Recebi, por e-mail, um texto (autor
devidamente identificado) há já algum tempo, não muito, uma vez que dizia
respeito a uma data referenciada – aniversário da fundação do MpD (14.03.1990)
– um pequeno texto, que, galgando a onda do anglicismo que hoje vagueia pelo
mundo, se designa por “post”, que a seguir reproduzo, com a devida vénia, por
com ele concordar, embora ache que o autor tenha sido algo comedido na sua
apreciação:
“OS
DOIS EMEPÊDÊS...
O partido honrado e de princípios, que se chama Movimento para a
Democracia, fez ontem 29 anos de vida e, hoje, é um estado de espírito, uma
chama que vive na mente de milhares de cabo-verdianos (e que, seguramente, pese
o seu estado vegetativo, não vai morrer).
O partido que está no poder – que, curiosamente, ostenta o mesmo nome – tem
apenas cinco/seis anos de existência. São dois partidos diferentes, mas
partilhando o mesmo nome.
O primeiro, é um partido de militantes e de causas; o segundo, uma
coletividade de tecnocratas, uma espécie de Sociedade Anónima de
Responsabilidade Limitada...”
Sem discordar do autor, na sua
apreciação global penso que ao considerar o actual MpD “uma colectividade de
tecnocratas” terá usado um misericordioso eufemismo ou terá sido extremamente
generoso. Tecnocratas?! Quem nos dera!... Desde quando? Por respeito e
consideração, e até estima, por algumas pessoas da direcção do MpD e do seu
grupo parlamentar escuso-me de definir o tipo de colectividade em que se tornou
essa sociedade (empresa) política.
O que não há dúvida é que deixou de ter
uma linha condutora e uma doutrina orientadora associadas às suas raízes
identitárias. A submissão a pessoas, doutrinas e ideologias que nada têm que
ver com os princípios fundadores do MpD descaracteriza o partido conduzindo a
uma de três conclusões: amnésia selectiva, ausência de ideias ou completa falta
de carácter. Só assim se justifica a obediência a uma ideologia e a apologia ou
defesa de um regime que muitos males causaram ao povo cabo-verdiano e que foram
repudiadas de forma veemente nas legislativas do dia 13 de Janeiro de 1991 e do
dia 17 de Dezembro de 1995 – cada uma das datas com uma maioria qualificada – por
eleitores que sabiam e tinham bem presente o que fora a tenebrosa ditadura do PAIGC/CV
(vide “O Partido Único em Cabo Verde – Um Assalto à Esperança” de Humberto
Cardoso – Edição Pedro Cardoso).
Aceito que os novos eleitores – menores
de 40 anos – que terão crescido na
democracia e em liberdade, graças ao MpD (os menos informados nem o sabem) – não terão tido consciência da
verdadeira dimensão do que é (ou fora) a ausência desses valores fundamentais.
É certo que para esta situação também contribuíram, e têm contribuído, alguns trovadores
que no seu entusiasmo lírico terão conjugado “Independência” com “Liberdade”
como se de um casamento lógico se tratasse, sem se darem conta que a realidade,
desde os seus primeiros momentos, apontava para a absoluta inexistência desse
binómio. A Independência não se fez acompanhar nem da liberdade, nem da
democracia, mas sim de uma pura ditadura, e dura para a brandura deste povo.
A recente polémica sobre figuras do
Estado trouxe ao de cima, mais uma vez, a verdadeira natureza do actual MpD
sobre um assunto que não é, nem de perto nem de longe, virgem, e sobre o qual o
partido se manteve sempre quedo e mudo apesar de ter sido veiculado por várias
vezes e por diversas pessoas, nas redes sociais e na comunicação social.
O comunicado do secretariado do MpD acerca
de figuras do Estado ao invés de apelar ao reforço da necessidade do
cumprimento da Constituição fez tábua rasa do primado da Lei - o que é grave! –
ao ignorar a denúncia do seu incumprimento e esqueceu-se – amnésia selectiva? –
de que o assunto já fora levantado em 2006 por um ilustre deputado do próprio
MpD num artigo de opinião intitulado “Com que direito fotos de Amílcar Cabral
nas repartições do Estado?”
O inoportuno comunicado, respondendo
prontamente à “voz do dono”, além de descabido e lamentável, é intimidatório ao
pretender censurar a liberdade de expressão no seio do MpD com intenção nítida
de cercear um debate sério que ainda não se fez e do qual a democracia e a verdade
histórica clamam.
Absolutamente obcecado e pressuroso na
defesa acrítica e na legitimação do relato “épico” e “nacionalista” dos “homens
de Conacry” que procuram credibilidade na figura de Amílcar Cabral, esquece o
MpD que em democracia, em Estado de direito democrático, não há intocáveis ou “vacas
sagradas”. Estas – as vacas sagradas – normalmente associadas ao ‘culto de
personalidade’ são figuras de regimes autoritários do tipo de Kim Il Sung da
Coreia do Norte, de Hugo Chavez da Venezuela ou mesmo de Pereira/Pires dos
nossos primeiros 15 anos de País Independente, citando apenas alguns. Em
democracia ninguém está acima da Lei ou fora dela, sendo o respeito escrupuloso
pela Constituição e o cumprimento rigoroso das Leis da República a regra de
ouro. E não é preciso nenhum doutoramento de Harvard ou de Oxford para distinguir
entre figuras do Estado e figuras da História. Basta saber ler e escrever
português – coisa de que hoje poucos se interessam – e ter meia dúzia de
neurónios.
E é nesta esteira, a de submissão a
determinadas pessoas e doutrinas que certas narrativas consideradas heróicas e nacionalistas
sem uma análise consistente da sua sustentabilidade, substantiva e adjectiva, nem
a aferição da sua dimensão e estatuto que embarcámos no “19 de Maio” como o dia
do Município da nossa capital. Uma escaramuça entre magalas e um grupo de
rapazes e raparigas na esplanada da Praça Alexandre de Albuquerque transformou-se
num acto heróico merecedor de um feriado municipal. Ou terá sido considerado uma
resistência organizada contra as Forças Armadas portuguesas que escancararam as
portas da independência ao PAIGC? Porquê então municipal e não nacional se se
trata de um acto heróico, de um dia marcante da nossa gloriosa História? As
datas municipais têm uma lógica bem diferente das datas nacionais – em conteúdo,
contexto e simbolismo.
Não é preciso ter dois dedos de testa
para saber que, no fatídico dia 19 de Maio, se houvesse intenção expressa
(ordenada) de matar, não sobraria ninguém. Eram militares vindos da Guiné – com experiência operacional – munidos de espingardas metralhadoras.
Bastaria um, um só, para fazer os estragos que vimos, infelizmente, assistindo
nos “tiroteios” nos EUA e noutros países. Não quer isto dizer que o incidente
não tenha sido grave. Foi gravíssimo e muito violento, apesar de não ter havido
vítimas mortais. Foi um acto condenável, de efeitos lastimáveis, mas circunscritos
e controlados, entre jovens exaltados.
E o mais curioso, é que parece que a
própria Câmara já tinha chegado, e bem, a essas conclusões ao adoptar o 29 de
Abril – data da elevação da Vila de Santa Maria à categoria de Cidade da Praia
em 1858 por Sá da Bandeira – como o dia do Município.
Então, porquê manter o “19 de Maio”? Submissão
à narrativa do PAIGC/CV? Porque engendrou a Câmara uma reunião justificativa
para concluir salomonicamente de forma ardilosa ou covarde – conforme as
perspectivas: cumprimento do “pacto” ou medo da desconstrução da narrativa –
para a manutenção das duas datas? Não, o 19 de Maio só pode ser “feriado” numa
lógica marxista de fixação de datas históricas ou numa visão estreita da
História. A sua dimensão, natureza e estatuto não enobrecem nem dignificam
Praia, mas quiçá, apenas e tão-somente, alguns protagonistas do evento que dele
têm beneficiado. Por este andar não se estranharia muito se Ribeira Bote reivindicasse
o seu “estatuto” de primeira “zona libertada” de Cabo Verde e S. Vicente tivesse
também o seu 2º “Dia do Município”.
Praia merece mais. Muito mais! De algo
digno e honroso que diga directamente respeito a todos os seus munícipes. E o
simbolismo da data da sua elevação, por reconhecido mérito, à categoria de cidade
no século XIX é suficiente porque é pertença de todos os seus munícipes e é, para
ela, até agora, bem mais significativa do que qualquer outra data. E a manutenção
concomitante do “19 de Maio” configura-se abstrusa e redutora.
A.Ferreira