com os nossos preconceitos, mas apesar desses preconceitos.

O dicionário esboça um sorriso triste e recorda que, outrora orgulhosos, muitos dos nossos livros, clássicos e contemporâneos, arrastam-se, hoje, cabisbaixos, perplexos por perceberem que há quem discuta, seriamente (se é que tal advérbio pode ser aqui utilizado…) a possibilidade de excluir ou reescrever determinadas obras à medida dos que renegam a ciência e dos que não enquadram, não pensam e não percebem que os livros são, sempre, um reflexo do seu tempo e um ponto de partida para compreender a evolução desse mesmo tempo.

A leitura, a educação, a ponderação justa e equilibrada de contextos e conjunturas promovem a compreensão do outro e são a base para o respeito e a sã convivência entre diferentes culturas, única forma de promover, verdadeiramente, o entendimento entre pessoas e povos e evitar derivas autoritárias e extremistas, contrárias aos valores das democracias ocidentais.

Esgotado o anacrónico discurso do proletariado contra o grande capital, a esquerda radical teve de se reinventar e fez das causas identitárias e do activismo climático radical as suas novas bandeiras, promovendo e exacerbando as suas manifestações mais extremadas.

Era apenas uma questão de tempo até que os excessos defendidos e cometidos, viessem cobrar a sua factura.

Essa factura chegou-nos da extrema-direita, através de fenómenos mais recentes, mas igualmente perigosos, como o negacionismo, o terraplanismo, o criacionismo e outros “ismos”, que ignoram o saber científico, muitas vezes a duras penas conquistado.

Hoje, muitos são os que, alheios aos conselhos daqueles que escrevem e lêem os livros, decidem contestar a importância das vacinas, negar as alterações climáticas, afirmar que a terra é plana, contrariar a teoria da evolução e declarar falsa a chegada do homem à lua…

O problema de negar o conhecimento científico é que, ao contrário do que acontece com as letras, o mundo da ciência está assente em leis que os homens não podem mudar ou interpretar ao sabor da sua vontade ou ideologia.

Com o resultado das últimas sondagens à vista de todos e com aquilo que se vai assistindo nos Estados Unidos e um pouco por toda a Europa, muitos se interrogam sobre os motivos do crescimento da extrema-direita.

A resposta a essa questão está, como não poderia deixar de ser, nos livros, mais precisamente naqueles que nos ensinam as leis da física.

Posto isto, é chegada a hora de regressar aos trabalhos do plenário para assistir à intervenção do honorável livro Philosophiae, Naturalis, Principia, Mathematica, publicado por Isaac Newton no século XVI.

O ilustre livro começa por explicar que a Terceira Lei de Newton, nele enunciada (também conhecida por Princípio da acção-reacção), estabelece que cada acção de intensidade, direcção e sentido exige uma força de sentido contrário e igual direcção e intensidade para, de seguida, concluir que, em consequência da citada Lei, o crescimento da extrema direita será tanto maior quanto maior se mantiver o extremismo à esquerda. Física pura…

O plenário já vai longo quando os livros, cansados e preocupados com este mundo em que os extremos se tocam, esmagando o centro, habitual reduto da sensatez e do bom senso, declaram-se inconformados, decidem que irão lutar e que o farão com as suas armas de sempre, o conhecimento que acolhem nas suas páginas.

Generosos, os livros disponibilizam-se para ser lidos até à exaustão. Não se importam de fazer horas extras, de adiar as férias e prescindir de fins de semana, de estar na linha da frente e de passar de um leitor para outro, sem descanso. Fá-lo-ão até que as suas páginas se soltem e se percam, até que as suas letras se esbatam, até que voltem a ser fonte privilegiada de saber, até que as pessoas reaprendam a pensar…

Os livros, remédio para as dores da alma e terapêutica segura contra a ignorância, são de venda livre, podem ser consumidos sem moderação, diariamente, a qualquer hora, em qualquer lugar, por adultos e crianças, antes ou depois das refeições e causam habituação.

Nesta contenda, estou, como sempre, ao lado das palavras e dos livros, a quem aproveito para homenagear pois, companheiros de uma vida, quando me chega a dúvida, me falta a calma ou me assolam as angústias, é neles que encontro distracção, conforto, conselho, inspiração e que recupero a fé na humanidade.

*In: Jornal Observador de 28 de Janeiro de 2024.

 

Da verdade de cada um e cada qual no debate político

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

 

Por Adriano Miranda Lima[i]

Para desgosto dos que acreditam piamente nas virtudes da democracia liberal, é cada vez mais corrente a ideia de que a política é o campo das relações humanas onde a palavra verdade sofre os mais graves tratos de polé. Claro que é fenómeno que só podia observar-se na democracia, porque nos regimes autoritários a verdade é só uma, a de quem captura e manipula o poder. Dir-se-á que aí a palavra verdade é apagada dos dicionários. O exemplo mais flagrante nos nossos dias vem da Rússia de Putin, mas não só, porque angustiosamente vamos acompanhando os sinais de recessão da democracia um pouco por todo o lado, como aconteceu recentemente na Argentina de Milei.

Mas, afinal, o que é a verdade, a questão que nos interpela? A semiótica conduz-nos a vários significados da palavra. Se é a verdade do ponto de vista judicial, trata-se da conformidade com factos apurados numa dada circunstância. Se é a verdade histórica, a questão tem a ver com hermenêutica. Se é a verdade científica, é o resultado da interpretação da realidade através da razão e dos instrumentos e técnicas disponíveis num dado momento.

Fazendo uso de uma curiosa metáfora, um amigo e correspondente afirmou-me que a verdade é “um ponto no infinito”. Inclinar-me-ia a pensar que a verdade na política é a que mais devia tentar aproximar-se desse “ponto no infinito”, já que o infinito é para onde tenderá a verdade absoluta, total e universal, quer dizer, a verdade na sua acepção metafísica. O filósofo é quem especula e teoriza sobre a verdade absoluta, enquanto para o político ela é, ou devia ser, a referência ética que lhe inspira as congeminações da retórica discursiva com que procura convencer o eleitorado e pleitear com o adversário político. Assim, o conceito de verdade que lhe interessa é de natureza epistemológica, é o que se traduz em realidades objectivas abarcando estes três mundos coexistentes: o mundo que os sentidos apreendem; o mundo das emoções; o mundo das concepções. Ora, é a inter-relação entre esses mundos que define o campo das experiências sociais onde o homem busca conhecer-se e confrontar-se com os desafios da sua existência. E é ali que ele procura conceptualizar ideias e soluções para viver em sociedade numa relação de partilha e disputa com o seu semelhante e de envolvimento com o meio natural.

Mas é a realidade política que a toda a hora nos fornece evidências da degradação a que está hoje sujeito o debate de ideias, por culpa de actores políticos que, não ignorando a verdade kantiana de que “os conceitos são transitórios e só a verdade é definitiva”, contudo pouco fazem para valorizar e dignificar as ideias que perfilham. E é desta forma que a actividade nobre que é a política se vê frequentemente emporcalhada por linguagem agressiva, ordinária e panfletária, as mais das vezes como recurso para preencher o vazio das ideias.

Basta assistir a um debate parlamentar para colher os exemplos mais diversos. A rejeição sistemática das soluções políticas do adversário é incompreensível, quando não se tem alternativas válidas e devidamente fundamentadas. Discursos ambíguos, vazios e muitas vezes contraditórios só para contrapor ao argumento do partido opositor, pode valer como espectáculo circense, mas atenta contra a dignidade do debate político. Proclamar que tudo o que fez o adversário está errado e que importa derrogá-lo em proveito da minha solução, evidencia uma visão maniqueísta da realidade, entorpece a discussão democrática e estorva a resolução dos problemas colectivos. O mais grave é quando forças políticas com representação parlamentar exponenciam no seu discurso a expressão mais odiosa e violenta da sua oposição aos valores do próprio regime democrático. Lamentavelmente, tornou-se banal chamar mentiroso, ou simplesmente insinuá-lo, a um adversário no parlamento, coisa que noutras circunstâncias teria de exigir retractação imediata. Longe vai o tempo em que injúrias desta natureza exigiam lavagem de honra com sangue, como aconteceu em 1908 entre os deputados Dr. Afonso Costa, republicano, e conde de Penha Garcia, monárquico, num duelo de espadas que, felizmente, terminou sem danos físicos para além de um ligeiro ferimento num braço do deputado republicano.

Posto isto, seria enterrar a cabeça na areia se não se reconhecesse que a verdade e a política dificilmente se conciliam quando são os próprios políticos que, com a sua prática, contribuem muitas vezes para a denegação de ambos. A solução reabilitadora da política consistirá em carrear para as suas fileiras os melhores da sociedade nas ciências, na cultura e nas artes. Mas isso não se resolve com uma varinha mágica. É preciso que toda a nação convirja nesse sentido. É preciso que quem aceite um cargo político não seja logo à partida alvo de suspeição ou vigilância judicial. E interessará que a comunicação social saiba reabilitar-se para não se confundir com as redes sociais, deixando de ser meio difusor do que pior acontece no país, enquanto silencia ou coloca em nota de rodapé o que prestigia e promove o país, com ganhos para a auto-estima nacional.



[i] Escreve conforme a ortografia anterior ao AO90

Salvé! 13 de Janeiro sempre!

sábado, 13 de janeiro de 2024

 


Dia ímpar por nós vivido no ano de 1991, em Cabo Verde.

Nunca é demais recordar aquele dia em que pela primeira vez (foi mesmo a primeira vez!) na nossa história recente, o povo de Cabo Verde se tornou eleitor livre, com verdadeira opção; e foi chamado às urnas para depositar o seu voto, que representava a sua livre escolha de Deputados, agregados a um dos dois Partidos políticos na altura, o PAICV (Partido Africano da Independência de Cabo Verde) e o MPD, Movimento para a Democracia) para o Parlamento nacional.

Sim, vivemo-lo – o 13 de Janeiro de 1991 – com intensa emoção! Com um sentimento de liberdade e com a profunda convicção no advento da democracia que percorriam com intensidade, estas ilhas atlânticas.  

Os resultados das urnas – vitória para um, e derrota para outro – foram importantes sim, porque propunham uma mudança, uma alternativa. Mas o mais importante de tudo, e que constitui a essência da celebração hoje, do 13 de Janeiro, é a liberdade de escolha eleitoral que trouxe a cada cidadão das nove ilhas do Arquipélago.

O 13 de Janeiro de 1991, foi pensado e edificado por homens e mulheres deste pequeno país insular, que sempre almejaram a sua liberdade e acreditavam nas virtudes da democracia.

O 13 de Janeiro de 1991, trouxe a cada cabo-verdiano a noção plena do Ser cidadão, dando-lhe a capacidade e o poder de escolher - sem quaisquer outros condicionalismos que não seja a sua consciência - o seu representante, para as tarefas ingentes da administração e do desenvolvimento do país. Esta é a virtude-mor do 13 de Janeiro de 1991 e razão pela qual, com um sentimento de recuperação da dignidade humana – liberdade – e de pertença à causa democrática, o celebramos anualmente, recordando-o com consideração, alegria, exaltação e muito apreço.

 Acontece que, ao receber hoje, o “bom dia” habitual dos nossos filhos, o mais novo, (que naquela altura ainda se encontrava em casa paterna, estudante liceal) acrescentou que jamais esquecerá a forma entusiástica e exultante, como vivenciou o 13 de Janeiro de 1991. Tinha ele 15 anos. Percorreu, na companhia do pai as ruas da cidade da Praia, que estavam em festa, tamanha era a alegria de todos para esse despertar de liberdade e da democracia que a partir de aí passou a ser norma e lei em Cabo Verde.

De facto, já se passaram 33 anos sobre aquele momento histórico inolvidável e a sensação de euforia inexcedível e profunda como o vivemos, permanece em nós, suas testemunhas, como um marco de suprema referência da História de Cabo Verde.

E tal como comecei este escrito, assim o vou terminar: Salvé! 13 de Janeiro, sempre!