À mulher de César não basta ser séria, tem de parecer séria

domingo, 6 de outubro de 2019

                  
      Quem proferiu a afirmação grafada em título foi Caio Júlio César por volta de 60 anos a. C., referindo-se precisamente à sua esposa Pompeia Sula. A velha máxima cruzou milénios e permanece inteiramente válida, e não poucas vezes é evocada quando está em causa a transparência cristalina de actos e procedimentos de detentores de cargos públicos.
      Se isto vem a propósito é pela minha estranheza de ver rebentar com pólvora reforçada e renovada, no fervor da campanha eleitoral em curso, o foguetório judiciário relacionado com os processos do “Roubo de Tancos” e das “Golas antifumo”. É que os dois processos, uma vez relançados com veemência mediática nesta altura precisa, só podem visar a imagem do actual governo e a cotação eleitoral do partido que o suporta, independentemente de eventuais culpabilidades que venham a ser apuradas ou de sentenças condenatórias que possam ser decididas em tribunal. 
      Como a política é uma arte pródiga no culto das aparências, embora muitas vezes fruto de manipulação e mistificação, o quadro que se me apresenta é que me permite aquela dedução. A dúvida pode, no entanto, colocar-se, mas só porque o pudor cívico me inibe de cair em julgamentos precipitados sobre as intenções de outrem, mormente de um órgão como o Ministério Público. Porém, não se confunda reserva mental com ingenuidade pacóvia. 
      É certo e sabido que a Justiça tem os seus próprios timings, mas é intrigante ver tão certeira pontaria na escolha do actual momento. Não se pode mobilizar no meio de uma campanha eleitoral mais de 200 agentes de investigação criminal e operadores judiciários em direcção a gabinetes e residências de governantes e titulares de cargos públicos, sem que na opinião pública logo se instale a desconfiança de que os visados são capangas do crime organizado. Tanto mais quando haverá certamente casos bem mais graves a requerer prioridade, celeridade e acutilância na acção da Justiça.
      Com efeito, ligando as pontas −  a exorbitância dos meios, o critério da gestão das prioridades e o timing escolhido – é impossível não admitir que podemos estar perante a interferência indirecta em campanha eleitoral de um órgão do Estado que, não curando da isenção e equidistância no exercício do seu múnus, parece ter mandado às urtigas a prudência e o recato que a circunstância recomendaria. Sim, o bom senso teria recomendado outra calendarização da agenda da Justiça, regulando-a em função do período eleitoral. 
      É cedo para saber se o foguetório vai influenciar ou não as intenções de voto, porque a girândola não ainda parou o seu movimento. Caberá ao eleitorado discernir o que é espectáculo luminoso de pólvora multicolor e o que é acção governativa real e concreta, diferenciando-a mesmo do ocasional desempenho “artístico” dos líderes políticos no proscénio dos debates televisivos ou nas arruadas. 
      Todavia, poderá dizer-se que o principal partido da oposição e os interesses que representa não caberão em si de contentes por tão providencial empurrão recebido. Resta é saber se já contavam com ele ou se tudo lhes foi oferecido de bandeja. Mas isso seria entrar em domínios nebulosos, meandros onde não penetra quem se limita a conjecturar, não abdicando do direito de pensar. E a conjectura tem a amplitude que a nossa memória retrospectiva lhe consentir. Leva, por exemplo, e numa análise comparativa, a interrogar por que casos bem graves que comprometiam as pessoas do anterior primeiro-ministro (o da Tecnoforma) e do seu ministro da defesa (o dos Submarinos) nem sequer afloraram na última campanha eleitoral, quanto mais objecto de procedimento judicial em sede própria. Foram simplesmente arquivados, apesar dos indícios e até de elementos carreados de instituições da União Europeia. Ou há dois pesos e duas medidas diferentes para casos semelhantes ou o objectivo é tentar inviabilizar, a todo o custo, a reedição da solução governativa que resolveu os problemas do país sem se subordinar fielmente à lógica do mercado unificador e tendencialmente totalitário.   
      É evidente que situações desta natureza têm de suscitar especulações sobre a linearidade da conduta de certos poderes ou individualidades do sistema judiciário. Disso, o melhor barómetro são as redes sociais, em cujo espaço as opiniões se esgrimem e diferenciam conforme as preferências partidárias, mas onde sobressai o saldo de um grosso sentimento popular de desconfiança em relação ao sistema judiciário. Aliás, essa percepção é corroborada pela opinião abalizada e sustentada de políticos, juristas, magistrados, sociólogos e cidadãos comuns, que convergem quanto à necessidade de uma inadiável reforma da Justiça. É neste contexto que amiúde se questiona a existência de organizações sindicais de magistrados, principalmente a do Ministério Público, uma vez que o sindicalismo dá azo a que o partidarismo político se instaure no seio da magistratura, comprometendo a autonomia absoluta por que ela se deve reger na sua função soberana. É aqui que muitas dúvidas e interrogações se têm levantado. A título de exemplo, o porquê das sistemáticas e recorrentes violações do segredo de justiça e fugas de informação dentro do aparelho judiciário em proveito de certos órgãos de comunicação afectos a uma determinada ideologia política, sem que até hoje se tenham apurado responsabilidades. O processo Marquês foi paradigma das mais torpes violações e até de comportamentos de operadores judiciários que deixaram muitas dúvidas sobre o que é trâmite processual da justiça e propósito de achincalhamento público de um ex-governante.      
      Em nenhum Estado de direito democrático é desejável a judicialização da política e, inversamente, a politização da justiça. Menos ainda a partidarização política dos actos da justiça. Os políticos são eleitos pela nação para, em sede parlamentar, produzir as leis com que o Ministério Público e os Tribunais têm de lidar na governança da justiça. Além de eleitos pelo povo, os políticos são continuamente escrutinados em todo o seu mandato, sujeitando-se a devassas constantes da sua vida pessoal e familiar e a julgamentos na praça pública, antes de o serem em tribunal quando é caso disso. Os magistrados estão imunes a qualquer espécie de escrutínio externo, vivendo numa autêntica redoma, mas em troca a nação exige-lhes requisitos cívicos, morais e psicológicos a toda a prova e uma consciência livre, impoluta e inviolável no exercício da sua função soberana. 
     Com a revolução de Abril de 1974, todas as estruturas do Estado e da administração pública foram viradas do avesso, passadas a pente fino. Excepto a Justiça, como é sabido. Até os juízes servis e que abdicaram da sua honra pessoal e princípios deontológicos nos célebres tribunais plenários, passaram misteriosamente por entre os pingos da chuva ácida que encharcou então a cena pública nacional. Não há memória de algum ter sido julgado ou sequer saneado por conduta indevida, tendo todos prosseguido as suas carreiras normais. É como se algum atavismo intergeracional não tivesse sido estancado em tempo devido.
      Ora, o líder do PSD tem toda a razão em inscrever na sua agenda política uma reforma da Justiça, e não é minimamente compreensível que o do PS tenha uma opinião diferente. É bom que ele abra os olhos porque poderá ser tarde se tiver de concluir que afinal a mulher de César não só não “parece” como pode não “ser” tão séria quanto devia por causa de algumas más companhias na sua corte.

Adriano Miranda Lima


quarta-feira, 2 de outubro de 2019

A (ir)responsabilidade da Gestão de Topo da nossa Administração

O Serviço Público é uma responsabilidade do Estado. Visa servir os cidadãos em toda a sua extensão. A natureza da ideologia reinante num determinado momento poderá determinar os caminhos, o trajecto, as vias, mas nunca poderá pôr em causa a sua efectiva realização. Poderá o Estado realizá-lo directamente ou concessioná-lo a privados mediante contratos que assegurem o seu pleno cumprimento. Em qualquer dos casos é ele, o Estado, através das suas estruturas permanentes, dos seus órgãos eleitos ou nomeados quem responde perante os cidadãos porque lhe compete a satisfação de todas as suas necessidades. Para o efeito é indispensável uma Administração Pública, latu sensu, capaz e eficiente. É ela sem dúvida o espelho da governação e o reflexo da imagem interna do País.
Hoje, salvo raras e bem conhecidas excepções, prepondera uma certa liberalização económica, uma economia de mercado e como bem afirma o seu teorizador/precursor, Adam Smith (1723- 1790) em “A riqueza das Nações” – Quando pessoas do mesmo ramo de negócios se encontram, mesmo que para se divertirem, a conversa quase sempre termina numa conspiração contra o público ou em algum artifício para elevar os preços”  – isto, traduzido na prática, significa que a busca para a cartelização é uma obsessão do capitalismo.
A cartelização, o conluio, movidos normalmente para o controlo do mercado pervertendo a concorrência e a competitividade podem ser gerados em qualquer actividade mercantil. Consistem na combinação de preços, limites de produção, uniformização de parâmetros concorrenciais, combinação de regras procedimentais, designadamente nos serviços, etc. etc..
Esta apetência conspirativa do empresariado urdida nos bastidores do negócio chamou Adam Smith a ”mão invisível do mercado”. É intuitivo que quanto mais reduzido for o mercado mais se acentua essa tendência e mais se faz sentir a necessidade de uma “mão visível do Estado”. Daí que qualquer que seja a natureza do regime impõe-se a criação de entidades de supervisão e regulação com meios e poderes suficientes para cumprir cabalmente as suas funções com vista a complementar e completar o Estado na defesa do cliente, do consumidor.
Infelizmente, e isto acontece em muitos países, essas entidades reguladoras e de supervisão não passam – é obvio que há excepções – de uma maneira geral, por um lado, de fachadas porque são tão-somente prateleiras para a alocação das clientelas políticas, isto é, de protegidas figuras politico-partidárias; e por outro, de pura formalidade, como apenas resposta às exigências das entidades, financeiras e outras, internacionais. Ademais, muitas vezes manietadas por um estatuto de competências limitativo, redutor.
Daí a inépcia e a inoperância com que nesses países e nessas situações actuam, – essas entidades de regulação e supervisão – negligenciando em absoluto a sua independência face aos Governos que as nomeiam ou as poderão destituir, sacrificando ou mesmo ignorando a defesa dos interesses da população e do Estado para a qual foram criadas, alinhando com algum servilismo no exercício de determinadas praticas governamentais condenáveis ou corrompendo-se, fazendo «vista grossa» das irregularidades perante as entidades reguladas.
É certo que para que tudo funcione com absoluta normalidade e para que o Estado desempenhe cabalmente o seu papel não basta apenas que a administração pública seja eficiente, nem que as instituições reguladoras sejam portadoras efectivas de autoridade na área da sua intervenção e a exerçam em conformidade.
Não, o que sobretudo é importante e prioritário é que a Justiça, o garante do Estado de direito democrático, opere de forma efectiva e discreta, pronta, célere, sem qualquer agenda política, isenta, destemida e firme perante os interesses instalados, eficaz e útil.
Voltemos à Administração Pública: Alguns esforços, de louvar, foram feitos, sobretudo na área da informatização e do tratamento de dados, mas praticamente sem qualquer reflexo na melhoria do efectivo atendimento, da satisfação do utente. Continuamos ainda a ter falhas básicas como chegar a uma repartição da função pública ou de entidades estatais independentes, de horário contínuo, p.e. às 13 horas, querer tratar de um assunto e receber como resposta: venha às 14 e 30 porque o funcionário que trata do assunto foi almoçar, ou volte amanhã porque o funcionário já não volta. Não, não é um caso isolado. É uma prática. A par desta existem outras despropositadas e inexplicáveis burocracias como uma Repartição exigir, para completar um processo, que lhe seja entregue um documento em que é ela própria a emiti-lo; e até mesmo em algumas diligências não é infrequente a resposta: “não temos rede! Venha depois!” mesmo antes que a pessoa diga ao que vai. E deste modo, sem a procura de alternativas por vezes fáceis (já não há livros, já não há canetas?), a informatização torna-se um empecilho e não uma vantagem para situações bem simples como o pagamento de uma factura, o registo de um assunto, o pedido de um documento ou mesmo, de uma informação…
Mas o mais grave é a gestão de topo. Não decide! Grassa a irresponsabilidade na maior parte da nossa chefia – intermédia e alta. A baixa, até se compreende. Muito poucos respondem pelas funções que exercem. É uma prática corrente. Não é invulgar… aliás, é muito frequente que perante uma exposição, um requerimento ou outra solicitação se tenha como resposta um parecer técnico. Isto é, é enviado ao exponente/requerente um parecer técnico endossando a responsabilidade da decisão não ao chefe, nem à instituição, mas ao técnico (ou técnicos) que elaborou a informação/parecer transmitindo a sua opinião “pessoal” – embora baseada normalmente em pressupostos técnicos – sobre o assunto. E se forem questões melindrosas de respostas antipáticas, o gestor de topo ou chefe, imediatamente sacode, como sói dizer-se, “a água do capote” escondendo-se atrás do técnico a quem covardemente atribui toda a responsabilidade da decisão que devia ser sua. E ninguém diz a esses chefes, à essa gestão de topo, de que uma informação/parecer só é um documento final para aquele, e só aquele, que a tiver directa e explicitamente solicitado.
Outrossim, o parecer técnico, ou a informação, não passa de um documento de circulação interna que poderá, ou não, sustentar uma decisão. Não vincula a instituição se um despacho de assumpção, não for sobre ele exarado. Apenas os seus autores. E não é por acaso que normalmente estes se defendem com: “salvo melhor opinião”, “salvo opinião expressa em contrário”, “melhormente decidirá” entre outras expressões que identificam a natureza não vinculativa e, acima de tudo, não decisória do documento.
Também não é invulgar que uma exposição/requerimento permaneça ad eternum sem um despacho, por vezes, por pura negligência. Para pôr termo a este procedimento bastaria estender o deferimento tácito passados, p. e., 30 dias a todas as situações. As chefias seriam obrigadas a produzir um despacho para deferir sob condições (se for o caso) ou indeferir e permitir ao exponente/requerente o recurso fundamentado a instâncias superiores.
Não resisto a contar um episódio paradigmático, primeiro, do desprezo e desconsideração que certos bancos de capital maioritariamente estrangeiro e de executivos também eles estrangeiros têm pelo cliente cabo-verdiano[1]; segundo, pela ineficácia e incompetência do regulador financeiro. Ei-lo, de forma muito abreviada: Entre 2017 e 2018, o Banco Interatlântico resolveu unilateralmente reduzir a taxa de juro de um depósito a prazo de 3,5% ao ano para 1,55% sem absolutamente nada comunicar ao cliente. Este depara-se com um “facto consumado” e reclama exigindo a compensação pela diferença. O Banco Interatlântico não colhe a reclamação porque, obviamente acha – seu manual de procedimentos para Cabo Verde – que não tem essa obrigação de comunicar ao cliente a alteração da taxa de juro; e, nos termos de uma norma que cita, reencaminha o cliente para eventual recurso ao BCV, obviamente como “árbitro”. E o resultado da “arbitragem” vem de um Departamento do BCV como “decisão”, através de uma informação/parecer favorável ao cliente contendo a sacrossanta expressão: “salvo melhor opinião”. O Banco Interatlântico numa conversa com o cliente, aludindo ao parecer, diz-lhe que não dialoga com departamentos do BCV… E, perante o impasse, em vez de “quem não concordar com a arbitragem se dirigir aos tribunais” é o cliente que terá que se dirigir à Justiça uma vez que o Banco Interatlântico mantém-se teimosa e impunemente na sua posição de confrontação com a do BCV.
É apenas um exemplo que mostra a ineficácia e a incompetência dos nossos reguladores, a prepotência e os abusos das instituições bancárias que parece operarem em absoluta roda-livre, só acolhendo as recomendações ou deliberações que os beneficiam fazendo tábua rasa às outras.
Não há dúvida que estamos mesmo entregues à bicharada!!! Quem nos acudirá?!
A.   Ferreira


[1] Não, não é xenofobia nem estar contra o investimento estrangeiro no País! Os investidores e os gestores estrangeiros de qualidade, são muito bem-vindos, mas é um facto, a dualidade de critérios e de comportamento face ao cliente e ao regulador para as mesmas situações: um, no país de origem e outro, em Cabo Verde.