Quem proferiu a
afirmação grafada em título foi Caio Júlio César por volta de 60 anos a. C.,
referindo-se precisamente à sua esposa Pompeia Sula. A velha máxima cruzou
milénios e permanece inteiramente válida, e não poucas vezes é evocada quando
está em causa a transparência cristalina de actos e procedimentos de detentores
de cargos públicos.
Se isto vem a
propósito é pela minha estranheza de ver rebentar com pólvora reforçada e
renovada, no fervor da campanha eleitoral em curso, o foguetório judiciário
relacionado com os processos do “Roubo de Tancos” e das “Golas antifumo”. É que
os dois processos, uma vez relançados com veemência mediática nesta altura
precisa, só podem visar a imagem do actual governo e a cotação eleitoral do
partido que o suporta, independentemente de eventuais culpabilidades que venham
a ser apuradas ou de sentenças condenatórias que possam ser decididas em
tribunal.
Como a política
é uma arte pródiga no culto das aparências, embora muitas vezes fruto de
manipulação e mistificação, o quadro que se me apresenta é que me permite
aquela dedução. A dúvida pode, no entanto, colocar-se, mas só porque o pudor
cívico me inibe de cair em julgamentos precipitados sobre as intenções de
outrem, mormente de um órgão como o Ministério Público. Porém, não se confunda
reserva mental com ingenuidade pacóvia.
É certo e sabido
que a Justiça tem os seus próprios timings, mas é intrigante ver tão certeira
pontaria na escolha do actual momento. Não se pode mobilizar no meio de uma
campanha eleitoral mais de 200 agentes de investigação criminal e operadores
judiciários em direcção a gabinetes e residências de governantes e titulares de
cargos públicos, sem que na opinião pública logo se instale a desconfiança de
que os visados são capangas do crime organizado. Tanto mais quando haverá
certamente casos bem mais graves a requerer prioridade, celeridade e
acutilância na acção da Justiça.
Com efeito,
ligando as pontas − a exorbitância dos
meios, o critério da gestão das prioridades e o timing escolhido – é impossível
não admitir que podemos estar perante a interferência indirecta em campanha
eleitoral de um órgão do Estado que, não curando da isenção e equidistância no
exercício do seu múnus, parece ter mandado às urtigas a prudência e o recato
que a circunstância recomendaria. Sim, o bom senso teria recomendado outra
calendarização da agenda da Justiça, regulando-a em função do período
eleitoral.
É cedo para
saber se o foguetório vai influenciar ou não as intenções de voto, porque a
girândola não ainda parou o seu movimento. Caberá ao eleitorado discernir o que
é espectáculo luminoso de pólvora multicolor e o que é acção governativa real e
concreta, diferenciando-a mesmo do ocasional desempenho “artístico” dos líderes
políticos no proscénio dos debates televisivos ou nas arruadas.
Todavia, poderá
dizer-se que o principal partido da oposição e os interesses que representa não
caberão em si de contentes por tão providencial empurrão recebido. Resta é
saber se já contavam com ele ou se tudo lhes foi oferecido de bandeja. Mas isso
seria entrar em domínios nebulosos, meandros onde não penetra quem se limita a
conjecturar, não abdicando do direito de pensar. E a conjectura tem a amplitude
que a nossa memória retrospectiva lhe consentir. Leva, por exemplo, e numa
análise comparativa, a interrogar por que casos bem graves que comprometiam as
pessoas do anterior primeiro-ministro (o da Tecnoforma) e do seu ministro da
defesa (o dos Submarinos) nem sequer afloraram na última campanha eleitoral,
quanto mais objecto de procedimento judicial em sede própria. Foram
simplesmente arquivados, apesar dos indícios e até de elementos carreados de
instituições da União Europeia. Ou há dois pesos e duas medidas diferentes para
casos semelhantes ou o objectivo é tentar inviabilizar, a todo o custo, a
reedição da solução governativa que resolveu os problemas do país sem se
subordinar fielmente à lógica do mercado unificador e tendencialmente
totalitário.
É evidente que
situações desta natureza têm de suscitar especulações sobre a linearidade da
conduta de certos poderes ou individualidades do sistema judiciário. Disso, o
melhor barómetro são as redes sociais, em cujo espaço as opiniões se esgrimem e
diferenciam conforme as preferências partidárias, mas onde sobressai o saldo de
um grosso sentimento popular de desconfiança em relação ao sistema judiciário.
Aliás, essa percepção é corroborada pela opinião abalizada e sustentada de
políticos, juristas, magistrados, sociólogos e cidadãos comuns, que convergem
quanto à necessidade de uma inadiável reforma da Justiça. É neste contexto que
amiúde se questiona a existência de organizações sindicais de magistrados,
principalmente a do Ministério Público, uma vez que o sindicalismo dá azo a que
o partidarismo político se instaure no seio da magistratura, comprometendo a
autonomia absoluta por que ela se deve reger na sua função soberana. É aqui que
muitas dúvidas e interrogações se têm levantado. A título de exemplo, o porquê
das sistemáticas e recorrentes violações do segredo de justiça e fugas de
informação dentro do aparelho judiciário em proveito de certos órgãos de
comunicação afectos a uma determinada ideologia política, sem que até hoje se
tenham apurado responsabilidades. O processo Marquês foi paradigma das mais
torpes violações e até de comportamentos de operadores judiciários que deixaram
muitas dúvidas sobre o que é trâmite processual da justiça e propósito de
achincalhamento público de um ex-governante.
Em nenhum Estado
de direito democrático é desejável a judicialização da política e,
inversamente, a politização da justiça. Menos ainda a partidarização política
dos actos da justiça. Os políticos são eleitos pela nação para, em sede
parlamentar, produzir as leis com que o Ministério Público e os Tribunais têm
de lidar na governança da justiça. Além de eleitos pelo povo, os políticos são
continuamente escrutinados em todo o seu mandato, sujeitando-se a devassas
constantes da sua vida pessoal e familiar e a julgamentos na praça pública,
antes de o serem em tribunal quando é caso disso. Os magistrados estão imunes a
qualquer espécie de escrutínio externo, vivendo numa autêntica redoma, mas em
troca a nação exige-lhes requisitos cívicos, morais e psicológicos a toda a
prova e uma consciência livre, impoluta e inviolável no exercício da sua função
soberana.
Com a revolução
de Abril de 1974, todas as estruturas do Estado e da administração pública
foram viradas do avesso, passadas a pente fino. Excepto a Justiça, como é
sabido. Até os juízes servis e que abdicaram da sua honra pessoal e princípios
deontológicos nos célebres tribunais plenários, passaram misteriosamente por
entre os pingos da chuva ácida que encharcou então a cena pública nacional. Não
há memória de algum ter sido julgado ou sequer saneado por conduta indevida,
tendo todos prosseguido as suas carreiras normais. É como se algum atavismo
intergeracional não tivesse sido estancado em tempo devido.
Ora, o líder do
PSD tem toda a razão em inscrever na sua agenda política uma reforma da
Justiça, e não é minimamente compreensível que o do PS tenha uma opinião
diferente. É bom que ele abra os olhos porque poderá ser tarde se tiver de
concluir que afinal a mulher de César não só não “parece” como pode não “ser”
tão séria quanto devia por causa de algumas más companhias na sua corte.
Adriano Miranda Lima