Os Vindos do Mar - As Visitas Temidas de Piratas às Ilhas de Cabo Verde

domingo, 26 de dezembro de 2021

 

 

Eis um assunto histórico que sempre despertou em mim uma grande curiosidade, as visitas indesejadas e temidas dos piratas, a Cabo Verde.

Mas mais, a minha curiosidade tem sido maior ao longo da vida, em  relação aos assaltos dos piratas à ilha do vulcão, as quais, como tudo indica, não foram assim tão poucas..

Acontece que cresci na Ilha do Fogo, só lá não nasci por um acaso, pois os meus pais e os meus irmãos mais velhos, tiveram de viajar do Fogo, via Mindelo, para Portugal de urgência, por motivos de saúde. E então eu nasci a bordo do vapor, em viagem para Lisboa. Embora também goste do local do meu nascimento: o mar!

Voltando aos terríveis piratas que são o foco deste escrito, sempre direi que desde miúda, pude  perceber e guardei muito bem essa memória, de que na minha ilha, uma das maiores ofensas que se podiam proferir, dirigindo-se a alguém, era o ápodo de “Pirata.” Era algo de muito grave. Era considerada uma enorme injúria, chamar-se a alguém: “Pirata!”. Ou, pior ainda:  “Filho de Pirata!”. Isso então,dava direito a brigas e a zangas sérias.

Mais tarde, com o andar dos séculos, com a passagem dos tempos, com o esquecimento do inferno  que fora sempre, a chegada dos piratas saqueadores, e com a evolução semântica do termo, “pirata”, “piratinha,” que conservou a conotação negativa - pois que justamente aplicado a ladrões, marginais e a deliquentes juvenis - o termo perdeu a pesada carga injuriosa que carreou no passado da ilha, quando então era o “trunfo” máximo de ofensa numa altercação entre vizinhos e/ou  entre outros contendores.

A então Vila de São Filipe foi várias vezes assaltada por estes "terroristas" do mar que não estavam autorizados a navegar no oceano dividido  - Tratado de Tordesilhas assinado em 1494 - entre espanhóis e portugueses e tudo isto durante séculos XV, XVI e XVII, sobretudo neste último século (XVII), os assaltos sucederam-se com maior frequência pois que já havia mais casas, mais templos construídos, igrejas e capelas, um pouco por toda a ilha. Os piratas  saqueavam  e roubavam tudo, inclusivamente casas da gente mais abastada da Vila de São Filipe.

Os Corsários e Piratas eram fundamentalmente, ingleses, franceses e holandeses.

O Historiador Christiano José de Senna Barcellos (Brava 1854 – 1915) no seu Volume I dos «Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné» Edição da BNL 2003, descreve com pormenores o que foi o saque da então Vila de São Filipe em Julho de 1655, por ele considerado dos mais violentos, operado por piratas holandeses.

O trecho que se segue, retirado do Volume I, pags. 245/246 narra-nos o seguinte:

“ Em Julho de 1655 aportou à ilha do Fogo uma nau holandesa, guiada por portugueses. Os holandeses saquearam a vila de São Filipe durante quatro dias, aprisionando mulheres, crianças e o vigário da matriz, sendo todos resgatados a troco de muitas fazendas. Quebraram e profanaram as imagens da igreja, e roubaram o oiro, pratas, ornamentos e sinos, escapando ao saque o Santissímo e o cofre que haviam sido escondidos por um beneficiado.

O Capitão-mór Francisco Lobo de Barros não estava na Vila quando se deu o saque, que foi repentino, e da mesma forma não estavam o alferes, o sargento e cabo de esquadra! Desprevenidos e enganadas as vigias e sentinelas (...)

Levaram armas e munições, deixaram a Vila de São Filipe em mísero estado.

Mais tarde, foram castigadas e despromovidas, as autoridades que não estavam nos seus postos. O Rei D. João IV, ordenou que se desse tudo o que à Igreja matriz de São Filipe, havia sido roubado pelos holandeses, ao mesmo tempo que  censurou as autoridades da ilha pela ausência da ilha e pelo abandono do seus postos. Por isso, e doravante,  passou a ser nomeado para o lugar de capitão e sargento-mór, um perfil militar que dava mais segurança na defesa e no zelo da ilha.

E como este, outros ataques de piratas se sucederam na maltratada ilha.

 Daí que fosse natural que os habitantes da ilha do Fogo, não guardassem boas memórias desses malfeitores que vinham do mar; os quais, para além de lhes roubarem tudo o que era mais valioso, violavam-lhes as mulheres, deixando algumas vezes, filhos dessa horrenda violação. Por isso, entendemos bem, a ofensa grande que era, apodar-se alguém de “filho de pirata”.

Muitas historietas e lendas se construiram à volta desses malfeitores vindos do mar, volto a repetir.

Conta-se igualmente que a determinada altura, foram escolhidos jovens que possuíam  voz potente e que avistavam do cume da serra mais alta da ilha, as velas dos barcos de piratas na linha do horizonte, e quando aconteciam esses avistamentos, gritavam algo semelhante a: “Pirata à vista!!.” O grito anunciador dava azo a que “corredores alvissareiros” fossem à Vila, avisar o padre e as autoridades da iminente chegada. Ouvia-se então, e era escutado com aflição, o rebate dos sinos da Igreja de Nª Senhora da Conceição, cujos sons, o tipo de toque, transmitiam aos moradores, a aproximação dos bandidos vindos do mar. Por vezes, e quando havia calmaria, a aproximação  dos navios do fundeadouro, levava mais tempo e tal facto, dava tempo também a que os habitantes fugissem da Vila em direcção ao sul, e ao norte da ilha levando consigo, alguns bens considerados mais valiosos. Outras vezes, os moradores e as autoridades eram apanhados de surpresa com a chegada da pirataria e tinham de largar tudo e fugir a “sete pés”.

E histórias há que narram que alguns moradores, mais ricos, levavam caixas com ouro e prata e que as escondiam em buracos cavados na terra, em determinados sítios e que, passada a tormenta, iam à procura delas. Acontecia que na aflição, alguns se esquecessem do sítio onde haviam enterrado, as caixas com jóias e com objectos de valor. Então ficavam aí enterradas “ad eternum”, configurando-se à volta disso, lendas e historietas locais, e algum anedotário que daí  também se originou. 

Outras vezes enganavam-se – na pressa da fuga -  no baú ou, na caixa a levar. Ao invés de carregarem a caixa com objectos de valor, levavam  a caixa com roupas, ou com objectos sem qualquer valor,  deixando - literalmente - o “ouro ao bandido.”

Todos sabemos que estas ilhas foram assoladas e saqueadas, não poucas vezes, por piratas e corsários holandeses, franceses e ingleses. Sabemos dos assaltos e dos saques à Cidade Velha, antiga capital da sua quase destruição feita por piratas, e que por isso, se transferiu a capital de Cabo Verde, para a Praia.

Nomes há que se sobressairam no meio dos piratas e dos corsários saqueadores violentos das ilhas e, particularmente da Cidade Velha, o inglês Francis Drake, o francês Jacques Cassard, entre outros, e tristemente célebres destruidores de vilas e da cidade destas pobres ilhas.

Piratas e corsários que matavam, que saqueavam, tudo que encontravam pela frente e que violavam  mulheres.  Daí terem deixado em algumas ilhas, alguma descendência. Filhos – que do pai nunca haveriam de ouvir falar, pois o desconhecimento seria total e para sempre.

Desta forma, podemos compreender o quão injurioso e acintoso era chamar-se a alguém: “Filho de Pirata!”

Não admira pois, a ira e a aversão secular que na ilha do Fogo, se nutriu pelos piratas.

E pensar que as viagens dos corsários com a finalidade  de pilharem não só as naus portuguesas e espanholas, mas também de saquearem vilas e cidades, foram realizadas com a benção e o beneplácito régio dos respectivos países.

Nos dias de hoje na cidade de São Filipe ainda existem vestígios (simbólicos) da  passagem de piratas e que são reveladores da tal ira secular que os sanfilipenses, nutriram pelos bandidos vindos do mar.

 Para exemplo, quando alguém quer mostrar a sua contrariedade, a sua forte  oposição a algo feito, ou pela Câmara Municipal ou, pelo Governo, coloca à janela uma bandeira de pirata (com fundo preto, a caveira com o lenço vermelho e as duas espadas traçadas) para simbolizar que está em total desacordo com o que se fez ou, com o que se pretende fazer e com isso demonstrar também, algum  desprezo por tal situação.

Voltando ao título deste escrito, coloco uma questão: quando é que algum Historiador nosso, se abalançará para nos narrar com factos e datas investigadas, os muitos assaltos de piratas e de corsários nestas ilhas? No fundo, uma História específica da pirataria em Cabo Verde.

Afinal, a história da Pirataria em Cabo Verde, é parte e faz parte integrante da História já bem antiga deste Arquipélago cujo percurso se iniciou nos idos do século XV(1460).

Até ao momento que escrevo estas linhas não conheço e nem tive notícia de alguma obra histórica recente –refiro-me a livro - a este respeito e aqui dada à estampa. Salvo, claro! A grande obra (vários volumes) escrito por Christiano Senna Barcellos, já aqui referido, bravense de origem e meticuloso investigador da História destas ilhas. 

Nesta linha de escritos sobre piratas, devo mencionar também a escritora e cronista da ilha do Fogo, Gilda Marta Vieira de Vasconcelo Barbosa, que publicou um texto - (ou mais do que um...) –  no Jornal Terra Nova de Abril de 2006, exactamente sobre das atrocidades e as pilhagens cometidas por piratas, que invadiam a ilha, com particular incidência em São Filipe.

E bom seria também, que o assunto fosse hoje seriamente investigado, para que o tivessemos como objecto de ensaios e/ou de teses no país.

Assim chego ao fim desta minha tentativa, que reconheço muito, muito modesta, de trazer ao leitor deste “Blog,” uma parte milimétrica da nossa História, embora nada agradável, ela é também e se calhar, estruturante/desestruturante, porque os assaltos de piratas, provocaram significativas alterações na vida dos habitantes e na organização administrativa, do nosso Arquipélago.

 

segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

 

Por achar que é mais do que um comentário ao texto: “Ah! A Boa Escola!”; por considerar que de um texto se trata com uma abordagem distinta, da problemática das duas Línguas cabo-verdianas - o Crioulo e o português - aqui se publica um texto da Professora Maria Cândida Gonçalves, minha colega das lides do ensino e, além do mais, uma  amiga de longa data.

 

 

 

Querida  Colega e Amiga

Como sabes, eu tenho uma visão sobre a situação das línguas portuguesa e cabo-verdiana em Cabo Verde convergente com a tua, mas com uma abordagem diferente. Eu não creio que o foco deva ser posto apenas na preservação e valorização do ensino da língua portuguesa, mas sim numa abordagem holística que leve em consideração, por um lado, a importância desta língua para os cabo-verdianos e sua importância a nível global e, por outro, a importância e o lugar conquistados pela língua cabo-verdiana na sociedade cabo-verdiana atual. Penso que já não é suficiente denunciar a situação caótica a que chegámos em relação ao uso destas duas línguas em Cabo Verde. Não vale a pena “tapar o sol com a peneira”, pois a maioria dos cabo-verdianos já não usa a língua portuguesa em situações de comunicação informal ou formal. Vários fatores têm contribuído para este ambiente sociolinguístico. Penso, portanto, que precisamos de reformas profundas do sistema educativo, visando preservar e valorizar as duas línguas,  passando pelo esclarecimento e sensibilização da sociedade cabo-verdiana (jovens, sobretudo, que se recusam a falar português) para que ambas sejam aceites, cada uma com a sua importância própria. 

Penso também que o caso do Haiti é diferente do de Cabo Verde. Aqui, nenhum governo tem defendido a abolição da língua portuguesa, tampouco os defensores da oficialização da língua cabo-verdiana. 

E termino dizendo que não aprovo a anunciada decisão do Ministério da Educação de introduzir o ensino da língua cabo-verdiana no 10º Ano do Ensino Secundário, a partir do próximo ano letivo. Acho que se trata de mais uma “medida avulsa”, que não vai resolver a complexa situação linguística em Cabo Verde. Defendo que a implementação de novas medidas de política linguística deve começar pelo Ensino Básico, visando formar gradualmente uma sociedade cabo-verdiana bilingue num horizonte temporal definido dentro dum Plano Nacional de Desenvolvimento Curricular, que vise responder aos diversos questionamentos e inquietações dos cabo-verdianos residentes no País e na diáspora.

 

Eu, Estátua, indefesa e silenciosa

domingo, 12 de dezembro de 2021

 Por achar que o texto corresponde e bem ao que se passa hoje em Portugal em termos de julgamento e de condenação  da História - o que é incorrecto, uma vez que a História não se julga - como pretendem alguns ditos activistas oriundos das ex-colónias e doutros países africanos, que escolheram viver em Portugal.

 Aqui vai transcrito e com a devida vénia ao seu autor, o jornalista e escritor, Miguel Sousa Tavares.



Eu, estátua, indefesa e silenciosa

Por Miguel Sousa Tavares*

                                          “Eu, Diogo Cão, navegador,

                                          Deixei este padrão ao pé

                                          Do areal moreno

                                          E para diante naveguei”

 

                                          Fernando Pessoa, in “Mensagem”

 

Mário Lúcio de Sousa, natural do Tarrafal, Cabo Verde (onde, da última vez que lá estive, nenhuma estátua, nenhuma placa, nenhuma simples escultura, evocava o campo de morte onde tantos resistentes portugueses pagaram pela sua luta contra o fascismo e o colonialismo), escreveu no “Público” de domingo passado um artigo a defender o derrube, o “afundamento” ou a “vandalização” das estátuas coloniais portuguesas em Portugal. Embora identificado pelo jornal como “escritor e músico”, confesso que a minha ignorância sobre ele era total. Erro meu: a sua biografia ilustra-o como poeta, escritor (com dois prémios literários portugueses conquistados), músico, cantor, “cantautor”, “pensador”, pintor, global artist e ex-ministro da Cultura de Cabo Verde. Um personagem e tanto! Das suas qualidades musicais, a net pouco mais me revelou que brevíssimos excertos dos vários concertos ao vivo em que parece ter ocupado o seu último Verão em Portugal, mas nada que o aproxime sequer dos vários nomes que fizeram da música cabo-verdiana uma referência mundial. Das suas qualidades literárias, apenas consegui chegar a dois poemas sofríveis, para não dizer medíocres, e o próprio texto publicado no jornal, onde, em minha modesta opinião, faz um fraco uso desta extraordinária língua que lhe deixámos em herança... para além das estátuas. Mas isso é o menos, o fundamental é o seu argumentário.

Primeiro que tudo, a questão da legitimidade. Mário Lúcio (como ele gosta de assinar) fala em nome dos “antigos colonizados, seus descendentes, hoje pessoas nascidas, crescidas, naturalizadas, cidadanizadas, nacionalizadas, simplesmente portuguesas”. Ora, os de quem ele fala, sim, são portugueses, tal qual como eu; ele, não. Por mais que este país o acarinhe e premeie, ele continua a ser, de direito, um estrangeiro, como eu sou em Cabo Verde — embora, segundo percebi, ele goze daquele estatuto especial de alguns cidadãos dos PALOP de serem aqui quase tão portugueses como nós, mas, vade retro, orgulhosamente africanos em África e no Brasil... Assim, a minha pergunta é: que legitimidade tem um estrangeiro para vir pregar o derrube de estátuas, ou do que quer que seja, num país que não é o seu? Acaso ele se atreveria a isso em Inglaterra, em Angola ou no Brasil? Acaso ele me consentiria isso em Cabo Verde?

Segunda questão, o fundamento. Diz ele que os “‘novos portugueses’ conti­nuam a ouvir os ecos das ordens de matar e de castigar, esses que abafam os uivos de dor”. Não vou, obviamente, discutir o que foi a barbárie da escravatura e o tráfico de 1.400.000 seres humanos, que, só os portugueses, levaram, acorrentados, de África para o Brasil — e sem os quais o Brasil que conhecemos não existiria. Mas se os “novos portugueses” ainda ouvem esses ecos, eu não: não há chicotes nem correntes em minha casa e não oiço uivos de dor vindos da sanzala dos meus escravos. O meu dever contemporâneo é contar a história, a verdadeira história (e, sim, ao contrário do que ele diz, já há em Lisboa um monumento de homenagem às vítimas da escravatura, mas, por pudor, não há um Museu das Descobertas). E, sobretudo, é meu dever denunciar novas formas de escravatura, com novos disfarces, sem chicote nem correntes, como as de que são vítimas os trabalhadores asiáticos na agricultura intensiva — e de que não se ocupam estes activistas talvez porque eles não são negros. Porque também me espanta que estes derrubadores de símbolos de um passado que há muito deixou de existir se remetam a um silêncio sujo de cumplicidade com as múltiplas formas como os povos dos países africanos outrora colónias portuguesas hoje são roubados pelos seus dirigentes, à vista de todos e como nunca foram antes. Não é o caso de Mário Lúcio, natural do único desses países que tem orgulhado a sua independência, mas o que dizer da deputada portuguesa Joacine Katar, aqui acolhida como em raros países do mundo, tão crítica do seu país de acolhimento e tão silenciosa perante a vergonha continuada que é a governação do seu país de origem e a desgraça do seu povo?

Mas, uma vez isto feito, a limpeza da memória histórica não estaria terminada. A exaltação do “colonialismo” português, confundida por estes derrubadores de estátuas com tudo o resto, não poderia, coerentemente, ficar sacia­da. Sobrariam ainda, por exemplo, as pinturas e os livros: “Os Lusíadas”, “A Peregrinação”, “As Décadas da Índia”, o “Esmeraldo de Situ Orbis”, os relatos da “História Trágico-Marítima”, o “De Angola à Contracosta”, e tantos, tantos livros mais, que haveria bibliotecas inteiras para queimar em autos-de-fé. E os escritores que algum dia se deixaram tomar pelo espanto daqueles que navegavam sem horizonte conhecido: Camões, Pessoa, Jorge de Sena, Manuel Alegre, Sophia.

Diga-me lá, Mário Lúcio, com a sua visão de global artist: a sua fúria demolidora começa em que estátua nossa em concreto e acaba em que específico pergaminho?

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

*in Expresso, 11/12/2021

 

Ah! A Boa Escola!...

terça-feira, 7 de dezembro de 2021

 


Entrando logo no assunto a que hoje me propus, sempre vou  dizendo que soube há bem pouco tempo, por um aluno da Escola Portuguesa da Praia, que a referida escola tem na hora actual, cerca de 900 (novecentos alunos) e que possui uma extensa ou igual lista de espera -  Quando ouvimos isso, alguém ao meu lado comentou: “Ainda bem, que estão aí tantos alunos. São eles que irão conservar a Língua portuguesa neste Arquipélago. Bem haja a escola portuguesa!”

Fiquei com curiosidade e com vontade de me abeirar da Escola em apreço, para saber, através de dados fiáveis do número de procura de lugares e da proveniência e do perfil socio-económico dos alunos que a frequentam.

E o interessante é que já se distinguem os alunos da escola em referência, pois que na rua, ou quando estão juntos, falam português uns com os outros.

Pensei comigo: “ Que contraste! Ao que chegou a escola  pública no meu país! É certo que de há muito, se previa a sua derrocada, mas não na dimensão a que esta se deu. Foi preciso ser implantada entre nós a escola Portuguesa (em boa hora chegou) para se redimir o ensino da Língua portuguesa, nossa de pleno direito, e que era ensinada com precioso cuidado aos nossos alunos há poucas décadas, por professores cabo-verdianos que a dignificavam. Mas hoje, e infelizmente, para mal dos nossos pecados, já nem o professor cabo-verdiano da disciplina, sustenta - com proficiência linguística - uma conversação em português. Enfim, uma derrocada gigantesca do ensino público!”.

Veio-me à memória - igualmente por contraste -  a conversa havida, há já algum tempo, com um antigo Faroleiro do farol de D. Maria Pia da Praia, que ao ser-lhe notado que ele se expressava bem em português, ele respondeu de pronto: “Minha senhora, eu fiz a 4ª Classe da Instrução Primária, no tempo em que se completava a escola Primária aqui em Cabo Verde, a saber falar, a contar e a escrever em português!” (Sic).

Pois bem, voltando à escola portuguesa, os pais que podem economicamente e que cuidam duma escolarização de melhor qualidade para os seus  descendentes, procuram com afã, um lugar para o filho ou para o neto na Escola Portuguesa. O que está bem. Ninguém condena. Antes, pelo contrário, uma vez que a escola pública em Cabo Verde anda pelas “ruas da amargura”  em termos de qualidade de ensino, infelizmente. E assim sendo, torna-se normal, que esses mesmos país procurem - entre a oferta escolar existente e disponível - a melhor.

Não possuo dados para definir o perfil das famílias cujos filhos frequentam a referida escola, mas não corro muito o risco de errar se eu disser que elas pertencem à classe social mais instruída e mais capaz financeiramente. O que faz sentido e tem lógica.

Apenas uma nota irónica, (que não belisca e não tem nada a ver com o bem enorme que foi criar-se a Escola Portuguesa nas cidades da Praia e do Mindelo); se calhar, alguns desses pais e avós pertencem ao grupo que quer impor o Crioulo nas escolas públicas. Os chamados crioulistas. Numa atitude que alguém já definiu e bem, como de um egoísmo atroz. Ou seja: “eu já domino a Língua portuguesa  e outras Língua globais e os meus filhos e netos vão pelo mesmo caminho. Ponto final. Não quero saber dos outros que frequentam a escola pública. Para estes, basta o Crioulo.” Adivinhem quem são esses “outros”?...

Quando hoje, mais do que nunca, devemos estar  todos, e empenhadamente, a defender o ensino desta Língua global (definida pela Unesco) que é nossa também, a Língua portuguesa, e, ao mesmo tempo, defender uma melhor escola pública no país, uma vez que é na escola que os filhos e netos da camada social menos favorecida (...os tais "outros") procuram o chamado “elevador social” que lhes trará melhor futuro. É na escola, através da leitura, do escutar o professor, e no decorrer do processo de aprendizagem que o aluno se socializa com a Língua portuguesa, veiculo, por excelência, de transmissão de conceitos científicos, tecnológicos, literários e filosóficos, insertos nos programas e nos manuais escolares.

Uma boa escola é fundamental, em todo o percurso de vida da criança, do adolescente e do jovem na sua formação para o trabalho e para a sociedade.

E falando em boa escola e na qualidade do  seu ensino, trago à colação, um excerto do livro: «Os Meus Compatriotas» de Luís Valente de Oliveira, editora Gradiva, 2021. O livro, como o próprio título indica, incide sobre os portugueses enquanto povo antigo e o modo como se adaptam, em contextos e em culturas diferentes. O interessante é o excerto escolhido pois que se refere à educação formal e àquilo que se espera que a escola faça. Um pouco na linha da questão, que deve fazer a escola? .

Segundo o autor, a escola deve apelar: “a) ao conhecimento rigoroso e à análise racional dos problemas, por oposição ao palpite e às imagens impressionísticas; b) à reflexão amadurecida, por oposição à primeira ideia que nos vem à cabeça; c) ao método e à persistência na acção, por oposição à improvisação e à indiferença; d)ao espírito crítico construtivo por oposição à maledicência; e) à cooperação e à generosidade, por oposição ao individualismo egoísta; e) a que vejamos no sucesso alheio um estímulo e não uma fonte de inveja. Propõe-nos, em suma, um código de conduta, um guião para a cidadania responsável. No fundo, para merecermos o bem de viver em democracia e em paz, cabe-nos a todos e a cada um a responsabilidade de sermos cada dia melhores cidadãos.”  Luís Valente de Oliveira OS MEUS COMPATRIOTAS Gradiva, 216 pp. – Fim de transcrição.

Será que nos dias que correm, a escola pública cabo-verdiana, se reconhece em alguma alínea aqui transcrita?

Será que a nossa escola –na pessoa do professor - estará a cuidar do desenvolvimento do raciocínio cognitivo, lógico e dedutivo do aluno? Que é um dos fundamentos do ensino?

Será que ainda existe entre nós, no sistema de ensino, a inspecção pedagógica para os diferentes níveis do ensino, para se aquilatar do saber e do saber fazer do professor?

  Será que estamos a criar um fosso social ainda maior?... em quase tudo, semelhante ao que aconteceu no Haiti? Quando os socorristas  internacionais (europeus e falando francês)  não se entenderam  - linguisticamente - com os naturais, na entrega de géneros alimentícios e de medicamentos, aquando do último terramoto? E foi o caos. Porquê? A escola e outros meios de comunicação, do Haiti, por lei nacional, haviam sido desapossados de uma Língua global, o francês. Claro que os haitianos, a minoria com posses, colocou os filhos nas escolas privadas francesas. Em flagrante diferença, a significativa maioria pobre e socialmente desfavorecida, ficou apenas com o “Créolo” haitiano na escola pública.

Não sei se por esta altura, já terão emendado a situação.

 Será que é isso que queremos para este nosso Arquipélago pobre e em tudo dependente da ajuda internacional para o seu desenvolvimento?

Custa-me acreditar...

Para onde caminha o ensino em Cabo Verde?

Bem, creio que este meu escrito para “post” já vai longo e cabe-me pôr um ponto final, Se não, corro o risco (agora sim) de sequer, ele ser lido pelo leitor do «Blog».

sábado, 4 de dezembro de 2021

 

Um texto deveras interessante. Por um lado, pela forma como trata o tema da “Portugalidade.” Por outro, o título: “Eu amo a portugalidade,” tornada frase emblemática e inspiradora da matéria aqui tratada, foi proferida por Onésimo Silveira, então Embaixador de Cabo Verde em Portugal aquando do almoço de despedida de funções,  oferecido pelo autor do texto, Fernando d’Oliveira Neves, na altura, Secretário de Estado dos Assuntos Europeus.

 

Eu amo a portugalidade

(publicado no jornal Público de 2/12/2021)

Fernando d’Oliveira Neves - Embaixador jubilado.

 

      É claro que o Império Português foi colonialista e racista. Mas todas as sociedades, por mais opressoras que sejam, têm vida para além dessas dimensões. É da tradição diplomática, ou melhor, era, que, quando um embaixador acreditado num posto terminava a sua missão, o ministro do país anfitrião lhe oferecia um almoço de despedida. Tal era possível quando, em cada capital, havia uma dúzia de embaixadores. Hoje, numa capital como Lisboa esse número ronda a centena. É impossível que todos os almoços sejam oferecidos pelo ministro. Na sua indisponibilidade, é substituído por um dos secretários de Estado ou pelo secretário-geral do ministério. 

      Era eu secretário de Estado dos Assuntos Europeus, quando me pediram para oferecer o almoço de despedida ao embaixador de Cabo Verde, Onésimo da Silveira. Nunca o tinha visto e confesso que só li o respectivo currículo pouco antes de me dirigir para a casa de jantar do Palácio das Necessidades. No fim do almoço, faço um brinde, com as banalidades usuais, apenas reforçadas pela forte singularidade das relações entre os dois países e o facto de saber que o meu convidado era poeta. Quando acabo, o embaixador Onésimo da Silveira levanta-se, com um pequeno caderno na mão e, antes de começar a ler, diz “Eu amo a portugalidade”. Fiquei encandeado perante a surpresa e a profunda sabedoria desta frase maravilhosa. Tive vontade de pintar a cara de preto, face à banalidade do que dissera. A conjugação do conceito de portugalidade com o verbo amar enfeitiçou-me e fiquei, encantado, a ouvir a magia do discurso que o embaixador continuou a ler, levando-nos pelos meandros mágicos da experiência dessa portugalidade, tão bem cognominada. 

      Este episódio ficou-me atravessado. Tentei, reconheço que sem a persistência necessária, obter o texto, sem nunca o conseguir. Agora, que tantos dislates se ouvem sobre a expansão portuguesa, esse valor que mais alto se alevantou e calou as musas, tenho-me lembrado dele. 

      É claro que o Império Português foi colonialista e racista e mais outras práticas condenáveis de todas as sociedades humanas. Dessa ignomínia não restam dúvidas. Apesar de tudo, parece avisado olhar para cada época em função dos valores então prevalecentes. Vivi o bastante para ver valores considerados vitais desaparecerem e, felizmente, ver surgir novos que nunca me tinham passado pela cabeça. Mas todas as sociedades, por mais opressoras que sejam, têm vida para além dessas dimensões. A expansão portuguesa foi muito mais que isso. Foi uma das epopeias que mais mudaram a História, dando aos homens uma nova e real dimensão do mundo em que viviam. 

      Até pelo limitado número de portugueses que a fizeram, provocou uma convivência sem precedentes de pessoas de todas as partes do mundo, que, no quotidiano, se misturaram, fizeram amizades, riram em conjunto, beberam e comeram ao pôr do sol dos cantos do mundo por onde andámos e onde muitos ficaram, trocaram experiências e constataram a relatividade das suas virtudes, crenças, medos e ambições.

      Não é fácil definir a portugalidade. Talvez o resultado positivo desse intercâmbio seja a criação e perpetuação de laços afectivos e familiares entre gentes das mais diversas partes do mundo. As amas índias da Casa Grande poderão ser exemplo. Ou talvez não passe de uma amarga saudade doce, de uma utopia que, por vezes e por instantes, se transforma em realidade. Talvez seja mais simples dar exemplos concretos.

      Portugalidade é estar na antecâmara do chefe do Governo de Malaca, a conversar com um chinês, e de repente este dizer: “Mas o Senhor é português? Eu também. Sou da freguesia de S. Pedro, em Singapura, e nos dias 13 de cada mês fazemos a procissão de Nossa Senhora de Fátima”.

      Portugalidade é chegar a Jacarta, ao fim de 25 anos de hostilidade em torno de Timor, ser levado a jantar no centro histórico da cidade pelo embaixador do Brasil, amante da presença portuguesa na Indonésia, e ouvi-lo dizer que o canhão que está no meio da praça é um canhão português, onde as noivas se vão fotografar no dia do casamento, porque é um símbolo da fertilidade. 

      Portugalidade é ser-nos dito, no Barém [Bahrein] e no Kuwait, que os únicos edifícios de pedra que ali existem anteriores ao século XX são os fortes portugueses que lá resistem.

      Portugalidade é ouvir Samora Machel a olhar para o Índico e dizer do seu orgulho, quando se lembra que Vasco da Gama ali passou e, logo a seguir, afirmar, num tom meio agastado: “Nós é que descobrimos o Brasil e agora têm um Presidente que se chama Geisel!”.

      Portugalidade é ouvir um goês a manifestar o orgulho num seu remoto antepassado agraciado com a Cruz de Cristo pela Rainha D. Maria II e outro a lembrar que o trisavô fora Presidente do Supremo Tribunal de Justiça. 

      Portugalidade é ir jantar ao International Hotel do Barém, onde decorria a semana gastronómica do Texas, e chegar à mesa um empregado indiano, vestido à cowboy, que nos diz, em bom português, “boa noite” e tem na farda um dístico onde se lê o seu nome: Bragança.

      Portugalidade é verificar que os católicos de diversos países da Indochina falam um português arcaico a que chamam christian, que é para eles sinónimo de português, e por isso se dizem portugueses.

      Portugalidade é ir ao Portuguese Setllement de Malaca, encontrar uma mistura inédita de raças, malaios, chineses, indianos, e ouvi-los a cantar e dançar o Tia Anica de Loulé, em trajes minhotos, e a falar um português compreensível.

      Portugalidade é um liurai timorense desenterrar e entregar-nos uma bandeira portuguesa e dizer que o pai dele a tinha enterrado quando Timor foi invadido pela Indonésia, e lhe disse para a dar aos portugueses quando (não se) eles voltassem.

      Portugalidade é ir ao CCB assistir a uma sessão das comemorações dos 500 anos da Descoberta do Brasil e ouvir o embaixador brasileiro, Sinésio Sampaio Goes, ele também, como historiador, cultor da portugalidade, a apresentar o chefe da maior tribo de índios do Brasil, os índios tupis, se a memória não me falha. Vemos entrar um senhor com um aberto ar jovial, envergando um casaco de tweed e um maravilhoso cocado que lhe caía pelas costas até aos calcanhares, e ouvi-lo dizer, com ostensivo júbilo e orgulho: “O meu nome é António Cardoso e o meu avô era de Trás-os-Montes”.

      Acabou o Império colonial português e a opressão de uma nação sobre as outras. Fica na História um admirável património universal, físico e afectivo. Este último, símbolo notável de humanismo, será a portugalidade. Que Onésimo da Silveira me ensinou a amar.

 

      

 

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

 

Mais um “post” do Professor universitário José Fortes Lopes, manifestando a preocupação (que é de todos nós) sobre o futuro da Língua portuguesa em Cabo Verde, uma vez que nem o próprio governo acerta com o rumo linguístico destas ilhas, no que diz respeito à Língua comum, o português, veículo linguístico de cultura e de aceso dos nossos alunos aos estudos superiores.

Ora bem, tratando-se de um país completamente  dependente do exterior para o seu desenvolvimento; um país que mais do que nunca precisa da sua Língua portuguesa, para a educação dita formal, para as ciências, para tecnologia e para a cultura global; “abrir mão” diletantemente e sem sentido algum, de uma riqueza ímpar que é ser falante do Português, não lembra o mais desprevenido Mefistófeles.

Por estas e outras razões convido o leitor a ler o “post” que se segue.

Por José Fortes Lopes

Aqui está um exemplo de políticas com seriedade:

Governo francês quer reforçar ensino de português em França e de francês em Portugal, e governo cabo-verdiano está em contra-ciclo.

 Esta iniciativa do governo francês vai ao encontro do meu post sobre a dualidade língua portuguesa, crioulo cabo-verdiano em Cabo Verde, já que o governo de Cabo Verde anunciou o começo da substituição, a partir do ano que vem, da língua portuguesa pela variante do crioulo da Ilha de Santiago, como língua de ensino, enquanto que o governo francês reforça o ensino da língua portuguesa em França.

A gravidade da decisão do governo cabo-verdiano é tanto grande, quando não se sabe o resultado de nenhum estudo de impacto económico desta iniciativa, para um país depauperado de recursos financeiros (a menos que seja a comunidade internacional a suportar os custos), e o impacto psicológico nas populações insulares, a quem lhes vai ser retirado o único contacto, na escola, com a língua portuguesa, para além do mérito científico e pedagógico dos que estão a frente desta iniciativa, ao passo que os poderes cavalgam há mais de 40 anos esta iniciativa demagógica-populista do "25 de Abril de 74 " , mas que ainda continua a dar uvas", com o único objectivo de colher dividendos eleitoralistas.

Para além disso a iniciativa tem um forte cariz étnico-cultural e envia uma mensagem errada em direcção a Portugal, o principal parceiro de desenvolvimento  de Cabo Verde, um país com o qual muitos contam como uma Solução Alternativa para contribuir para o Bem do Arquipélago.

Não perceber a importância da língua portuguesa, uma língua "pronta-a-usar"  para os países de expressão oficial portuguesa, como elo de ligação de povos e comunidades, precisamente separados por diversas barreiras, entre outras a da língua, e o ridículo da oficialização do crioulo de Santiago e do AlupeK, para um país que sequer consegue ser independente, num mundo global, cada vez mais integrado e interdependente, em que cada vez mais a língua portuguesa vai ser importante, não somente pelo crescimento da influência de Portugal no Mundo, mas também pela importância dos países falantes e outros diversos falantes, é de uma miopia total.

Cabo Verde afunda-se cada dia mais no provincianismo bucólico.....

O ministro francês da Educação, Jean-Michel Blanquer, visitou hoje o espaço dedicado a Portugal no salão "Partir Etudier a l'Étranger", qualificando a língua portuguesa como "magnífica" e prometendo apoiar o seu desenvolvimento em França

 

(Para o ministro francês, Portugal é "um grande país amigo".

"Temos também um interesse pela lusofonia, pelo Brasil, pelos países africanos lusófonos e pelo conjunto dos países lusófonos do mundo")

"A língua portuguesa é uma língua muito importante em todo o mundo […] É importante também em França, não só porque há muito franceses de origem portuguesa, mas também porque temos muitas relações com Portugal e é uma língua magnífica, com uma literatura muito bonita, portanto apoiamos muito o desenvolvimento da língua portuguesa, disse ministro francês da Educação, Jean-Michel Blanquer

 

 

sexta-feira, 19 de novembro de 2021

 Caro Leitor: eis um tema que nunca perde actualidade e oportunidade. Leia o texto. Vale a pena. Foi transcrito do Jornal, «Expresso das Ilhas».


Não adiar o futuro com divisões[i]

Por Humberto Cardoso

Pela primeira vez num acto solene de primeira grandeza como é o de investidura do presidente da república o discurso do presidente eleito foi proferido num modo bilingue, parte em português, parte em crioulo. Ninguém ficou grandemente surpreendido considerando que há muito que o uso da língua materna cabo-verdiana pelos titulares dos órgãos de soberania é corriqueiro no país. O PR, o PM, os ministros e os deputados em várias circunstâncias fazem declarações, debatem no parlamento e dirigem-se às pessoas e ao país em crioulo, usando as diferentes variantes conforme a audiência ou a origem do orador. Os cidadãos também podem tratar os seus assuntos com administração pública e depor nos tribunais em crioulo. A língua é falada de forma generalizada no país por todos os estratos sociais e é um instrumento fundamental de expressão da alma cabo-verdiana particularmente na sua música, em todos os géneros cultivados nas ilhas e nas comunidades no estrangeiro. Se para alguns ainda houvesse algum sentimento que o crioulo era oficialmente discriminado seria de esperar que com esse acto do novo PR, num momento alto da vida da república, tal dúvida fosse completamente dissipada.

Estranhamente não é o que aconteceu. Em vez da acalmia dos ânimos num momento único que devia ser de união, o que se seguiu foi o recrudescer da militância em prol de uma oficialização que supostamente estaria a ser preterida. De facto, o artigo 9º da Constituição da República sob a epígrafe línguas oficiais estabeleceu desde 1999 que todos os cidadãos têm o dever de conhecer as línguas oficiais e o direito de usá-las. Também determina que o Estado promova as condições para a oficialização da língua materna a par com a língua portuguesa, o que evidentemente implica que tenha escrita aceite por todos. Ou seja, está-se a perseguir um fantasma, visto que a oficialização é real, como o seu uso normal nos mais diferentes actos deixa transparecer, em vez de concentrar na criação de condições para se ter a língua escrita. Até parece que convém excitar paixões apontando exemplos de discriminação, identificando vítimas e alimentando ressentimentos em vez de se estimular os impulsos e sentimentos positivos de perseverança, criatividade e espírito de união necessários para a realização prática das condições exigidas pela constituição.

Não mais existindo razões reais para continuar a pressionar o sistema político no sentido da oficialização, para além da vontade de uns de se mostrarem “mais puros e autênticos” à custa de adversários fictícios, o foco desvia-se para o sistema de ensino. Não se tem a língua escrita padronizada, mas quer-se que seja ensinada nas escolas e liceus do país. Não há professores formados nem se produziram manuais, mas tudo aponta que as aulas para os alunos do secundário a partir do 10º ano vão começar no próximo ano lectivo. O que, segundo declarações feitas na TCV, no domingo dia 14, por membros do governo e outras personalidades, parece ser uma decisão assente, curiosamente ainda não foi levada para discussão e aprovação no órgão próprio, no Conselho de Ministros. Também não se sabe se mais tempos lectivos vão ser adicionados aos alunos ou se se vai subtrair de disciplinas fulcrais o tempo para leccionar a língua materna e nem se conhecem os outros custos tangíveis e intangíveis a incorrer com a iniciativa. Entretanto, para muitos pais apreensivos, observando de fora esta ofensiva militante que já vem de longe, só lhes resta, se tiverem sorte e meios, procurar outras escolas com outro currículo e outra gestão como, aliás, vem acontecendo há vários anos.

Todo este conflito fictício em que o crioulo é apresentado como uma língua discriminada tem tido custos pesadíssimos que estão à vista de todos, mas que são ignorados como, aliás, muitas outras coisas no país. Posto em confronto de natureza identitária com o português, torna-se num sério obstáculo à aprendizagem afectando transversalmente a qualidade do ensino em Cabo Verde. Ninguém, porém, parece preocupado com o facto dos enormes investimentos no sistema educativo não trazer os retornos desejados. O facto de se exigir aos estudantes cabo-verdianos que vão para universidade em certos países lusófonos prova de proficiência no português não parece ser motivo de preocupação, nem tão pouco o facto de entre os países de expressão portuguesa serem os cabo-verdianos a ficar para trás no domínio da língua com prejuízo para a sua empregabilidade entre os emigrantes em Portugal. Para quem alimenta este conflito o que interessa são os reflexos da polarização em outras disputas políticas e culturais pois, fazendo muitos deles parte de uma elite que envia os filhos para as melhores escolas, não são prejudicados com as consequências. Antes pelo contrário, consolidam a sua posição.

Cabo Verde tem ganho uma grande reputação pela sua estabilidade política na democracia ao longo dos últimos 30 anos. Para essa estabilidade contribui extraordinariamente o facto de Cabo Verde ser um povo e uma nação unido pela cultura, pela língua e por um destino comum no decurso de séculos e em condições adversas dentro de um império colonial. É fundamental não permitir que esse ganho extraordinário seja diminuído com divisões que opõem ilhas e regiões do país numa luta por recursos, com importações de preconceitos de raça e de cor de há muito sem sentido no país em termos sociais, económicos ou políticos e com questões identitárias desconhecidas para uma gente de há muito imbuída de uma consciência de nação. Aprecia-se a riqueza que se tem quando se observa o desastre terrível que se abateu sobre a Etiópia, um país que estava em pleno progresso e um exemplo de sucesso em África, por causa de conflitos étnicos. Por outro lado, há que ter em atenção que a democracia, porque tem na sua base a liberdade e o pluralismo, pode na sua dinâmica levar a polarizações, impasses e mesmo ao extremar de posições com base em conflitos políticos, sindicais e outros. Manter a unidade de propósitos em questões fundamentais evitando fractura divisivas e artificiais é essencial para se beneficiar da dinâmica democrática e para fazer avançar o país sem que se incorra no perigo de paralisia e regressão que podem advir de instabilidade política com impacto duradoiro nos domínios económico e social.

No mundo de hoje com as grandes crises, a pandémica e a económica e social, e os grandes desafios, a transição energética e as alterações climáticas, é de maior importância que se construa nas sociedades democráticas um capital de confiança traduzido na confiança nas instituições, no alto grau de civismo e no foco no interesse comum. Países com esse capital conseguem com mais facilidade e mais solidariedade enfrentar as dificuldades presentes como os surtos de covid-19, as resistências à vacinação, os altos preços de energia, a inflação que vai fazer subir o custo de vida e diminuir o poder de compra e as dificuldades em conseguir emprego de qualidade. Central para se conseguir esse capital de confiança vai ser o comportamento dos governantes e da classe política em geral. Mais do que nunca, o país precisa de uma liderança de qualidade, competente e comprometida com o interesse comum e que não se deixa levar pelo caminho fácil, mas custoso do ilusionismo. Do presidente da república, órgão singular e suprapartidário, espera-se que aja para reforçar a unidade da nação para que a dinâmica da governação democrática mostre os seus frutos sem perigo de divisões que criam ineficiências, distracções e bloqueios e deixam o futuro permanentemente adiado.



[i] In “Expresso das Ilhas” do dia 17.11.21

 

A Oficialização do Crioulo[i] –Populismo e eleitoralismo?

sábado, 13 de novembro de 2021

 Por José Fortes Lopes

Quais são os benefícios e ganhos do abandono da língua portuguesa como língua de trabalho e de ensino em Cabo Verde, e da oficialização do crioulo nas variantes mais significativas, como se anuncia? Nenhuns, para além dos ganhos em termos de populismo e do eleitoralismo.

Custos haverá muitos e aparecerão no longo prazo.

Na prática o que se pretende é pura e simplesmente o uso generalizado do crioulo na variante de Santiago, uma das 8 ou 9 variantes do crioulo cabo-verdiano falado no arquipélago, e a substituição da língua portuguesa, prevendo que esta deixe de ser falada ou entendida pela maior parte dos cidadãos cabo-verdianos.

É óbvio que é mais vantajoso permanecer o statu-quo actual, que perdurou até agora, que consiste na reconsideração do crioulo como língua do povo, sem todavia ultrapassar o estatuto oficial .

Para além disso, num Mundo global em que a língua portuguesa é uma ferramenta global, falada por um número crescente de pessoas e países, há todas as vantagens dos países de expressão lusófona adoptarem plenamente esta língua como sua.

Neste momento o Ministério da Educação de Cabo Verde deveria estar a ter uma iniciativa para aumentar a versatilidade oral e escrita da língua portuguesa pelas populações de Cabo Verde.

Ora, está a acontecer o contrário o que é manifestamente uma atitude no mínimo provinciana ou leviana ou um erro de consequências graves. Para além disso, esta reivindicação linguística tem pouca adesão nas restantes ilhas do arquipélago, estando localizada na ilha de Santiago, em círculos e circuitos bem identificados.

Parece que o lobby fundamentalista desta vez, no meio de petições de professores e de reivindicações da elite africanista-irredentista levou a melhor na longa cruzada contra a língua portuguesa que dura há 46 anos, por vezes declarada, por vezes encapotada. Ela está com vento de feição, revigorada pela ascensão no poder de correntes fundamentalistas que vêm na língua portuguesa um instrumento de opressão, ou mesmo de colonialismo linguístico, como alguns ‘especialistas’ apresentaram a questão, no início do lançamento oficial da ‘campanha’, do ALUPEK, há cerca de 10 anos .

A coisa está mesmo séria pois o Ministério da Educação de Cabo Verde pretende levar o uso do crioulo nas escolas a partir do 10 anos. Convenceram os políticos da urgência da medida!!!

Para além disso o novo presidente eleito de Cabo Verde, no seu discurso de empossamento, na presença de presidentes de alguns países amigos nomeadamente Portugal e Angola, discursou em crioulo na sua variante natal, de Santiago, e enviou um forte sinal para o’ mundo’. O apoio do actual PR era de prever pois foi no mandato dele como Primeiro-Minsitro, a partir de 2000 e durante 15 anos, levado pelas correntes fundamentalistas de Santiago, que este deu o pontapé de saída da problemática/ questão.

Ora, no caso de Cabo Verde o populismo fala mais alto, e a bandeira da língua é uma das muitas que vêm sendo brandida desde o 25 de Abril de 1974. Se naquele período ainda se podia perceber, pois estava-se em tempos revolucionários, o crioulo era reprimido e então fazia parte da tendência promover e incentivar tudo o que era proibido, hoje continuar a bater na tecla num Mundo em que tudo mudou, é que não se percebe. Também se recorda que o falecido Presidente Pereira, que foi presidente do Paigc , não se exprimia em crioulo, e nunca este Partido levou a sério a questão, pois o próprio Amílcar Cabral, pai da utopia paigcista, parece ter defendido a preservação da língua portuguesa, caso este partido conquistasse o poder.

A oficialização do crioulo (de Santiago) terá custos para além dos financeiros, e poderá marginalizar parte importante da população em relação à língua portuguesa , o que é já uma realidade grave, criando uma espécie de ghetos linguísticos. A elite poderá pagar através do Ensino Privado aos seus filhos o acesso à língua portuguesa, enquanto que ao povo lhe caberá o crioulo unicamente.

Se alguns lobbies  terão ganhos pecuniários, nomeadamente, os que explorarão a área da edição em crioulo, e os ditos projectos científicos, não se vêm benefícios econômicos para o país, quando a literatura nos países de expressão portuguesa é toda na língua portuguesa. Pior, a sua duplicação em crioulo poderá acarretar custos exorbitantes para a economia do arquipélago, que recebe ajuda do Mundo inteiro, inclusivamente de Portugal, o país anfitrião da língua que agora se quer prescindir.

Por outro lado, a oficialização do crioulo, subentende-se a variante da ilha de Santiago, pois não se conhece iniciativa em relação às restantes variantes, como acontece hoje na comunicação, o que implica uma subalternização e a condenação à morte. A acontecer será uma violação do direito das outras variantes à existência, logo está-se a semear um problema grave!!!

 



[i] Texto extraído de “Facebook”. O título é nosso..

Impressões de uma visita à Chã das Caldeiras -ilha do Fogo

sexta-feira, 12 de novembro de 2021

 

Autoria:JOÃO Filipe DUARTE FONSECA 

Geofísico, Vulcanólogo e Professor Universitário

A 13 de Outubro comemorou-se o Dia Internacional da Redução do Risco de Desastres. Por coincidência, tive oportunidade de iniciar nesse dia uma breve visita à Chã das Caldeiras, na Ilha do Fogo. Por altura da minha última estadia na Chã, em Janeiro de 2015, decorria ainda a erupção que tivera início dois meses antes, e imperava o choque e a consternação perante a devastação causada pelas escoadas de lava nas povoações de Portela e Bangaeira.

Passados sete anos, a nova visita inspirou estas reflexões sobre as medidas adoptadas desde a última erupção, feitas à luz da investigação em que venho colaborando no campo da adaptação do património edificado ao risco vulcânico[1] .

Uma das vantagens da idade é permitir o confronto entre ocorrências bastante separadas no tempo. Também em 1995 eu tive a oportunidade de acompanhar a resposta de emergência à penúltima erupção e as medidas que se seguiram com vista à normalização das condições de vida da população da Chã (e, em 1951, pode-se dizer literalmente como na fábula do Lobo e do Cordeiro: “se não foste tu, foi o teu pai”). Em comum, as duas experiências revelaram-me a grande força anímica e resiliência do povo da Chã. Em contraste, é grato registar que na ocorrência mais recente a resposta foi mais organizada e eficaz, dando prioridade à recuperação do capital humano extraordinário que pulsa diariamente na Chã das Caldeiras. Evitando os erros do passado, que visavam impôr o abandono definitivo da Chã recorrendo à supressão de infraestruturas básicas como a escola ou o posto sanitário, as medidas de apoio agora tomadas pelas autoridades permitiram que em tempo recorde a Chã tenha tirado partido da oportunidade criada pelo desastre, não só recuperando, mas ultrapassando o grau de desenvolvimento em que a comunidade se encontrava em 2014.

Entre os exemplos notáveis da eficácia da recuperação conta-se a melhoria da rede viária, estando quase a tornar-se realidade aquela que é a mais importante medida de mitigação da vulnerabilidade vulcânica da Chã das Caldeiras, a par com a monitorização geofísica (que o INMG tem levado a cabo de modo exemplar e com reconhecimento internacional). Refiro-me à ligação ao exterior através de uma segunda estrada, para Norte, terminando com a indesejável “ratoeira” que é ter um único acesso viário exposto às escoadas de lava. Mas os exemplos continuam: a construção de um edifício escolar condigno; a realização de um furo para abastecimento de água; a introdução de iluminação pública com recurso a energia solar, etc. Se bem que as restrições impostas pela pandemia não tenham permitido ainda a plena retoma da actividade turística, a vitalidade da população correspondeu à aposta na Chã, aumentando significativamente a oferta de alojamento para visitantes, bem como o número de restaurantes e bares. Vislumbra-se um futuro em que os visitantes dos vários cantos do mundo se continuarão a maravilhar com a experiência única que é a hospitalidade da população da Chã das Caldeiras.

Mas, inevitavelmente, existem riscos latentes (humanos, que os naturais são evidentes) de que o progresso coloque em causa a galinha dos ovos de ouro da oferta turística do Fogo. Estas notas de quem frequenta regularmente a Chã das Caldeiras desde há 30 anos pretendem ser um aviso construtivo à navegação, na esperança de que alguns aspectos menos consensuais possam ser reanalizados, quiçá rectificados.

Um primeiro aspecto que salta à vista no reordenamento do território da Chã é a preferência dada à Bangaeira para a reinstalação da população, aparentemente com base no pressuposto de que a perigosidade vulcânica dessa zona seria inferior à da Portela. Contudo, não se conhecem estudos científicos que apontem nesse sentido, e tive pessoalmente oportunidade de coordenar um mapeamento da perigosidade vulcânica realizado para as autoridades Caboverdianas em 2014 (meses antes da última erupção) que contraria essa noção. A própria erupção de 2014 se encarregou de mostrar que a Bangaeira está exposta a escoadas provenientes do sector sul da Chã das Caldeiras, para lá da exposição óbvia a escoadas provenientes do sector norte. Salvo melhor explicação, aparenta ser desconcertante a preferência dada à região da Bangaeira, se o fito dessa escolha foi a redução do risco vulcânico.

Outro risco de origem antrópica prende-se com o planeamento urbano, que ao ter por base uma abordagem convencional da qualidade de vida da população pode comprometer a atractividade da Chã das Caldeiras para o turismo, acabando assim por lesar a qualidade de vida que se pretendeu promover. Nesse aspecto, pode dizer-se que a Chã se está a tornar um laboratório para o estudo da reabilitação pós-desastre. Do balanço entre o esforço de ordenamento do território e o conservadorismo atávico da população, estão frente a frente no terreno dois modelos de recuperação: na Bangaeira, metódico, planeado e com tipologias contrutivas normalizadas, ditado por influências externas; na Portela, expontâneo, orgânico, logo mais genuíno. Sem perder de vista o imperativo de promover a qualidade de vida e as condições condignas para a população, há que ponderar qual dos modelos melhor preserva a magia que tem feito com que milhares de visitantes se encantem com a Chã das Caldeiras.

Regressando ao risco vulcânico: dada a a natureza predominantemente efusiva das erupções históricas do Fogo, parece consensual que o principal fenómeno adverso a ter em conta são as escoadas de lava. Contra estas, a medida de protecção eficaz é a cota a que se edifica. Por outro lado, as características da topografia da Chã impõem um delicado equilíbrio que tenha em conta o perigo de queda de blocos rochosos da bordeira. Na procura desse equilíbrio, as encostas do Monte Amarelo poderão proporcionar a melhor solução para as infraestruturas mais vulneráveis. Constata-se aliás que no período em que a estrada de emergência esteve em uso se verificou um primeiro impulso de construção na encosta por onde essa estrada passava, mas que viria a ser preterido a favor dos terrenos mais planos – logo, mais expostos - quando se abriu a nova estrada através da recente escoada de lava. Talvez uma oportunidade perdida de condicionar a localização do edificado através da implantação criteriosa das infraestruturas?

Também a localização do furo de abastecimento de água a norte do Monte Amarelo é potencialmente um factor determinante da fixação futura da população, e por esse motivo a sua localização deveria ter tido em conta não só a vulnerabilidade da própria infraestrutura, mas principalmente o efeito na evolução da exposição da população. Desse ponto de vista, os manifestos problemas associados à fraca qualidade da água podem ser uma oportunidade para corrigir essa escolha. Com efeito, é sabido há várias décadas que o aquífero existente a algumas centenas de metros de profundidade na Chã das Caldeiras é altamente mineralizado devido à permanente emanação de gases vulcânicos através da caldeira. Surpreendentemente, não tem sido explorada na Chã das Caldeiras a abertura de túneis horizontais para captação de água no interior do maciço rochoso da bordeira. A tímida experiência da galeria de Boca Fonte (próximo da Portela), com cerca de 15m escavados no início do séc. 20, parece mostrar que esse é o caminho para o abastecimento de água de qualidade na Chã das Caldeiras. Haja em vista o sucesso que teve nos anos 80 do século passado a abertura da galeria da Fajã em São Nicolau, com 200 metros de comprimento. E não se receie que a exploração de água em altitude afecte os poços e nascentes que existem perto do nível do mar: segundo um estudo levado a cabo pelos Serviços Ggeológicos dos Estados Unidos[2], cerca de 99% da água que se infiltra nas terras altas acaba por perder-se para o oceano através de nascentes submarinas. A exploração de água através de túneis horizontais na bordeira permitiria colocar essas importantes infraestruturas fora do alcance das escoadas de lava, uma regra que deveria ser verificada em todas as instalações de natureza industrial na Chã das Caldeiras.

Na fronteira entre a Portela e a Bangaeira, o bar Ramiro foi reabilitado, sob coordenação da M_EIA. No seu interior, entre as paredes calcinadas pela visita da lava, vê-se agora uma pequena biblioteca, mas continua a reinar o Manecom. O pátio exterior permite um convívio mais desafogado, mas os filhos e netos do inolvidável Sr. Djonzinho asseguram a continuidade das fabulosas jam sessions musicais. No lado poente do pátio, um arco de pedra sustém o amplexo da escoada de lava, autêntico monumento à resiliência dos homens e mulheres da Chã, que dia a dia proclamam ao vulcão: “queremos o chão que é teu!”. Possa este exemplo, imbuído de caboverdianidade e pleno de sensibilidade, inspirar a reabilitação de toda a Chã das Caldeiras.


[1] Jenkins, S., Spence, R., Fonseca, J., Solidum, R. and Wilson, T. (2014). Volcanic risk assessment: Quantifying physical vulnerability in the built environment. Journal of Volcanology and Geothermal Research, 276, p. 105.

Jenkins, S., Day, S., Faria, B.V.E. and Fonseca, J.F.B.D. (2017). Damage from lava flows: insights from the 2014–2015 eruption of Fogo, Cape Verde, Journal of Applied Volcanology (Society and Volcanoes) 6(6)

  • 1)[2]Heilweil, V.M., Earle, J.D., Cederberg, J.R., Messer, M.M., Jorgensen, B.E., Verstraeten, E.M., Moura, M.A., Querido, A., Spencer, F. e Osório, T., (2006). Evaluation of Baseline Ground-Water Conditions in the Mosteiros, Ribeira Paul, and Ribeira Fajã Basins, Republic of Cape Verde, West Africa, 2005-06, Scientific Investigations Report 2006-5207, United States Geological Survey, Menlo Park, USA

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1039 de 27 de Outubro de 2021.