Crioulo versus Português?

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010
Lá volto eu com a questão que levanta sempre celeumas, provoca problemas, revolve malquerenças e mal-entendidos e deixa muito por entender, quando não desata zangas complexas, eu sei lá! Resultado final: Um oceano de equívocos!
Ora bem, apesar de tudo isto, acho preferível – no firme pressuposto e no fundamento cognitivo de que nada é dogmático; de que não existe coisa alguma que conflitua o homem que não seja discutível, analisável, e finalmente negociável e solucionado – mais uma vez, voltar à questão linguística nacional que tanta tinta tem feito correr.
Estamos bem conscientes que quando se toca na questão linguística cabo-verdiana e em Cabo Verde, as sensibilidades se hiperbolizam numa adrenalina que por vezes é de se lhe fugir!
Mas o assunto que iremos aqui esboçar: Crioulo versus português deverá ser pousado na rota do desenvolvimento de Cabo Verde? Sim ou não? É minha opinião de que seria melhor tratada a questão linguística nacional, se cada exercício sobre isso, formulasse hipóteses, as interrogasse e as discutisse, com alguma ilustração e alguns exemplos, Assim procedendo, talvez chegássemos a alguma pista mais fundamentada, ao invés de fazer disto um caso dogmático, indiscutível e de exacerbada afeição, para não dizer, paixão.
A relação que temos hoje, crioulo-portugês tem conduzido à melhoria de qualidade dos nossos recursos humanos? É um factor de união no País? Poderá potenciar o desenvolvimento tecnológico do País? Melhorará o nosso relacionamento com os países amigos no contexto internacional? Note-se que falo em melhor, não disse: mais (recursos humanos). Para muitos diria que ocorre um não! honesto e pronto como resposta. Quando muito, após meditação dirão: Duvido que haja!
Vou referir-me mais concretamente à classe profissional de que sou oriunda, a dos professores. Nos dias que correm, encontrar um professor que preencha os requisitos no expressar-se com correcção e sabedoria, na língua veicular, o seu saber específico já se vai tornado coisa raríssima nestas ilhas. É ou não é verdade? Porque será? Talvez porque trazem na sua formação e ao longo do seu percurso académico “etapas queimadas” de muita falta de conhecimentos, do saber estar e do saber ensinar. Lacunas gritantes que se vão reflectir no exercício da vida profissional, em parte causadas, no meu entender, pela ausência de muita leitura e do exercitar a aprendizagem em língua portuguesa.
Agora digam-me da vossa justiça, se não haverá em tudo isso alguma relação causa/efeito, pelo menos parcialmente, pelo mau serviço que estamos a prestar às nossas duas línguas: o crioulo e o português? Eu creio que sim. Esta “mistura” de papéis dos dois veículos linguísticos poderá ser altamente “perturbadora” no ensino, na escrita, na oralidade e na nossa produção literária e tecnológica. Faço-me entender: há séculos que a arrumação linguística cabo-verdiana se estruturou e, nós os falantes sempre soubemos atribuir – com conflitos ou sem eles – a cada uma das línguas o seu papel no nosso quotidiano, na nossa vida, na nossa cultura.
É a língua portuguesa, que nos permite desenvolver e elevar os conhecimentos científicos e tecnológicos, estudando, lendo e interpretando os manuais, ligando-nos ao exterior, é ela que nos faculta um diálogo substancialmente mais enriquecido entre nós e com os outros falantes da mesma língua, a tal ponto é assim que questionamos: para onde caminharemos, sem este valioso instrumento, no nosso desenvolvimento?
Creio que nenhum governante, alto responsável, ou legislador nacional de bom senso aprovaria tal derrocada e retrocesso.
Os países e as nações que fizeram o contrário, ficando apenas com a língua local, a substituir a língua oficial e veicular do ensino, deram-se muito mal com isso e retrocederam. Estão hoje na cauda dos mais subdesenvolvidos. Maus exemplos desse tipo de conduta são conhecidos, como também são infelizmente conhecidos, os maus resultados daqueles que assim procederam.
Voltando ao tema, o que aqui foi dito é apenas para alertar para o perigo de uma derrapagem aqui dentro, no país, que é muito frágil com muito pouco ou quase nada em termos de auto-sustentabilidade, de se tentar usurpar o papel que a língua portuguesa tem tido até agora.
Defendo que para o nosso caso, até deveríamos tornar o português, língua nacional e assim proporcionar a todo o falante cabo-verdiano maior competência linguística que o ajudará a libertar-se do ciclo de pobreza, do analfabetismo e de subdesenvolvimento.

Séculos de Documentação, de Literatura produzida em prosa e verso mostrou à saciedade que foi versada maioritariamente, em português, por gente que sempre amou e falou o crioulo, com os seus mais chegados, sem qualquer reserva. Agora, era também gente que sabia que o nosso querido crioulo não substituía nem de perto, nem de longe, a nossa também querida língua portuguesa quando se tratam assuntos que entram no âmbito da cogitação filosófica, da análise literária, ou de procedimentos tecnológicos.
Logo, com este caudal de rica experiência, Cabo Verde só tem a ganhar se deixar ao crioulo o papel que tem tido na especificidade cultural do Arquipélago cabo-verdiano De uso doméstico, da socialização afectiva, da lavoura, de cantigas, de quadras, do folclore nacional, das cantigas crioulas, de alguma prosa e poesia entre outras funções de comunicação e expressão; e à língua portuguesa, o seu lugar no ensino, na leitura, na alfabetização, no ensino, na formação de quadros, entre outras funções, até aqui tidas e realizadas, para o desenvolvimento do país. E isto deve ser encarado com todo o pragmatismo, sem qualquer reserva, pois, as duas línguas são ambas nossas, ambas expressam a cultura mestiça que nos caracteriza e ambas concorrem para a edificação da nossa identidade.

4 comentários:

Unknown disse...

Só agora "tomei fé" deste seu blogue, que me deixou muito satisfeito. Mais uma voz, e que voz, para a blogosfera cabo-verdiana. Serei visita assídua, certamente.

Abraço

João Branco

Anónimo disse...

Felicito-a por este espaço.
Começo por discordar do papel que sugere para o Crioulo/Lingua Caboverdiana, mesmo se entendo os receios que estão na base dos argumentos. Não devemos temer a paridade entre as duas línguas (nem que seja para satisfazer os mais ortodoxos, que pretendem fazer desta questão uma espécie de hooliganismo linguístico, transformados em talibans do crioulo), desde que feita no tempo certo, da forma correcta, com a tranquilidade necessária, mas sobretudo com base em experiencias no terreno (e não apenas por smell teórico), estudos mais aprofundados, e instrumentos técnicos e teóricos absolutamente necessários e indispensáveis. Precipitar esta matéria da forma como se pretende, é um erro que só gerações futuras pagarão a factura, mesmo que sinais de emergência apontem para a catástrofe linguística que se perfila já no horizonte. O seu post aponta nesse sentido, com a delicadeza e a elegância que lhe são peculiares, por isso que trago aqui este modestíssimo contributo. Há alguns meses realizou-se na Associação Caboverdeana de Lisboa (ACV) um debate sobre a questão da oficialização da Língua Caboverdiana, e aí foram ditas algumas coisas importantes para este debate, algumas delas já repetidas em outros fóruns, mas que não vejo refutadas, nem analisadas com a profundidade que se impõe, tendo em conta a pertinência do assunto em causa. Para algumas coisas mais incómodas parece que Lisboa ainda fica longe demais. O que significa também, que apesar de tanta conversa, discussão, debates (uns mais democráticos e abertos do que outros) não estamos a aprender nada, como se cada fórum não passasse de uma espécie de válvula de escape das emoções em presença, como se as posições estivessem tão extremadas que nenhuma aprendizagem seja já possível, como se ninguém tivesse nada a prender com ninguém, numa total falta de generosidade, numa irredutibilidade irracional de ‘tudo ou nada’, de ‘ou vai ou racha’, de ‘é assim ou não é nada’, como se os caboverdianos tivessem finalmente descoberto, e aberto, a sua Caixa de Pandorra. Eis em 3 pontos do que então se disse na ACV:
1- O reconhecimento unânime de que o Estado de Cabo Verde, ao contrário do que está plasmado na Constituição sobre a questão da língua, nada fez até agora do que a si próprio impôs como passos necessários para a oficialização. Atentemos: não temos um Dicionário Geral da Língua Caboverdiana; não temos um Dicionário Etimológico da Língua Caboverdiana; não temos um Dicionário de Sinónimos da Língua Caboverdiana; não temos uma Enciclopédia (de natureza Etno-Antropológica) da Cultura Caboverdiana; não temos um Instituto da Língua Caboverdiana; não temos técnicos, linguistas, sociolinguistas, historiadores da língua (nacionais e/ou estrangeiros, talvez porque não interessa), a produzirem trabalhos científicos e técnicos, de carácter prático e pedagógico, sobre os diferentes instrumentos possíveis ao nosso alcance, suas vantagens e desvantagens, que não se resumam ao ALUPEC, para que possa haver uma VERDADEIRA ESCOLHA, e não ficarmos por esta envergonhada imposição de um único modelo. Esta omissão do Estado Caboverdiano, para além de grave, criou uma falsa ideia de consentimento tácito, por alguns entendida por explícita, numa determinada direcção, com os equívocos que se conhecem, e com os resultados que saltam à vista.
Cont...

Anónimo disse...

2- Nesse encontro foi afirmado por duas professoras universitárias presentes, o seguinte: uma jovem caboverdiana que esteve em Cabo Verde a leccionar Sociologia até 2009 numa das nossas universidades, afirmou que a principal dificuldade que sentiu junto dos alunos (a grande maioria) foi ao nível da expressão escrita. Não entendia o que lia nos trabalhos e nos testes, tantos eram os erros, de vocabulário, de expressão escrita, e de argumentação; no mesmo sentido argumentou a académica portuguesa, creio que da Universidade Clássica de Lisboa, que afirmou nunca ter encontrado alunos tão mal preparados em Português como ultimamente, a ponto de, pela primeira vez, ter chumbado alunos pelas mesmas razões apresentadas pela colega caboverdiana. Fiquei envergonhado? Não! Nem surpreendido. Ouvira já a amigos, um deles um conhecido intelectual caboverdiano, que assegurava, sem assombro, que ajudava regularmente a corrigir teses, monografias, e trabalhos de fim de curso a alunos universitários. Este estado de coisas não seria preocupante se não estivéssemos a falar de alunos de “nível” académico superior. Se estes não são sinais de alarme, o que é que são? Ou seja, a análise à qualidade do nosso ensino, em particular ao ensino da Língua Portuguesa, como diz e bem V. Exa. também é a nossa língua, é uma tarefa urgente. Se alguém pensar que este tema é lateral à questão da oficialização da Língua Caboverdiana, não é. A não ser que queiramos uma oficialização a brincar, sem tirar daí todas as consequências práticas, ou seja, avançamos para a oficialização e depois logo se verá o que acontece, logo se verá o que fazer com ela. Desenganem-se aqueles que pensam que sou contra a oficialização do caboverdiano (tema risível, já que não conheço nada mais democrático, generalizado, e ‘oficializado’ que a língua caboverdiana a todos os níveis da nossa sociedade), nem contra o ALUPEC, de que sou utilizador crítico. Sou sim contra todas as formas de dogmatismo, contra atitudes precipitadas, contra medidas mal estudadas e mal analisadas, contra o aventureirismo em matéria tão fundamental, contra o deficit de informação sobre alternativas credíveis, e contra a irresponsabilidade de gente que não estará cá no futuro para assumir as responsabilidades dos seus actos presentes.
3- O que então afirmei nesse dia na ACV em tom de síntese, e aqui reafirmo, é que há sinais preocupantes de que JÁ ESTAMOS A PERDER O PORTUGUÊS, ANTES MESMO DE GANHARMOS A LÍNGUA CABOVERDIANA. Os argumentos apresentados naquela reunião, outros aqui por si, outros ainda de forma avulsa em diversos jornais, são por demais evidentes, e concorrem para o que chamei, e chamo, de catástrofe linguística em curso, a curto prazo. A matéria desta discussão está ainda por fazer, e este é um assunto que exige, com urgência, estudos concretos no terreno (a análise às competências de alunos e professores, no domínio da Língua Portuguesa ao longo da cadeia escolar), que não fiquem pelas enganosas estatísticas quantitativas que conhecemos. O seu texto-testemunho, como membro da comunidade educativa, tem o fundamento técnico e a autoridade moral de quem sabe, e conhece, do que fala. Esta é uma realidade que a alguns preocupa sobremaneira, e que é perigoso ignorar, pelos efeitos devastadores de longo prazo, e pelo desastre intelectual e educacional que arrasta gerações. Gostaria de estar tranquilo. Mas não estou. Há demasiada cegueira e intolerância intelectual nesta questão da fixação de um alfabeto para a Língua Caboverdiana, transformada por estes dias numa ridícula feira de vaidades. Por isso reclamo que é urgente uma “autoridade” para a questão da Língua Caboverdiana, instituição que nos forneça, com distanciamento e objectividade, os instrumentos que necessitamos para o desejado salto qualitativo, e a aspirada evolução nesta matéria. um alfabeto aberto, que sirva a língua, que sirva os caboverdianos, que sirva Cabo Verde, que traduza com verdade e sirva com eficácia a cultura caboverdiana.
Melhores cumprimentos
José E. Cunha

Anónimo disse...

É muito interessante o titulo do texto "Crioulo versus Português?", quanto mais não seja pela utilização do "versus" para juntar duas línguas intima e familiarmente ligadas. Eu apenas me expresso em português, o que lamento, pois o crioulo para além da sua especial sonoridade, possui uma enorme riqueza em termos de expressões idiomáticas que muito caracterizam o relacionamento dos falantes desta língua.
Mas o objectivo do meu comentário é chamar a atenção dos eventuais interessados para o facto que recentemente foi reportado por muitos dos voluntários que socorreram as populações do Haiti, após o terrivel terramoto que tantas vitimas causou. É que a generalidade dos voluntários, que eram falantes de inglês, francês, português, italiano, espanhol, etc., referiu ter tido muita dificuldade para entender e se fazer entender pela maioria das vitimas, precisamente por estas apenas se expressarem na sua lingua local, o crioulo do Haiti.

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