Com a devida vénia ao autor e ao Jornal «Público» aqui se publica também esta matéria de muito interesse para nós, falantes do português
Nuno Pacheco - Língua portuguesa*
O número de falantes da
língua nos PALOP é bem menor do que apontam os números oficiais. Hoje e amanhã,
no ISCTE, um congresso procura exemplos, dados concretos e soluções.
O título do comunicado parece um alerta vermelho: “O ensino
do português nos PALOP está a falhar e só parte da população o fala.” E os
números avançados não diminuem tal inquietação: em Cabo Verde, só metade da
população falará português fluentemente; em Moçambique, “só 10% assumem o
português como língua materna”; na Guiné-Bissau, só 15% falarão português; em
Timor-Leste “eventualmente 25%”; escapará Angola, onde mais de 70% falam
português porque a guerra os empurrou para as cidades.
Se não fosse tal intróito, talvez poucos reparassem no IV
Congresso de Cooperação e Educação, que se realiza hoje e amanhã no ISCTE, em
Lisboa, com especialistas de vários países. Organizadoras do congresso, as
investigadoras Clara Carvalho e Antónia Barreto, do Centro de Estudos
Internacionais do ISCTE, são mais comedidas do que o comunicado difundido pelo
instituto. Não negam que a situação é grave, mas o que as move é a procura de
soluções. “O português está em crescimento no mundo, mas o que se diz não
corresponde aos números nem nunca correspondeu”, diz ao PÚBLICO Clara Carvalho.
Não serão, pois, os 280 milhões da propaganda oficial, mas é
impossível obter números exactos. “Há estimativas, não há um estudo.” E as mais
actuais são sempre as do The World Factbook, da CIA. “Eles multiplicam,
relativamente ao último censo, pela taxa de crescimento populacional
expectável.” Angola teve um censo em 2014 e Moçambique em 2017, embora os
números deste ainda não estejam disponíveis. As outras estimativas são calculadas
a partir das “taxas de literacia declaradas, baseadas no número de pessoas que
vão à escola”. Pecarão por excesso ou defeito? Não se sabe.
Sabe-se, no entanto, o que dizem a experiência e a história.
“Quando se chegou ao fi m do processo colonial, não havia, à parte algumas
excepções, um sistema de ensino primário estabelecido”, aponta Clara Carvalho.
Num território com taxas de analfabetismo e iliteracia elevadas, Portugal
incluído, a situação não era homogénea.
“Em Angola, com a guerra, e com a grande movimentação de
populações e de soldados, o português foi adoptado como ponto de contacto”,
acrescenta a investigadora. Mas nas cidades apenas, não nas zonas rurais. Em
Moçambique a situação é mais débil, com apenas 10% da população a assumir o português
como língua materna. Já em São Tomé o panorama será melhor: “Os dialectos
locais são também falados, mas o português é a língua franca.”
“Provavelmente o
bilinguismo será solução, porque ele é assumido na prática”, defende a
investigadora Clara Carvalho
Cabo Verde é, dizem as investigadoras, um caso à parte. “Pelo
menos desde o século XIX há um sistema de ensino funcional, embora o crioulo
tenha sido sempre, e continuará a ser, a língua franca.” Ali perto, na
Guiné-Bissau, o caso complica-se: “Sendo uma colónia de ocupação, onde não
havia grande contacto [dos colonos] com a população, o PAIGC instituiu o
crioulo como a língua de contacto nacional, a língua da modernidade.”
A razão para os crioulos não terem sido logo adoptados como
língua oficial após as independências residirá, nota Clara Carvalho, no facto
de os dirigentes dos novos países serem “elites educadas em português”, que o
adoptaram “numa perspectiva geopolítica”. Os crioulos não tinham expressão
escrita oficializada, nem gramática, nem difusão internacional.
Ensinar em que língua?
Neste cenário, o que pode e deve ser feito? O congresso, sob
o lema Cooperação e Educação de Qualidade, procura respostas. Antónia Barreto,
que sublinha a importância do “apoio, grande, do Instituto Camões” para custear
as deslocações de especialistas, diz que estes dias servirão para que fiquemos
a conhecer melhor “os panoramas actuais e os desafios que esperam os sistemas
educativos destes países”.
O bilinguismo será a solução? “Muito provavelmente, porque
ele é assumido na prática”, responde Clara Carvalho. Com ressalvas: “Em sítios
onde existe uma língua franca local, é muito fácil adoptá-la. Quando não há,
promover o ensino das mais impactantes é ajudar a manter essas línguas e,
eventualmente, na identificação dos jovens com o sistema de ensino.” Antónia
Barreto dá, como exemplo da dificuldade de tal opção, a Guiné-Bissau: “Numa
sala com 50 meninos, onde estão juntos manjacos, mandingas, fulas, ensina-se em
que língua?”
“Há várias soluções”, insiste Clara. “Vamos ter cá o padre
Luigi Scantamburlo [pedagogo italiano], que defende há décadas que se devia
ensinar o crioulo como entrada para o português, algo que tem feito,
aparentemente com sucesso.” Mas há outra via, que está a ser promovida pela
UNESCO: “Colocar as crianças mais cedo na escola, para não abandonarem tanto.
Habituá-las desde pequenas. E essa entrada deve ser feita com um misto das
línguas maternas. Na Guiné, uma criança fula entrava na escola e aprendia em
fula. Mas nós vimos uma experiência fantástica, de uma ONG [indiana] que está a
trabalhar em aldeias fula no Sul, com crianças que não falam crioulo. O que
têm? Professores que ganham três vezes mais e dispõem de uma formação à parte,
com reuniões todos os meses e novos métodos pedagógicos. Aí vimos crianças a
falar e a aprender em português.”
Antónia Barreto concorda: “Quando estão reunidas as
condições, a aprendizagem do português faz-se relativamente bem. [Na
Guiné-Bissau] as escolas dependentes de grupos religiosos, católicos ou
protestantes, ou as madrassas, estão a funcionar. Já o sistema público está sem
controlo e fica muito difícil que as pessoas aprendam alguma coisa.” Clara
acrescenta: “Isto é mais caro, é verdade, mas o preço a pagar por aquilo que
não se faz será muitíssimo superior ao que se pagaria se se conseguisse este
nível para todas as escolas. Porque serão sempre crianças com uma escolarização
deficiente, seja em que língua for.” E o empenho dos professores faz a
diferença. “Têm de ver o seu trabalho como algo de gratificante.”
Do congresso, as duas investigadoras esperam algo de útil.
Antónia deseja que estes dias contribuam “para a consciencialização de que os
países têm de ter soluções ajustadas ao seu contexto”: “Tem de haver informação
a nível multinacional, e apoios, mas não se podem impor agendas, soluções,
cópias.” E há outro ponto que Clara quer ressalvar, o ensino de qualidade: “Não
falo do melhor ensino do mundo, mas de qualquer coisa que não seja repetir o
que o professor escreve no quadro (quando tem professor!) e dê competências
para avançar.”
*”Público” de 08.Nov.2018
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