O recuo da cultura das humanidades e a democracia

quarta-feira, 25 de novembro de 2020


O texto que aqui se publica com a devida vénia ao seu autor, o historiador português José Pacheco Pereira, traz-nos - a sua leitura - uma compreensão bem fundamentada sobre o perigo de regressão da democracia e da sua sobrevivência enquanto escolha de uma sociedade com mais humanidade – em oposição à "barbárie."  E isto, devido à ausência de um “suporte cultural,” que necessita ser alimentado com consistência e com perseverança; com leitura e com cultura.

E mais nos transmite o texto sobre o saber entender melhor outras culturas,  o que só acontece quando a nossa democracia possui um “suporte cultural” forte.

E daí a pertinência da sua divulgação também neste espaço.

 

O recuo da cultura das humanidades e a democracia

Por José Pacheco Pereira*

A crise da leitura, a crise do valor do saber e das mediações que implica a democracia, reduz o espaço para o sentimento humanístico

Algum do processo de usura da democracia, de crescimento do populismo, de tribalização da política, da cloaca das redes sociais, está para além do sentimento de exclusão económica, social e cultural, está para além dos efeitos perversos da corrupção e do nepotismo, e do racismo e xenofobia modernos. Está na fragilidade do suporte cultural que é essencial para a sobrevivência da democracia, que é uma escolha cultural no sentido lato contra a natureza. Repito, a democracia não é um regime natural, mas artificial. Natural era andarmos todos a comer-nos uns aos outros, e todos os regimes que assentam na violência e na ordem do poder estão mais próximos dessa natureza do que da democracia. O que distingue a escolha democrática é exactamente ser uma opção, uma escolha, que nos afasta da barbárie através de um conjunto de procedimentos cujo objectivo é dar poder a todos, pela soberania do voto, e construir sociedades reguladas pela lei, em que não vale tudo. É imperfeito, mas é o melhor que temos, e está a ruir diante dos nossos olhos à custa de muita covardia, abolia e inércia.

Um dos aspectos dessa crise democrática é o recuo daquilo que, à falta de melhor, podemos chamar humanidades. Não vou entrar aqui na discussão sobre as “duas culturas”, que tem algum sentido em particular onde uma das “culturas” não é reconhecida como tal, ou pelo menos como igual à outra. Não me esqueço de um antigo flashback feito numa escola, ainda com Vasco Pulido Valente, em que ele gozava com Cavaco Silva porque este não sabia quantos Cantos tinham os Lusíadas. Eu perguntei-lhe se ele sabia o Princípio de Arquimedes ou o que era a inércia, e se não achava que isso era ignorância, e a coisa ficou por ali. Para mim não tem sentido a distinção contraditória, porque os rudimentos de uma cultura científica fazem parte das humanidades.

Vamos, por isso, usar uma definição comum de vulgar de “humanidades”, para não complicar, que contém a literatura, a arte, a música, o direito, as ciências sociais, a história, num contexto de aproximação ao “homem” que desde a Renascença e o Iluminismo tem traços comuns. Inclui uma ideia da fragilidade da vida humana, do serviço do “bem comum”, dos direitos humanos, da liberdade, a começar pela mais importante historicamente, a liberdade religiosa, do valor da igualdade, do papel da educação na luta contra a servidão, na emancipação e dignificação do trabalho, na recusa da violência, do respeito pelas escolhas de género e da aceitação de que cada um é livre de viver a vida que quer desde que não seja à custa da liberdade de outrem. É um sistema de valores ideal, que não nos protege em absoluto contra a barbárie, mas ajuda. E sem ele, como “visão do mundo” e contexto, a democracia não é possível, porque ele é uma peça fundamental na ecologia da democracia. Não é por acaso que todos os antidemocratas se manifestam contra esta tradição iluminista, que foi historicamente muito importante nos debates e decisões da independência dos EUA, e preferem falar das perversões do jacobinismo.

Mas esta cultura de humanidades é uma cultura, implica conhecimento, saber, referências, capacidade para viver experiências indirectas. É livresca? Também é, porque implica ler livros e não pensar que meia dúzia de simples competências num computador ou num telemóvel o substitui. E é incompatível com os traços anti-intelectuais típicos da ignorância agressiva das redes sociais que extravasam para a vida política no negacionismo da ciência que tem matado muita gente na actual pandemia. A crise da leitura, associada à crise do silêncio, do tempo e do espaço do pensar, a crise do valor do saber e das mediações que implica a democracia, reduz o espaço para o sentimento humanístico. É por isso que não se pode embarcar no mito da “geração mais bem preparada”, quando essa “preparação” pouco mais é do que um frágil diploma, conseguido com muito laxismo do lado das escolas, sem ler um livro fora da sebenta, com mais consumo das indústrias de simplificação e da logomaquia que vai do futebol ao Facebook, do engraçadismo dos vídeos virais, ou à adoração das imagens no Instagram.

A coragem na defesa do sentimento humanista é hoje mais importante do que nunca

Querem um exemplo do que é uma resposta à barbárie assente nas humanidades? Olhem para a fotografia: Unamuno, velho e débil, em plena guerra civil espanhola, diante de Millan Astray, legionário, mutilado de guerra, o típico herói fascista, que dizia que sempre que ouvia falar de cultura puxava da pistola, numa sala aos gritos de braços ao alto. Não se sabe bem os termos exactos do que disse Unamuno, que teve que ser tirado da sala protegido, mas o que é importante é que sentiu o dever de ter que dizer ao falangista, numa sala cheia de falangistas, que “vencer” não é “convencer”. A coragem na defesa do sentimento humanista é hoje mais importante do que nunca.

*Historiador – Público de 21.Nov.2020

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

 "Essa coisa estranha da responsabilidade individual" ganha enorme sentido nestes tempos conturbados, alterados e perturbados pela pandemia. Daí o interesse da publicação do texto que se segue da autoria do Historiador Pacheco Pereira. Embora o contexto espacial seja Portugal, é minha convicção de que o conteúdo se pode  também estender e aplicar-se com oportunidade, ao nosso contexto ilhéu.

Aqui se transcreve o Artigo publicado no Jornal "Público" de 31de Outubro de 2020, com a devida vénia ao seu autor.


Essa coisa estranha da responsabilidade individual

Por José Pacheco Pereira*

Se Portugal tivesse uma cultura de responsabilidade, seria possível decidir excepções caso a caso, como seria racional

 

A ideia de que existe uma coisa chamada “responsabilidade individual” não é muito popular. Por muitas razões, educação, formas actuais de sociabilidade, atrasos económicos e sociais, culturas de desresponsabilização, paternalismo estatal, falhanço familiar, desagregação dos saberes e das profissões, pobreza, crise das mediações, o empobrecimento do discurso público e das narrativas cívicas e políticas, a ignorância agressiva das redes sociais, o ascenso de egoísmo gerado pelas ideias de “sucesso”, protagonismo, e pelo “yuppismo”, tudo leva a que a ideia de responsabilidade esteja em recuo. Não é a única a recuar, vai a par com a crise do valor da privacidade, com uma simples noção de honestidade, com aquilo a que se costumava chamar “princípios”.

Tenho consciência de que todas estas questões de moral e ética não são simples, são até bastante complicadas. Mas fico-me com o sentido corrente das palavras, que correspondem ao entendimento comum — ou seja, toda a gente entende do que estou a falar. As polémicas recentes sobre a “educação cívica”, toda a discussão sobre a corrupção para além da legalidade, são apenas um exemplo de debates imperfeitos, mas que tocam questões de responsabilidade individual.

O que significa esta responsabilidade individual? Mais uma vez sem complicações, e no contexto da pandemia, é comportarmo-nos de modo a proteger-nos a nós próprios e aos outros, mesmo que isso signifique algum desconforto. Como se faz essa protecção? Alegar ignorância não é razoável, porque toda a gente sabe o que é, a começar pelo uso de máscaras, distanciação social, lavagem das mãos e ajudar-nos uns aos outros na medida das possibilidades, dirigida a todos os que têm dificuldades e necessidades a que não podem responder. Alegar pretextos ideológicos e políticos é quase sempre uma justificação para a preguiça e para o desleixo, tanto mais que quem os alega não recusa os tratamentos e os custos gerados pelo seu comportamento. Já para não falar do sofrimento que causam aos outros. Já ouvi vários jovens dizer que não têm de cumprir regras para uma doença que só afecta os “velhos”. Ou argumentos absurdos sobre a “liberdade” de não usar máscara por quem tem um capacete de mota debaixo do braço. Na verdade, é tudo bastante simples, precisa é de vontade e sentido de dever e da recusa de pretextos para a preguiça e o egoísmo.

Uma coisa é a responsabilidade colectiva, do governo, dos partidos, das corporações da saúde e outra é a das pessoas. Por muito que se possam tomar medidas — e o Governo é o principal responsável por essas medidas —, o controlo da pandemia só vai ser possível com duas coisas — responsabilidade individual e vacinas. Vacinas é uma questão de tempo, um ano talvez, até começarem a ter um papel. Mas a responsabilidade é para agora, não tem tempo para ser adiada.

O caos da resposta governamental, por exemplo, com as excepções aos ajuntamentos, acentua a desresponsabilização. O único ajuntamento que deu polémica foi o da Festa do Avante!, mas não foi a covid que esteve nas preocupações dos que se indignaram em alta voz, foi ser o PCP o alvo. Aliás, as comparações entre o que o Governo estava a permitir em eventos laicos de carácter político eram sempre contrastadas com as proibições que afectavam eventos religiosos, missas, Fátima, agora o Dia de Finados.

Não é uma comparação inocente. Depois, foi o laxismo em eventos desportivos de que o melhor exemplo, pela sua dimensão, foi a Fórmula 1 em Portimão, que serviu logo a seguir de justificação para os ajuntamentos para ver as ondas gigantes na Nazaré. O raciocínio justificativo é este: “Então se se pode juntar milhares num autódromo, porque não para ver a fúria do mar?” Ou seja: faço que me apetece.

Acresce que, como toda a gente sabe que não será penalizada pelo seu comportamento individual, se alguém tiver sido infectado numa festa estudantil ou a ver as ondas, e que em particular não verá barrada a sua entrada num hospital e o acesso aos tratamentos, muitas vezes caríssimos, pagos por todos nós, o sentimento de impunidade aumenta.

Se Portugal tivesse uma cultura de responsabilidade, seria possível decidir excepções caso a caso, como seria racional, em função dos interesses em causa, do valor e do retorno do que se permite. Mas, cá, isso apenas serve para justificar a asneira, quer de quem decide, quer de quem encontra aí uma justificação para o seu egoísmo. Por isso sobram apenas dois métodos: ou proíbe-se tudo sem excepções ou permite-se tudo. Nenhuma das opções vai acontecer, pelo que vai continuar o caos.

Muitos não estão a fazer a sua parte de comportamento responsável; por isso, precisam que se lhes fale grosso e feio. Fazer isso é também uma questão de responsabilidade individual

Valorizar o papel da responsabilidade individual significa desresponsabilizar o Governo? Nem pensar. Trata-se apenas de falar de duas coisas que deveriam ser complementares e que não se substituem uma à outra. Pode-se vociferar contra o Governo todo o dia, e a maioria das vezes com muita razão, mas nenhum governo pode controlar uma pandemia com estas características de facilidade de contágio e proximidade sem que os cidadãos assumam sua parte de comportamento responsável.

E a verdade é que muitos não o estão a fazer; por isso, precisam que se lhes fale grosso e feio. Fazer isso é também uma questão de responsabilidade individual.

*Historiador - Público de 31.10.2020