AFINAL QUEM NÃO É COMBATENTE PARA A
INDEPENDÊNCIA?
Lei n.º 6/74 de 19 de Julho do Conselho de
Estado decreta e eu promulgo, para valer como lei constitucional,
o seguinte:
ARTIGO 2.º
O reconhecimento do princípio da autodeterminação, com
todas as suas consequências, inclui a aceitação
da independência dos territórios ultramarinos e a correspondente derrogação
do artigo 1.º da Constituição Política de 1933. (O “bold” é meu)
(Publicada
no Suplemento do Diário do Governo (Português) nº 167 – I Série)
Não
me parece haver qualquer dúvida de que o 25 d’Abril criou uma plêiade de
“corajosos e generosos” nacionalistas. Com a PIDE totalmente desmantelada e a
tropa portuguesa completamente desmobilizada não era difícil ser-se patriota e
na sequência “combatente da liberdade da Pátria”. Mesmo assim não faltaram
manifestações (felizmente poucas) de portuguesismo nem tão pouco vivas ao
General Spínola e à Junta de Salvação Nacional que ele presidia. Neste quadro
era muito mais difícil descobrir quem não era “combatente da liberdade da
Pátria” do que quem o era.
Os
cabo-verdianos do PAIGC, que se supunha estarem nas matas da Guiné-Bissau mas
que se encontravam dispersos (desmobilizados?) pelos Estados Unidos, França,
Bélgica, Holanda, Senegal, Suécia, Côte d’Ivoire entre outros países, foram
chamados a “toque de caixa” a reunir para a definição de uma estratégia para
tomar de assalto o poder em Cabo Verde, mas não sem antes prestar o “juramento”
de um pacto de silêncio – uma espécie do mafioso “omertà”, no dizer de um
consagrado analista político – quanto ao que se passou e se passava entre eles
no âmbito da participação na luta armada na Guiné. Quantos cabo-verdianos
estariam no teatro de guerra em Abril de 1974? E não venham com a treta de
“missão de serviço”!.. Nestes casos as coincidências são, obviamente, muito
suspeitas… Hoje são quase todos “comandantes” sem se saber ao certo o que é que
estariam a comandar ou o que teriam realmente comandado e por quanto tempo.
O
entusiasmo que o 25 d’Abril despertou para uma participação política era global
no “espaço português”. Ninguém, absolutamente ninguém, ficou indiferente. E
criou-se deste modo uma impressionante “fauna” de políticos, daqueles que J.M.
Coetzee, prémio Nobel da Literatura 2003, se refere no seu livro “Verão” quando
diz “que a política faz ressaltar o pior
das pessoas” e acrescenta: “porque a
política é demasiado conveniente e demasiado atraente como teatro no qual
podemos representar as nossas emoções mais básicas. Emoções básicas, quer dizer
ódio, rancor, despeito, inveja,
desejo de sangue, etc.” (Fim de citação, o itálico é meu).
E
foi assim que Cabo Verde foi varrido de lés a lés por uma onda sem precedentes
de indivíduos sequiosos de manifestar as suas emoções básicas. O escassíssimo
número de militantes do PAIGC residentes em Cabo Verde empertigou-se, ávido de
mostrar o serviço que não tinha feito ou não tinha podido fazer. O efeito é o
mesmo. De Portugal veio o reforço e com ele a capacidade mobilizadora dos
jovens estudantes – manipuláveis e facilmente manipulados e muitos, subitamente
transformados em “militantes na clandestinidade” – empolgados pela brilhante
luta armada que o PAIGC tinha conduzido na Guiné e ébrios da propaganda do
prestígio desse Partido do qual também queriam ser parte. A acrescer o
indecoroso e vergonhoso apoio selectivo do MFA (Movimento das Forças Armadas),
o panorama político das Ilhas modificou-se e a balança pendeu fortemente para o
PAIGC que deu um salto quantitativo. O que ganhou particular relevo depois do
MFA ter permitido o vergonhoso assalto à Radio Barlavento.
Face
a lei atrás referida e publicada a menos de dois meses a seguir ao 25 d’Abril,
– nem sequer tinham chegado a Cabo Verde os de Conacri – a luta já não era para
a independência, tanto mais que a lei era apenas uma clarificação de uma outra
(Lei 3/74 de 19 de Maio) – que na verdade nunca foi verdadeiramente
“necessária” em Cabo Verde – mas para saber qual o partido que devia tomar o
poder. Todos lutavam para a independência – o PAIGC, a UPICV e mesmo a UDC que
não a punha de parte mas apenas, prudentemente, solicitava um compasso de
espera. É neste envolvimento, constitucionalmente aberto (Lei 3/74) pelo Governo
Português desde 19 de Maio de 1974 (menos de um mês depois do 25 de Abril) que
se pergunta: Afinal quem não lutou para
a Independência?
Ou
lutar para a independência significa ter estado do lado do “Projecto de
Unidade”, hoje gorado, do PAIGC? É esta a narrativa que se tem tentado passar,
isto é, a legitimação daqueles que estiveram (alguns) no mato e que ao longo de
quinze anos se sentiram os únicos que haviam lutado para a independência de
Cabo Verde. Imagine-se!... Lutado militarmente
nas matas da Guiné para a Independência de Cabo Verde. Não soa a absurdo? Não
parece bizarro? Convenhamos!...
Nos
primeiros quinze anos da independência cantaram loas à Guiné-Bissau e seus
combatentes; condecoraram-se exclusivamente uns aos outros; distribuíram entre eles
patentes militares como se neste País tivesse havido guerra e houvessem lutado;
repartiram benesses entre si; autossatisfizeram-se plenamente numa autêntica
orgia de onanismo político, exaltando as excelências do Partido Único. Era a
consagração dos “melhores filhos desta terra” como ufanamente se vangloriavam.
Primeiro,
o golpe de estado de 1980 na Guiné-Bissau provou que o seu (do PAIGC) Projecto
de independência – adstrito à Unidade Guiné Cabo Verde – era um grande embuste
para os cabo-verdianos, não obstante ter desempenhado o fulcral papel de os
colocar, suster e consolidar no poder.
Depois,
as eleições de 13 de Janeiro de 1991 mostraram à exaustão de que nem eram os
“melhores filhos desta terra” nem era benquisto o seu governo. E com uma boa
ajuda do MpD aprenderam a lição. E agiram em conformidade: Há que alargar o
nosso núcleo com vista a legitimar a nossa narrativa, pensaram eles. E chamaram
para o seu “núcleo de combatentes” todos aqueles que eles haviam desprezado que
se deslumbraram e se sentiram incompreensivelmente “honrados” – são
pouquíssimas as excepções – e se dispuseram vaidosa e oportunisticamente a
subalternizar-se.
Lançando
mão a uma iniciativa que também não lhes pertencera nos seus quinze folgados
anos de Partido Único – distinguir cabo-verdianos fora do seu «núcleo de
combatentes» – proliferaram e vulgarizaram as condecorações e estenderam-nas
até a muitos daqueles a quem tinham chamado traidores, consolidando a
estratégia. Também neste particular foram muito poucos os que não dobraram a
cerviz para a passagem do colar ou para se deixarem encandear com o brilho da
medalha.
Hoje,
aparece por aí gente com arreganhos de combatente a reivindicar não se sabe bem
o quê nem com que autoridade, numa tentativa de se “autenticar” aos olhos da
população e se demarcar dos outros a quem querem expurgar.
Onde
estariam alguns desses “moluscos” há 40, 30 ou mesmo menos anos atrás?
Pouco
ou nada me interessaria se são ou não “combatentes para a independência” ou, como
sói dizer-se: “estaria completamente nas tintas” não fosse o Estado chamado a
contribuir.
Mas
porquê só agora se descobriram ou foram alcandorados a “combatentes da
liberdade da Pátria”? A miragem de arrecadar umas moedas não lhes deixou parar
um segundo, um só sequer, para meditar sobre esta viragem brusca daqueles que
durante tanto tempo – pelo menos 15 anos – os desprezaram, os diminuíram, os
humilharam, os vilipendiaram assumindo-se e agindo como únicos (com poucas e
incontornáveis excepções) combatentes para a independência deste País e agora
os chamam para o seu seio.
Sim,
combatentes para a independência porque a liberdade só veio a 13 de Janeiro de
1991.
Não
tiveram um átimo de reflexão para ajuizar que os militantes da UPICV e da UDC
também lutaram da mesma forma para a independência deste País. Não vêm que isto
é sobretudo uma manobra de legitimação de uma narrativa que procura a
credibilização perdida?
A
ganância, a vaidade e o oportunismo não podem justificar tudo. O Homem tem a
sua dignidade. É suposto ter coluna vertebral.
E...
Meu Deus, alguns vendem-se por tão pouco!...
Toda
esta corrida ao “ouro”, à Associação dos Combatentes que se transformou no “El
Dorado” cabo-verdiano, se deve a mais uma extravagância – usando um eufemismo –
do nosso (des)governo. E configura mais uma manifestação autista do nosso
Primeiro-Ministro. A sua habitual ligeireza com que encara os assuntos de
Estado e a inquestionável estratégia de bajulação aos chamados “históricos” do
seu Partido para lhes ganhar confiança e apoio, vêm custando muito caro ao
erário.
Surpreende
como é que a ministra das Finanças, sempre tão racional, calculista (no sentido
contabilístico) e cuidadosa com o erário, a braços com a enorme dívida pública
e problemas de tesouraria, embarcou numa leviandade destas. E como é que os
grandes “patriotas” ou “nacionalistas” bem conhecedores da fragilidade
económica do País se acomodam e se rejubilam com um estatuto de configuração,
para muitos, parasitária ou mesmo, “mercenária”?
Causa
estranheza conceder vitaliciamente,
aos de Conacri pensões escandalosas e obscenas – ao nível do vencimento do
nosso Presidente da República – e com benesses várias, e a todos os outros
(mais várias centenas) um subsídio de 75 contos mensais, quando o salário
mínimo é de 11 contos mensais e o vencimento de um professor do ensino
secundário (nível 07/A) é de 54 contos, apenas por ter participado no e ao lado
do PAIGC para o assalto ao poder e (já agora!...) esquecendo-se de, pelo menos,
os da UPICV que também lutavam para a independência do País e daqueles que
foram “expatriados” (fortemente lesados pelo processo) impedidos de participar
na independência do seu País apenas porque lhes fazia frente não embarcando no
processo da Unidade, hoje, de tão triste e má-memória.
A
eleição para a Constituinte – o culminar, o verdadeiro desfecho do “processo
oficial da independência” – a 30 de Junho de 1975 foi totalmente dominada de
forma fraudulenta (está no seu ADN)
pelo PAIGC.
Admitamos
que, por hipótese, – bastaria não ter havido batota – tivessem entrado (não
necessariamente mas eventualmente maioritariamente) nessa Assembleia
Constituinte grupos de cidadãos afectos a UPICV ou a UDC. Quem seriam os
combatentes da Liberdade da Pátria?
O
Estado não é, nem pode ser partidário. Não pode premiar – conceder subsídios ou
pensões – os “militantes” de um partido em detrimento de todos os outros
cidadãos nacionais. É o que a actual lei dos subsídios para combatentes sugere.
E esta situação tem de ser corrigida.
A haver subsídios (ou pensões) com o dinheiro
dos contribuintes para os “combatentes”, estes devem ser avaliados e
escrutinados por uma entidade independente do Estado eleita pela Assembleia
Nacional por uma maioria qualificada (mais de dois terços), com critérios
objectivos publicamente conhecidos e não por uma associação privada de génese marcadamente partidária e conduta
manifestamente clientelista, com inscrições obtidas apenas através de uma
simples declaração avalizadora. Isto não invalidaria o registo na Associação
que continuaria a utilizar os seus critérios próprios para aceitação e
inscrição dos seus membros. Numa palavra: a inscrição ou aceitação na
“Associação dos Combatentes” não será motivo suficiente para que o Estado
desembolse subsídios.
E
tendo em conta que a participação numa luta com a natureza da que se vem
tratando ao longo deste texto não é feita com motivações materialmente
compensatórias mas apenas (supostamente) por entrega abnegada, por nobreza de
espírito, por convicções pessoais, a lei
devia visar apenas aqueles que, pela sua participação, tenham sido
“prejudicados” encontrando-se, por este facto, em situação difícil, o que
implica a ponderação de cada caso e nunca a generalização que se configura
abusiva, virtualmente injusta e potencial fonte de oportunismo.
A
generosidade gratuita e leviana do Primeiro-ministro com o dinheiro dos
contribuintes deve ser motivo de profunda análise do próximo Governo,
considerando que somos um país que, também ele, ainda vive de subsídios e de
dádivas. É uma questão moral!
Nada é irreversível!... Mas
para isto é preciso vontade e perspectiva política de boa governance que implica (além de ignorar clientelas partidárias e
familiares) uma gestão séria, rigorosa, adequada, justa e útil do dinheiro dos
contribuintes. Um próximo Governo deve dar sinais inequívocos desta postura.
A.
Ferreira