O ALEGADO “CASO SEMENTE DE MANGA” ENTRE A MISTIFICAÇÃO E A POLITIZAÇÃO

sexta-feira, 22 de setembro de 2017
Porque pouquíssimos leitores conhecerão o significado e a razão da expressão em título colocada entre comas, passo a explicar. Trata-se da alcunha com que um aluno do antigo liceu Gil Eanes crismou o Dr. Antero Marques Simões (AMS), português, natural da Póvoa de Varzim, que foi professor naquele estabelecimento entre 1959 e 1963 e exerceu o cargo de reitor a partir de meados de 1962. A alcunha ficou a dever-se ao facto de o AMS usar o seu cabelo bastante liso colado à cabeça.
      Tudo isto só vem a propósito porque em entrevista publicada no jornal online Mindelinsite, o ilustre cidadão Amiro Faria, que integra a comissão organizadora das comemorações do centenário do Liceu Gil Eanes, afirmou, entre outras declarações:Além destes (palestrantes), o escritor Leão Lopes assume a tarefa de falar sobre a “Consciencialização política e resistência colonial – O caso do semente de manga”, que é um facto bastante notável de jovens que se rebelaram contra a presença colonial. No passado, o Liceu acolheu portugueses que deixaram boas recordações, caso do famoso professor de matemática Aristides Gonçalves. Mas, o Antero Simões, mais conhecido por ‘semente de manga’ era um homem da mocidade portuguesa, que pertencia e que estava comprometido com o regime que nos queria oprimir. Portanto, os estudantes revoltaram-se contra ele e não foi contra um português qualquer, foi contra um homem da máquina colonial opressora. Não era uma oposição anti-lusa, porque na altura tínhamos vários colegas portugueses e nunca houve quaisquer problemas com eles a não ser quando algum se arvorava de ser mais esperto e arrogante pelo simples facto de ser português”.
      Ora, antes de mais, surpreende-me que seja Leão Lopes a falar sobre o “Caso do Semente de Manga”, porque, adolescente dos seus catorze anos quando Antero Marques Simões (AMS) deixou o liceu, não foi seguramente seu aluno e mal deve ter conhecido a pessoa. Assim, Leão Lopes só pode construir e sustentar a sua tese com base em narrativa alheia, que pode ser legítima mas não necessariamente pautada pela objectividade e pela isenção. De facto, a avaliar pelo título da sua palestra, receio que o autor se fundamente apenas em fontes que podem estar contaminadas por preconceitos ou sentimentos pessoais que nem o tempo conseguiu delir. Possivelmente, as atoardas e objurgatórias de outros tempos ainda retinem no diapasão de algumas consciências que detestavam o professor pelo seu modo peculiar de ser ou pela sua identificação com o ideário salazarista de um Portugal uno do Minho a Timor, que ele não ocultava mas também não publicitava ostensivamente.
      Da minha parte, nunca alimentei qualquer animosidade contra o AMS nem seria capaz de me referir à sua pessoa utilizando aquela alcunha. Do que mais guardo memória é das suas notáveis qualidades como docente e pedagogo, enquanto meu professor de português nos antigos 4º e 5º anos do liceu. Não me lembro de alguma vez o AMS ter feito qualquer alusão à política do Estado Novo nas aulas, de forma explícita ou sequer insinuada. Eu ignorava completamente o rumo que a sua vida tomou após sair de Cabo Verde e nunca mais soube dele até receber, há três anos, o telefonema de um correspondente meu residente em França. No facebook, ele lera que um tal Dr. Antero Simões ia lançar um livro na Póvoa do Varzim e pretendia que eu averiguasse se se tratava do “Semente de Manga”, expressão de que fez uso com jocosidade e disparando uma gargalhada.
      De facto, prometi averiguar e nesse sentido enviei um e-mail para a Biblioteca da Póvoa de Varzim, por ali ter ocorrido o lançamento do livro. Deixei os meus dados pessoais e contacto telefónico para me poder ser prestada a informação pretendida. Para minha surpresa, receberia dias volvidos um telefonema do próprio AMS, mostrando-se radiante e mesmo exultante pelo facto de um antigo aluno de Cabo Verde ter procurado saber da sua pessoa. Contou-me o que lhe aconteceu depois de sair de S. Vicente e ficámos a corresponder por correio electrónico. Fui logo convidado para o lançamento do seu livro (sobre Eça de Queirós) em Lisboa, de que me enviou um exemplar por correio. Na correspondência electrónica que se seguiria, a mágoa do que lhe aconteceu em S. Vicente vinha sempre ao de cima e percebi tratar-se de uma ferida na alma que nunca cicatrizou e vai manter-se viva até ao fim da sua existência. No entanto, em todas as nossas conversas, arranjava sempre pretexto para falar de Cabo Verde e do carinho que sentia pela nossa gente.
      No meu entendimento, à volta da pessoa do AMS, e à revelia das qualidades do docente, criou-se uma imagem negativa proporcionada por duas contribuições distintas. De um lado, a chacota que a alcunha suscitava entre os alunos irreverentes e quantas vezes pródigos em atitudes parvas, descabidas e alarves. De outro lado, os juízos que alguns alunos mais velhos tendiam a fazer sobre alguém que, sendo “mandrongo”, só poderia personificar no liceu a autoridade colonial (ou colonialista) e repressora, a partir do momento em que foi nomeado reitor e, em acumulação, encarregado da Mocidade Portuguesa (MP). Naturalmente que os julgamentos que uns e outros, como eu, poderiam formular em questões desta natureza, dependiam de preconceitos que são do foro íntimo e de horizontes mentais que cada um construía à medida das suas capacidades intelectuais, mas sempre com as naturais limitações impostas pelo meio e pela censura política. Contudo, não creio que a essa época algum de nós estivesse imbuído de uma crença política alicerçada em sólido conhecimento filosófico ou doutrinal ou balizada por uma convicção razoavelmente esclarecida.
      Indirectamente, a alcunha “Semente de Manga” é que espoletou o incidente que originou a destituição de AMS do cargo de reitor. Com efeito, certo dia de 1963, um aluno, logo de manhãzinha, lembrou-se de pregar na porta de entrada do liceu a semente de uma manga. O estabelecimento não se abriu à hora normal e os alunos foram-se aglomerando no exterior, aguardando qualquer resolução. A dado passo, a mole humana dos alunos abandonou o local e rumou para a rua de Lisboa, com um ou outro a gritar palavras de ordem contra o reitor. O acontecimento teve impacto imediato e o reitor foi logo suspenso das suas funções. Seguiu-se um inquérito ou averiguações em que eu e alguns alunos, por sermos finalistas do liceu, fomos chamados a depor.
      Ora, temos de analisar os factos pondo de lado as paixões e os preconceitos, sem o que cilindramos a verdade ou a manipulamos ardilosamente em função das nossas conveniências. E a verdade é que, em minha opinião, o AMS não correspondia ao estereótipo que alguns dos meus companheiros julgavam. Só não o quererão ver os que, infelizmente, ficaram presos no tempo ou então aqueles em que o preconceito político ou de outro jaez mora de pedra e cal, renitente mesmo, impedindo a descolonização definitiva dos espíritos.
      Com efeito, à volta do AMS criou-se e mantém-se, a meu ver, uma imagem distorcida sobre a sua verdadeira natureza humana, em simultâneo com uma total omissão das qualidades que evidenciou como docente no nosso Gil Eanes. Quanto à questão política que é invocada para fundamentar a intenção de o julgar sem apelo nem agravo, e de o vilipendiar, o AMS, na verdade, acreditava, como certamente ainda acredita, no ideário salazarista de um Portugal utópico do Minho a Timor, num absurdo autismo face ao caminhar da História. Contudo, a sua visão era a de um homem crédulo nas virtudes que ingenuamente supunha existir na doutrina salazarista, talvez aceitando como um mal necessário a ausência de liberdades cívicas e a repressão política. É que no seu espírito abrigava uma versão do salazarismo a que emprestava apenas colorações humanistas, acreditando num espaço comum onde haveria uma igualdade de direitos entre os povos, sem distinção de raças ou etnias. Tendo nascido no Estado Novo e sido educado segundo a sua cartilha, aliás, como todos os portugueses da sua geração, mesmo os naturais das colónias, AMS não via qualquer malefício na política de Salazar e não pertencia ao rol dos seus críticos e menos ainda daqueles que a condenavam e combatiam. E o que é curioso, se não irónico, é que AMS não pertencia àquelas ricas e influentes famílias que apoiavam e patrocinavam a política salazarista porque colhiam os dividendos da exploração dos povos das colónias. Pelo contrário, homem bom e simples, sem qualquer presunção, fez saber em Cabo Verde que era filho de um alfaiate e neto de pescador. Ora, um professor de liceu “mandrongo”, vaidoso e pretensioso, como o querem catalogar, não chega a uma colónia e confessa a sua modesta origem social assim de forma tão explícita e natural.
      Pelo que precede, acho abusivo, se não mesmo uma monstruosa falácia, afirmar que o professor era “um homem da máquina opressora colonial”, conforme as palavras de Amiro Faria, o que pode sugerir ao leitor a ideia de que ele foi colocado no Gil Eanes para doutrinar jovens e adolescentes. Por outro lado, considerar que o cargo de chefia que passou a deter na Mocidade Portuguesa (MP) era prova cabal da suspeição que sobre ele recaiu, não constitui argumento sério. Não se esqueça que houve entusiastas e antigos filiados da MP que aderiram ao PAIGC e à independência de Cabo Verde nos moldes precisos em que ela ocorreu. Certo cidadão que foi outrora um destacado graduado da MP viria mesmo a exercer um cargo importante na segurança (ou polícia política?) do novo estado independente. Bastou um conveniente virar de casaca a seguir ao 25 de Abril. Bem afirmou William Shakespeare, aludindo à hipocrisia, que “os homens deviam ser o que parecem ou, pelo menos, não parecerem o que não são”.
        Na correspondência que estabeleci com AMS, o professor confessou-me que antes de ser reitor no Gil Eanes nunca pertencera sequer àquela organização e que só aceitou o cargo porque foi uma exigência para ser nomeado reitor pelo governador de então. Eu aqui não posso ajuizar porque desconheço em absoluto o que se passou em sede de decisão. Em todo o caso, não houve notícia de que o responsável local pela MP tivesse procedido nesse cargo de forma muito diferente dos seus antecessores. Percebi, por aquilo que me confessou, que ele via a MP como um espaço onde os jovens se entretinham em actividades lúdicas, desportivas e formativas. O que julgo fez entornar o caldo foi ter exigido a obrigatoriedade da comparência à Milícia, que era a versão da MP a partir dos 18 anos ou do sexto ano do liceu, sob pena de perda de ano por faltas. No entanto, não me recordo de ter havido sanção disciplinar contra alguém que tenha incumprido. Mas a verdade é que foi sobretudo essa medida, ou o modo desastrado como foi imposta, que fez espoletar uma certa má vontade contra o reitor, porventura agravada pelo facto de ser “mandrongo”.
      E chegado aqui vou fazer uns juízos, naturalmente subjectivos, por aquilo que observei no homem que é hoje o velho professor. Julgo que o ASM denota uma certa fragilidade emocional que nem com a idade ultrapassou. A sua estrutura psicológica talvez não o recomendasse para o cargo de reitor à idade que tinha na altura (trinta e três anos), e a verdade é que não se saiu bem no seu desempenho. Foi o próprio AMS que, remoendo a sua mágoa, me confessou esta pergunta que viria pelo tempo fora a fazer constantemente a si próprio: “Antero, quem te mandou aceitar seres reitor se eras ainda muito jovem e se o que mais adoravas era ensinar aquilo que sabias?”. Ao fazer esta afirmação, deu a entender, reconhecendo a sua falha, que como reitor devia ter tido uma atitude algo mais cautelosa e mais prospectiva, antes de introduzir as alterações com que, no seu ponto de vista, tencionava uma melhoria do funcionamento do liceu. Direi que ele não terá avaliado convenientemente todos os parâmetros do circunstancialismo do meio social local.
      Por tudo o que precede é que me parece errado rotular o AMS de ditador ou instrumento de repressão colonial, porque em boa verdade, e conforme vai ficando nítido a quem queira ver, esse papel não se lhe quadrava. E nem o desejaria porque era, e é seguramente, um ser de boa natureza. O que é de facto questionável é a razão por que foi nomeado reitor quando havia colegas mais velhos e mais antigos no estabelecimento de ensino. Foi porque ele era “mandrongo”? Ou porque mais ninguém pretendia o cargo? Desconheço em absoluto.
      Demonstrando-me que nutria um especial sentimento de solidariedade para com a nossa gente, fez-me estas revelações: pagava à sua criada bem mais do que era praticado no meio porque conhecia bem as suas necessidades pessoais; ajudou financeiramente umas poucas de vezes o guarda do clube de ténis onde aprendeu a praticar a modalidade; deu aulas particulares grátis de latim, à noite, ao Corsino Fortes, na altura em que este se preparava, como adulto, para ir para o curso de Direito em Lisboa; a sua mulher, Maria das Dores, que era professora mas não exercia, cosia à noite fardas da MP para os alunos que tinham dificuldade em a comprar. Isto era procedimento de alguém arrogante, distante e colonialista de maus fígados?
      Pois, acredito que se os detractores deste homem conhecessem bem a sua verdadeira índole, a comissão organizadora não aprovaria que um dos palestrantes o elegesse como bombo da festa da comemoração do centenário do nosso Gil Eanes. Quando fui ao lançamento do seu livro em Lisboa, para que fui convidado, estiveram presentes muitos dos seus alunos de Angola, alguns deles mestiços. Chalaceavam com ele, ao encontro do seu jeito peculiar de ser, e todos demonstravam especial carinho pelo antigo professor, sem nenhum sinal de hostilização ou de dívida por cobrar. Nesse evento esteve também presente uma criada que o AMS teve em Angola, cabo-verdiana, acompanhada de um filho. A este respeito, confidenciar-me-ia que quando foi transferido para Angola fez questão de procurar lá uma criada que fosse filha das nossas ilhas para assim poder matar as saudades. No fim, reparei que ele puxou da carteira para dar algum dinheiro à mulher, já idosa.
      Por conseguinte, há necessidade de clarificar os factos para evitar mistificações em torno de uma pessoa que pode ter sido mais vítima das circunstâncias do que o algoz em que alguns o querem transformar. Nesse sentido, sugiro acima de tudo ao Leão Lopes que evite pessoalizar quaisquer extrapolações políticas que pretenda na sua tese, evitando sobretudo que o velho professor, escritor e estudioso incansável e profícuo do Eça de Queirós, com várias obras publicadas, seja desnecessariamente achincalhado e vexado, o que não será nada dignificante para o palestrante, tanto mais que a pessoa visada tem actualmente uma provecta idade e, estando ausente, não pode justificar-se e defender-se. Em minha opinião, incorrer nesse erro atentará contra a dignidade de um acto que se pretende de celebração e enaltecimento da história do ensino em Cabo Verde e não de ajuste serôdio de contas com pessoas que bem ou mal serviram o liceu Gil Eanes. De resto, acho desapropriado que o palestrante faça uso de uma alcunha −“Semente de Manga”− que terá sido criada por algum rapazola possivelmente carente daquela educação e princípios básicos que nem todos tinham a possibilidade de adquirir no seio familiar.
      Tenho a certeza absoluta de que Baltasar Lopes da Silva e António Aurélio Gonçalves, dois vultos notáveis da história do liceu Gil Eanes, dois ícones da nossa cultura, concordariam comigo.


Tomar, Setembro de 2017

Adriano Miranda Lima