sábado, 29 de fevereiro de 2020

O texto que se segue é o Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 26 de Fevereiro de 2020, de autoria de Humberto Cardoso. Por se tratar de um assunto actual e de grande interesse para o falante nacional aqui se publica também.

  Derivas linguísticas

Por altura da celebração do dia internacional da língua materna que acontece anual­mente a 21 de Fevereiro mais uma vez vozes se fizeram ou­vir a clamar pela “oficializa­ção” do crioulo. De entre es­sas vozes soou mais alto a do Ministro de Cultura que no seu discurso disse que “consa­grar a oficialização da língua cabo-verdiana como língua oficial em paridade com o português é o desígnio máxi­mo do povo cabo-verdiano”. O Presidente da República na sua mensagem instou a que se acelerem os mecanismos e se apurem os instrumentos para se cumprir a Constituição. Todos os anos repetem-se os apelos à oficialização, pede-se revisão constitucional urgen­te e deixa-se entender que há “opositores de oficialização” a enfrentar. Fica-se por saber é por que vias o Estado e o go­verno têm promovido as con­dições para uma oficialização em paridade com o português como comanda a Constitui­ção. Pressionar todos anos para se rever a Constituição não é promover condições. É procurar impor “facto consu­mado” para além de passar a culpa da inacção ou de falta de acção consequente para ou­tros.
A verdade é que a partir da revisão da Constituição em 1999 com a introdução do ar­tigo 9º sob a epígrafe “línguas oficiais” passou-se a referen­ciar o crioulo como tal. Reco­nhecendo existir dificuldades no seu uso na plenitude nas funções do Estado por razões que, entre outras, advêm de não se ter uma forma estan­dardizada de escrita, ficou es­tabelecido no nº2 do mesmo artigo 9º que o Estado deveria tomar medidas para as ultra­passar. Já no nº3 consagrou­-se logo o direito de todos de conhecer e de usar as duas lín­guas. Por isso é que ninguém se sente impedido ou inibido de usar o crioulo no país. O PR faz declarações em criou­lo, debate-se no parlamento em crioulo, pode-se depor nos tribunais em crioulo e a admi­nistração pública não deixa de responder se a solicitação vem em crioulo. Também não se pode falar de estigma so­cial derivado do uso da língua, quando pessoas de todos os extractos sociais e em todas as ilhas falam variantes do criou­lo nas mais variadas circuns­tâncias.
Por tudo isso é evidente que não faz sentido estar a apon­tar pessoas como opositores da oficialização do crioulo. Em relação ao que a Constituição estabelece há consenso geral. O problema surge quando não se cumpre a parte de “promo­ver as condições” e se faz fuga em frente não só com propos­tas de alterações constitucio­nais mas também forçando a sua adopção como língua de ensino. A justificação pela sua introdução urgente nas escolas em nome da quali­dade do ensino, da melhoria do sistema de educação e dos processos de aprendizagem não convence e isso já é no­tório na forte preferência de muitos pais e alunos pela es­cola portuguesa e outras esco­las privadas. Aliás, aconteceu algo similar noutras paragens nomeadamente em Madagás­car, Haiti e Curaçau onde as elites moveram os filhos para escolas francesas e holande­sas logo que se impôs a língua malgaxe o crioulo haitiano e o papiamentu nas escolas pú­blicas. Insistir nessa via natu­ralmente que cria “opositores” em todos aqueles que aflitos e sentindo-se impotentes vêm todos os dias a degradação do ensino e aprendizagem do português e seu impacto na qualidade do ensino ministra­do no país às novas gerações.
Em Cabo Verde o crioulo ainda oficialmente não é lín­gua de ensino, mas na prática o seu uso em todos os níveis de ensino, do básico à universi­dade, à discrição do professor, já afecta negativamente todo o processo de aprendizagem. Contraposto ao português em termos identitários gera resis­tências que impedem que as horas dedicadas ao português nas escolas se traduzam num domínio da língua que seja considerado satisfatório. De alguma forma ter-se-á falhado em passar às novas gerações o papel que as duas línguas tive­ram na sedimentação de uma identidade cabo-verdiana como se pode ver, por exem­plo, no papel do português na criação de uma literatura genuinamente cabo-verdiana e do crioulo na expressão da morna. O uso das duas línguas por todos os extractos sociais também indicia que não há uma relação antagonística, nem há necessidade de exclu­são de uma para afirmação da outra.
De facto não se é mais cabo­-verdiano falando só o criou­lo e hostilizando o português. Para todos devia ser evidente que o português não é amea­ça para o crioulo. Diferente do que se passa no Brasil e cada vez mais em outros países de língua oficial portuguesa, em Cabo Verde o português não é língua materna, possivelmen­te nunca foi e certamente que no futuro não será. Há quem queira ver no crioulo cabo­-verdiano o resultado de algu­ma espécie de resistência cul­tural. O mais provável é que seja um produto peculiar do isolamento e da precariedade destas ilhas. De outra forma não se compreenderia por que em países como o Brasil, os Estados Unidos e outros países os “afrodescendentes” não tenham criado uma qual­quer língua de resistência e pelo contrário acabaram por adoptar a língua do coloniza­dor como língua materna. E o facto não o terem feito não os impede de, por exemplo, fazer do samba um fenómeno cul­tural genuíno e expressão viva de uma cultura brasileira úni­ca também toda ela expressa em português.
Semanas atrás o VPM e Mi­nistro das Finanças no parla­mento constatou que não há competência linguística em francês e inglês que seria ne­cessária para que Cabo Verde pudesse investir numa rela­ção proveitosa com a África. A essas insuficiências acres­centa-se a cada dia que passa a manifesta dificuldade dos cabo-verdianos em fazer uso do português. Tanto no país como no estrangeiro essas di­ficuldades estão a prejudicar em particular os jovens no prosseguimento dos estudos e na procura de emprego. Pe­rante uma situação dessas o país devia já estar num esta­do de alarme e especialmente proactivo e enérgico na iden­tificação da raiz deste pro­blema que ameaça confinar e limitar as suas possibilidades de desenvolvimento. Infeliz­mente o que se vê na utiliza­ção do sistema educativo e da comunicação social pública e nos discursos de políticos é o contrário. Nota-se uma con­vergência em fazer do crioulo uma questão identitária, em procurar engajar os jovens numa luta contra a sua supos­ta desvalorização ao mesmo tempo que se faz um alerta para a existência de oposito­res, nas entrelinhas mentes colonizadas. Enquanto no Ruanda de Kagame se adop­ta o inglês como língua oficial para aumentar as chances de desenvolvimento do país aqui celebra-se a vitória do paro­quialismo mais crasso.
Humberto Cardoso

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