Eis
um assunto histórico que sempre despertou em mim uma grande curiosidade, as
visitas indesejadas e temidas dos piratas, a Cabo Verde.
Mas
mais, a minha curiosidade tem sido maior ao longo da vida, em relação aos assaltos dos piratas à ilha do
vulcão, as quais, como tudo indica, não foram assim tão poucas..
Acontece
que cresci na Ilha do Fogo, só lá não nasci por um acaso, pois os meus pais e
os meus irmãos mais velhos, tiveram de viajar do Fogo, via Mindelo, para Portugal de
urgência, por motivos de saúde. E então eu nasci a bordo do vapor, em viagem
para Lisboa. Embora também goste do local do meu nascimento: o mar!
Voltando
aos terríveis piratas que são o foco deste escrito, sempre direi que desde
miúda, pude perceber e guardei muito bem
essa memória, de que na minha ilha, uma das maiores ofensas que se podiam
proferir, dirigindo-se a alguém, era o ápodo de “Pirata.” Era algo de muito
grave. Era considerada uma enorme injúria, chamar-se a alguém: “Pirata!”. Ou,
pior ainda: “Filho de Pirata!”. Isso
então,dava direito a brigas e a zangas sérias.
Mais
tarde, com o andar dos séculos, com a passagem dos tempos, com o esquecimento
do inferno que fora sempre, a chegada
dos piratas saqueadores, e com a evolução semântica do termo, “pirata”,
“piratinha,” que conservou a conotação negativa - pois que justamente aplicado
a ladrões, marginais e a deliquentes juvenis - o termo perdeu a pesada carga
injuriosa que carreou no passado da ilha, quando então era o “trunfo” máximo de
ofensa numa altercação entre vizinhos e/ou
entre outros contendores.
A
então Vila de São Filipe foi várias vezes assaltada por estes "terroristas" do
mar que não estavam autorizados a navegar no oceano dividido - Tratado de Tordesilhas assinado em 1494 -
entre espanhóis e portugueses e tudo isto durante séculos XV, XVI e XVII,
sobretudo neste último século (XVII), os assaltos sucederam-se com maior
frequência pois que já havia mais casas, mais templos construídos, igrejas e
capelas, um pouco por toda a ilha. Os piratas
saqueavam e roubavam tudo,
inclusivamente casas da gente mais abastada da Vila de São Filipe.
Os
Corsários e Piratas eram fundamentalmente, ingleses, franceses e holandeses.
O
Historiador Christiano José de Senna Barcellos (Brava 1854 – 1915) no seu
Volume I dos «Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné» Edição da BNL
2003, descreve com pormenores o que foi o saque da então Vila de São Filipe em
Julho de 1655, por ele considerado dos mais violentos, operado por piratas
holandeses.
O
trecho que se segue, retirado do Volume I, pags. 245/246 narra-nos o seguinte:
“ Em Julho de 1655 aportou à ilha do
Fogo uma nau holandesa, guiada por portugueses. Os holandeses saquearam a vila
de São Filipe durante quatro dias, aprisionando mulheres, crianças e o vigário
da matriz, sendo todos resgatados a troco de muitas fazendas. Quebraram e
profanaram as imagens da igreja, e roubaram o oiro, pratas, ornamentos e sinos,
escapando ao saque o Santissímo e o cofre que haviam sido escondidos por um
beneficiado.
O Capitão-mór Francisco Lobo de Barros
não estava na Vila quando se deu o saque, que foi repentino, e da mesma forma
não estavam o alferes, o sargento e cabo de esquadra! Desprevenidos e enganadas
as vigias e sentinelas (...)
Levaram
armas e munições, deixaram a Vila de São Filipe em mísero estado.
Mais
tarde, foram castigadas e despromovidas, as autoridades que não estavam nos
seus postos. O Rei D. João IV, ordenou que se desse tudo o que à Igreja matriz
de São Filipe, havia sido roubado pelos holandeses, ao mesmo tempo que censurou as autoridades da ilha pela ausência
da ilha e pelo abandono do seus postos. Por isso, e doravante, passou a ser nomeado para o lugar de capitão e
sargento-mór, um perfil militar que dava mais segurança na defesa e no zelo da
ilha.
E
como este, outros ataques de piratas se sucederam na maltratada ilha.
Daí que fosse natural que os habitantes da
ilha do Fogo, não guardassem boas memórias desses malfeitores que vinham do mar;
os quais, para além de lhes roubarem tudo o que era mais valioso, violavam-lhes
as mulheres, deixando algumas vezes, filhos dessa horrenda violação. Por isso,
entendemos bem, a ofensa grande que era, apodar-se alguém de “filho de pirata”.
Muitas
historietas e lendas se construiram à volta desses malfeitores vindos do mar,
volto a repetir.
Conta-se
igualmente que a determinada altura, foram escolhidos jovens que possuíam voz potente e que avistavam do cume da serra
mais alta da ilha, as velas dos barcos de piratas na linha do horizonte, e
quando aconteciam esses avistamentos, gritavam algo semelhante a: “Pirata à
vista!!.” O grito anunciador dava azo a que “corredores alvissareiros” fossem à
Vila, avisar o padre e as autoridades da iminente chegada. Ouvia-se então, e
era escutado com aflição, o rebate dos sinos da Igreja de Nª Senhora da
Conceição, cujos sons, o tipo de toque, transmitiam aos moradores, a
aproximação dos bandidos vindos do mar. Por vezes, e quando havia calmaria, a
aproximação dos navios do fundeadouro,
levava mais tempo e tal facto, dava tempo também a que os habitantes fugissem
da Vila em direcção ao sul, e ao norte da ilha levando consigo, alguns bens
considerados mais valiosos. Outras vezes, os moradores e as autoridades eram
apanhados de surpresa com a chegada da pirataria e tinham de largar tudo e
fugir a “sete pés”.
E
histórias há que narram que alguns moradores, mais ricos, levavam caixas com
ouro e prata e que as escondiam em buracos cavados na terra, em determinados
sítios e que, passada a tormenta, iam à procura delas. Acontecia que na
aflição, alguns se esquecessem do sítio onde haviam enterrado, as caixas com
jóias e com objectos de valor. Então ficavam aí enterradas “ad eternum”,
configurando-se à volta disso, lendas e historietas locais, e algum anedotário
que daí também se originou.
Outras
vezes enganavam-se – na pressa da fuga -
no baú ou, na caixa a levar. Ao invés de carregarem a caixa com objectos
de valor, levavam a caixa com roupas, ou
com objectos sem qualquer valor, deixando - literalmente - o “ouro ao bandido.”
Todos
sabemos que estas ilhas foram assoladas e saqueadas, não poucas vezes, por
piratas e corsários holandeses, franceses e ingleses. Sabemos dos assaltos e
dos saques à Cidade Velha, antiga capital da sua quase destruição feita por
piratas, e que por isso, se transferiu a capital de Cabo Verde, para a Praia.
Nomes
há que se sobressairam no meio dos piratas e dos corsários saqueadores
violentos das ilhas e, particularmente da Cidade Velha, o inglês Francis Drake,
o francês Jacques Cassard, entre outros, e tristemente célebres destruidores de
vilas e da cidade destas pobres ilhas.
Piratas
e corsários que matavam, que saqueavam, tudo que encontravam pela frente e que
violavam mulheres. Daí terem deixado em algumas ilhas, alguma
descendência. Filhos – que do pai nunca haveriam de ouvir falar, pois o
desconhecimento seria total e para sempre.
Desta
forma, podemos compreender o quão injurioso e acintoso era chamar-se a alguém:
“Filho de Pirata!”
Não
admira pois, a ira e a aversão secular que na ilha do Fogo, se nutriu pelos
piratas.
E
pensar que as viagens dos corsários com a finalidade de pilharem não só as naus portuguesas e
espanholas, mas também de saquearem vilas e cidades, foram realizadas com a
benção e o beneplácito régio dos respectivos países.
Nos
dias de hoje na cidade de São Filipe ainda existem vestígios (simbólicos) da passagem de piratas e que são reveladores da
tal ira secular que os sanfilipenses, nutriram pelos bandidos vindos do mar.
Para exemplo, quando alguém quer mostrar a sua
contrariedade, a sua forte oposição a
algo feito, ou pela Câmara Municipal ou, pelo Governo, coloca à janela uma
bandeira de pirata (com fundo preto, a caveira com o lenço vermelho e as duas
espadas traçadas) para simbolizar que está em total desacordo com o que se fez
ou, com o que se pretende fazer e com isso demonstrar também, algum desprezo por tal situação.
Voltando
ao título deste escrito, coloco uma questão: quando é que algum Historiador
nosso, se abalançará para nos narrar com factos e datas investigadas, os muitos
assaltos de piratas e de corsários nestas ilhas? No fundo, uma História
específica da pirataria em Cabo Verde.
Afinal,
a história da Pirataria em Cabo Verde, é parte e faz parte integrante da
História já bem antiga deste Arquipélago cujo percurso se iniciou nos idos do
século XV(1460).
Até
ao momento que escrevo estas linhas não conheço e nem tive notícia de alguma
obra histórica recente –refiro-me a livro - a este respeito e aqui dada à
estampa. Salvo, claro! A grande obra (vários volumes) escrito por Christiano
Senna Barcellos, já aqui referido, bravense de origem e meticuloso investigador
da História destas ilhas.
Nesta
linha de escritos sobre piratas, devo mencionar também a escritora e cronista
da ilha do Fogo, Gilda Marta Vieira de Vasconcelo Barbosa, que publicou um
texto - (ou mais do que um...) – no
Jornal Terra Nova de Abril de 2006, exactamente sobre das atrocidades e as
pilhagens cometidas por piratas, que invadiam a ilha, com particular incidência
em São Filipe.
E
bom seria também, que o assunto fosse hoje seriamente investigado, para que o
tivessemos como objecto de ensaios e/ou de teses no país.
Assim
chego ao fim desta minha tentativa, que reconheço muito, muito modesta, de
trazer ao leitor deste “Blog,” uma parte milimétrica da nossa História, embora
nada agradável, ela é também e se calhar, estruturante/desestruturante, porque
os assaltos de piratas, provocaram significativas alterações na vida dos
habitantes e na organização administrativa, do nosso Arquipélago.