Porque
pouquíssimos leitores conhecerão o significado e a razão da expressão em título
colocada entre comas, passo a explicar. Trata-se da alcunha com que um aluno do
antigo liceu Gil Eanes crismou o Dr. Antero Marques Simões (AMS), português,
natural da Póvoa de Varzim, que foi professor naquele estabelecimento entre
1959 e 1963 e exerceu o cargo de reitor a partir de meados de 1962. A alcunha
ficou a dever-se ao facto de o AMS usar o seu cabelo bastante liso colado à
cabeça.
Tudo isto só vem a propósito porque em
entrevista publicada no jornal online
Mindelinsite, o ilustre cidadão Amiro Faria, que integra a comissão
organizadora das comemorações do centenário do Liceu Gil Eanes, afirmou, entre
outras declarações: “Além destes
(palestrantes), o escritor Leão Lopes assume a tarefa de falar sobre a
“Consciencialização política e resistência colonial – O caso do semente de
manga”, que é um facto bastante notável de jovens que se rebelaram contra a
presença colonial. No passado, o Liceu acolheu portugueses que deixaram boas
recordações, caso do famoso professor de matemática Aristides Gonçalves. Mas, o
Antero Simões, mais conhecido por ‘semente de manga’ era um homem da mocidade
portuguesa, que pertencia e que estava comprometido com o regime que nos queria
oprimir. Portanto, os estudantes revoltaram-se contra ele e não foi contra um
português qualquer, foi contra um homem da máquina colonial opressora. Não era
uma oposição anti-lusa, porque na altura tínhamos vários colegas portugueses e
nunca houve quaisquer problemas com eles a não ser quando algum se arvorava de
ser mais esperto e arrogante pelo simples facto de ser português”.
Ora, antes de mais, surpreende-me que
seja Leão Lopes a falar sobre o “Caso do Semente de Manga”, porque, adolescente
dos seus catorze anos quando Antero Marques Simões (AMS) deixou o liceu, não
foi seguramente seu aluno e mal deve ter conhecido a pessoa. Assim, Leão Lopes
só pode construir e sustentar a sua tese com base em narrativa alheia, que pode
ser legítima mas não necessariamente pautada pela objectividade e pela isenção.
De facto, a avaliar pelo título da sua palestra, receio que o autor se
fundamente apenas em fontes que podem estar contaminadas por preconceitos ou
sentimentos pessoais que nem o tempo conseguiu delir. Possivelmente, as
atoardas e objurgatórias de outros tempos ainda retinem no diapasão de algumas
consciências que detestavam o professor pelo seu modo peculiar de ser ou pela
sua identificação com o ideário salazarista de um Portugal uno do Minho a
Timor, que ele não ocultava mas também não publicitava ostensivamente.
Da minha parte, nunca alimentei qualquer
animosidade contra o AMS nem seria capaz de me referir à sua pessoa utilizando
aquela alcunha. Do que mais guardo memória é das suas notáveis qualidades como
docente e pedagogo, enquanto meu professor de português nos antigos 4º e 5º
anos do liceu. Não me lembro de alguma vez o AMS ter feito qualquer alusão à
política do Estado Novo nas aulas, de forma explícita ou sequer insinuada. Eu
ignorava completamente o rumo que a sua vida tomou após sair de Cabo Verde e
nunca mais soube dele até receber, há três anos, o telefonema de um
correspondente meu residente em França. No facebook, ele lera que um tal Dr.
Antero Simões ia lançar um livro na Póvoa do Varzim e pretendia que eu
averiguasse se se tratava do “Semente de Manga”, expressão de que fez uso com
jocosidade e disparando uma gargalhada.
De facto, prometi averiguar e nesse
sentido enviei um e-mail para a
Biblioteca da Póvoa de Varzim, por ali ter ocorrido o lançamento do livro.
Deixei os meus dados pessoais e contacto telefónico para me poder ser prestada
a informação pretendida. Para minha surpresa, receberia dias volvidos um
telefonema do próprio AMS, mostrando-se radiante e mesmo exultante pelo facto
de um antigo aluno de Cabo Verde ter procurado saber da sua pessoa. Contou-me o
que lhe aconteceu depois de sair de S. Vicente e ficámos a corresponder por
correio electrónico. Fui logo convidado para o lançamento do seu livro (sobre
Eça de Queirós) em Lisboa, de que me enviou um exemplar por correio. Na
correspondência electrónica que se seguiria, a mágoa do que lhe aconteceu em S.
Vicente vinha sempre ao de cima e percebi tratar-se de uma ferida na alma que
nunca cicatrizou e vai manter-se viva até ao fim da sua existência. No entanto,
em todas as nossas conversas, arranjava sempre pretexto para falar de Cabo
Verde e do carinho que sentia pela nossa gente.
No meu entendimento, à volta da pessoa do
AMS, e à revelia das qualidades do docente, criou-se uma imagem negativa
proporcionada por duas contribuições distintas. De um lado, a chacota que a
alcunha suscitava entre os alunos irreverentes e quantas vezes pródigos em
atitudes parvas, descabidas e alarves. De outro lado, os juízos que alguns
alunos mais velhos tendiam a fazer sobre alguém que, sendo “mandrongo”, só
poderia personificar no liceu a autoridade colonial (ou colonialista) e
repressora, a partir do momento em que foi nomeado reitor e, em acumulação,
encarregado da Mocidade Portuguesa (MP). Naturalmente que os julgamentos que
uns e outros, como eu, poderiam formular em questões desta natureza, dependiam
de preconceitos que são do foro íntimo e de horizontes mentais que cada um
construía à medida das suas capacidades intelectuais, mas sempre com as
naturais limitações impostas pelo meio e pela censura política. Contudo, não
creio que a essa época algum de nós estivesse imbuído de uma crença política
alicerçada em sólido conhecimento filosófico ou doutrinal ou balizada por uma
convicção razoavelmente esclarecida.
Indirectamente, a alcunha “Semente de
Manga” é que espoletou o incidente que originou a destituição de AMS do cargo
de reitor. Com efeito, certo dia de 1963, um aluno, logo de manhãzinha,
lembrou-se de pregar na porta de entrada do liceu a semente de uma manga. O
estabelecimento não se abriu à hora normal e os alunos foram-se aglomerando no
exterior, aguardando qualquer resolução. A dado passo, a mole humana dos alunos
abandonou o local e rumou para a rua de Lisboa, com um ou outro a gritar
palavras de ordem contra o reitor. O acontecimento teve impacto imediato e o reitor
foi logo suspenso das suas funções. Seguiu-se um inquérito ou averiguações em
que eu e alguns alunos, por sermos finalistas do liceu, fomos chamados a depor.
Ora, temos de analisar os factos pondo de
lado as paixões e os preconceitos, sem o que cilindramos a verdade ou a
manipulamos ardilosamente em função das nossas conveniências. E a verdade é
que, em minha opinião, o AMS não correspondia ao estereótipo que alguns dos
meus companheiros julgavam. Só não o quererão ver os que, infelizmente, ficaram
presos no tempo ou então aqueles em que o preconceito político ou de outro jaez
mora de pedra e cal, renitente mesmo, impedindo a descolonização definitiva dos
espíritos.
Com efeito, à volta do AMS criou-se e
mantém-se, a meu ver, uma imagem distorcida sobre a sua verdadeira natureza
humana, em simultâneo com uma total omissão das qualidades que evidenciou como
docente no nosso Gil Eanes. Quanto à questão política que é invocada para
fundamentar a intenção de o julgar sem apelo nem agravo, e de o vilipendiar, o
AMS, na verdade, acreditava, como certamente ainda acredita, no ideário
salazarista de um Portugal utópico do Minho a Timor, num absurdo autismo face
ao caminhar da História. Contudo, a sua visão era a de um homem crédulo nas
virtudes que ingenuamente supunha existir na doutrina salazarista, talvez
aceitando como um mal necessário a ausência de liberdades cívicas e a repressão
política. É que no seu espírito abrigava uma versão do salazarismo a que
emprestava apenas colorações humanistas, acreditando num espaço comum onde
haveria uma igualdade de direitos entre os povos, sem distinção de raças ou
etnias. Tendo nascido no Estado Novo e sido educado segundo a sua cartilha,
aliás, como todos os portugueses da sua geração, mesmo os naturais das colónias,
AMS não via qualquer malefício na política de Salazar e não pertencia ao rol dos seus críticos e menos ainda daqueles que a condenavam e combatiam. E o que
é curioso, se não irónico, é que AMS não pertencia àquelas ricas e influentes
famílias que apoiavam e patrocinavam a política salazarista porque colhiam os
dividendos da exploração dos povos das colónias. Pelo contrário, homem bom e
simples, sem qualquer presunção, fez saber em Cabo Verde que era filho de um
alfaiate e neto de pescador. Ora, um professor de liceu “mandrongo”, vaidoso e
pretensioso, como o querem catalogar, não chega a uma colónia e confessa a sua
modesta origem social assim de forma tão explícita e natural.
Pelo que precede, acho abusivo, se não
mesmo uma monstruosa falácia, afirmar que o professor era “um homem da máquina
opressora colonial”, conforme as palavras de Amiro Faria, o que pode sugerir ao
leitor a ideia de que ele foi colocado no Gil Eanes para doutrinar jovens e
adolescentes. Por outro lado, considerar que o cargo de chefia que passou a
deter na Mocidade Portuguesa (MP) era prova cabal da suspeição que sobre ele
recaiu, não constitui argumento sério. Não se esqueça que houve entusiastas e
antigos filiados da MP que aderiram ao PAIGC e à independência de Cabo Verde nos
moldes precisos em que ela ocorreu. Certo cidadão que foi outrora um destacado
graduado da MP viria mesmo a exercer um cargo importante na segurança (ou
polícia política?) do novo estado independente. Bastou um conveniente virar de
casaca a seguir ao 25 de Abril. Bem afirmou William Shakespeare, aludindo à
hipocrisia, que “os homens deviam ser o que parecem ou, pelo menos, não
parecerem o que não são”.
Na correspondência que estabeleci com
AMS, o professor confessou-me que antes de ser reitor no Gil Eanes nunca
pertencera sequer àquela organização e que só aceitou o cargo porque foi uma
exigência para ser nomeado reitor pelo governador de então. Eu aqui não posso
ajuizar porque desconheço em absoluto o que se passou em sede de decisão. Em
todo o caso, não houve notícia de que o responsável local pela MP tivesse
procedido nesse cargo de forma muito diferente dos seus antecessores. Percebi,
por aquilo que me confessou, que ele via a MP como um espaço onde os jovens se
entretinham em actividades lúdicas, desportivas e formativas. O que julgo fez
entornar o caldo foi ter exigido a obrigatoriedade da comparência à Milícia,
que era a versão da MP a partir dos 18 anos ou do sexto ano do liceu, sob pena
de perda de ano por faltas. No entanto, não me recordo de ter havido sanção
disciplinar contra alguém que tenha incumprido. Mas a verdade é que foi
sobretudo essa medida, ou o modo desastrado como foi imposta, que fez espoletar
uma certa má vontade contra o reitor, porventura agravada pelo facto de ser “mandrongo”.
E chegado aqui vou fazer uns juízos,
naturalmente subjectivos, por aquilo que observei no homem que é hoje o velho
professor. Julgo que o ASM denota uma certa fragilidade emocional que nem com a
idade ultrapassou. A sua estrutura psicológica talvez não o recomendasse para o
cargo de reitor à idade que tinha na altura (trinta e três anos), e a verdade é
que não se saiu bem no seu desempenho. Foi o próprio AMS que, remoendo a sua
mágoa, me confessou esta pergunta que viria pelo tempo fora a fazer
constantemente a si próprio: “Antero,
quem te mandou aceitar seres reitor se eras ainda muito jovem e se o que mais
adoravas era ensinar aquilo que sabias?”. Ao fazer esta afirmação, deu a
entender, reconhecendo a sua falha, que como reitor devia ter tido uma atitude
algo mais cautelosa e mais prospectiva, antes de introduzir as alterações com
que, no seu ponto de vista, tencionava uma melhoria do funcionamento do liceu.
Direi que ele não terá avaliado convenientemente todos os parâmetros do
circunstancialismo do meio social local.
Por tudo o que precede é que me parece
errado rotular o AMS de ditador ou instrumento de repressão colonial, porque em
boa verdade, e conforme vai ficando nítido a quem queira ver, esse papel não se
lhe quadrava. E nem o desejaria porque era, e é seguramente, um ser de boa
natureza. O que é de facto questionável é a razão por que foi nomeado reitor
quando havia colegas mais velhos e mais antigos no estabelecimento de ensino.
Foi porque ele era “mandrongo”? Ou porque mais ninguém pretendia o cargo?
Desconheço em absoluto.
Demonstrando-me que nutria um especial
sentimento de solidariedade para com a nossa gente, fez-me estas revelações:
pagava à sua criada bem mais do que era praticado no meio porque conhecia bem
as suas necessidades pessoais; ajudou financeiramente umas poucas de vezes o
guarda do clube de ténis onde aprendeu a praticar a modalidade; deu aulas
particulares grátis de latim, à noite, ao Corsino Fortes, na altura em que este
se preparava, como adulto, para ir para o curso de Direito em Lisboa; a sua
mulher, Maria das Dores, que era professora mas não exercia, cosia à noite
fardas da MP para os alunos que tinham dificuldade em a comprar. Isto era
procedimento de alguém arrogante, distante e colonialista de maus fígados?
Pois, acredito que se os detractores
deste homem conhecessem bem a sua verdadeira índole, a comissão organizadora
não aprovaria que um dos palestrantes o elegesse como bombo da festa da
comemoração do centenário do nosso Gil Eanes. Quando fui ao lançamento do seu
livro em Lisboa, para que fui convidado, estiveram presentes muitos dos seus
alunos de Angola, alguns deles mestiços. Chalaceavam com ele, ao encontro do
seu jeito peculiar de ser, e todos demonstravam especial carinho pelo antigo
professor, sem nenhum sinal de hostilização ou de dívida por cobrar. Nesse
evento esteve também presente uma criada que o AMS teve em Angola,
cabo-verdiana, acompanhada de um filho. A este respeito, confidenciar-me-ia que
quando foi transferido para Angola fez questão de procurar lá uma criada que
fosse filha das nossas ilhas para assim poder matar as saudades. No fim,
reparei que ele puxou da carteira para dar algum dinheiro à mulher, já idosa.
Por conseguinte, há necessidade de
clarificar os factos para evitar mistificações em torno de uma pessoa que pode
ter sido mais vítima das circunstâncias do que o algoz em que alguns o querem
transformar. Nesse sentido, sugiro acima de tudo ao Leão Lopes que evite
pessoalizar quaisquer extrapolações políticas que pretenda na sua tese,
evitando sobretudo que o velho professor, escritor e estudioso incansável e
profícuo do Eça de Queirós, com várias obras publicadas, seja
desnecessariamente achincalhado e vexado, o que não será nada dignificante para
o palestrante, tanto mais que a pessoa visada tem actualmente uma provecta
idade e, estando ausente, não pode justificar-se e defender-se. Em minha
opinião, incorrer nesse erro atentará contra a dignidade de um acto que se
pretende de celebração e enaltecimento da história do ensino em Cabo Verde e
não de ajuste serôdio de contas com pessoas que bem ou mal serviram o liceu Gil
Eanes. De resto, acho desapropriado que o palestrante faça uso de uma alcunha
−“Semente de Manga”− que terá sido criada por algum rapazola possivelmente
carente daquela educação e princípios básicos que nem todos tinham a
possibilidade de adquirir no seio familiar.
Tenho a certeza absoluta de que Baltasar
Lopes da Silva e António Aurélio Gonçalves, dois vultos notáveis da história do
liceu Gil Eanes, dois ícones da nossa cultura, concordariam comigo.
Tomar,
Setembro de 2017
Adriano
Miranda Lima