terça-feira, 21 de julho de 2020

O texto que a seguir se publica é de autoria de Raquel Varela, Pesquisadora do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa.
 Trata-se de uma autora projectada em vasta obra sobre História Social, Política e Trabalho.
Porque o assunto abordado é de interesse de todos, implica-nos fortemente e faz-nos reflectir sobre os caminhos da educação e sobre o perfil do professor que os constrói, com a devida vénia à sua autora, aqui se transcreve para o nosso leitor, este excelente texto.

O Professor-robot
Por Raquel Varela
A professora de português que deu a primeira aula da telescola deu uma entrevista ao Expresso este fim de semana onde diz que nunca gostou de ler, cito, e está a fazer um esforço para ler um livro no Verão. Como professora e mãe também senti vergonha alheia. Na realidade há muito que acho que a maioria das crianças quando entra na escola sofre um processo acelerado de perda da curiosidade, vitalidade, interesse e educação que levavam da infância. O burnout docente contagiou as crianças, o desinteresse pega-se, contagia. O mesmo retrocesso se dá com os professores, entram na escola muitos a pensar que vão ser educadores, entram rapidamente em burnout quando percebem que vão ser operadores de uma linha de montagem - crianças - para um mercado de trabalho desqualificado.
É de um colégio privado, esta professora, segundo percebi. Podia ser do público, dificilmente seria de um colégio privado de luxo onde não há telemóveis e os professores são intelectuais, bem pagos, em exclusividade. A professora de português que não gosta de ler não é um caso, mas um problema disseminado na educação - a proletarização dos docentes, transformados em mediadores de entrega de conteúdos pré feitos, desprovidos e expropriados do seu ser-pensar-intelectual. No nosso estudo sobre o trabalho docente era visível a desintelectualização da profissão e a falta de consciência desse processo. Quando nós dissemos aos docentes que eles eram intelectuais expropriados uma larga parte ficava impressionado, "então eu devia ser um intelectual"? pensavam com estranheza. Insistimos que para não haver burnout eles tinham que se assumir como sapateiros e não como vendedores de sapatos. Como produtores de conteúdos e não entregadores de conteúdos. E tinham que lutar por isso, não havia e não há outra forma de driblar a depressão, perda de qualidade e sentido do trabalho que não seja lutar contra estas condições de trabalho, por mais ioga e auto ajuda que façam. Em breve (já aliás em curso em Portugal), se nada fizerem, serão apenas monitores de exames também eles de cruzinhas, que o próprio computador se encarregará de corrigir. No Brasil o dito ensino à distância, e isto também no Universitário, já colocou um docente a corrigir 40 mil provas, leram bem, 40 mil. Nem ele é docente, nem a prova é prova, nem a correcção é correcção - é tudo uma enorme farsa que visa a automação, por um lado, e o défice zero por outro, ou seja o pagamento de dívidas privadas transformadas em públicas.
A questão permanece e convoca-nos a todos, o que nós professores, pais, contribuintes, estamos dispostos a fazer para inverter este declínio sistémico, quando cada vez pagamos mais e temos menos. Podemos sempre pensar, como vítimas, queixando-nos do estado das coisas, e salientando que é um caso isolado, daquela professora naquele colégio. Ou podemos agir como questão pública, que o é, com verdade - é um problema geral, é cada vez mais comum, se não mesmo maioritário, e que põe em causa todo o futuro do país, do mundo, da humanidade humanizada.

1 comentários:

Adriano Miranda Lima disse...

A expressão é forte mas, infelizmente, verdadeira: proletarização dos docentes". Mas o mais grave é verificar que muitos desses "proletários" do ensino não são de boa cepa. Como proletários que são, não passam, de facto, de peças de engrenagens cada vez mais automatizadas, o que é ainda mais pernicioso se a automação não for a melhor intérprete das aspirações e anseios humanos.
A questão é que provavelmente estamos num caminho que não tem retorno. Quem lê a obra "Homo Deus", da série Sapiens, de Yuval Noah Harari, fica alarmado com as previsões que ele faz sobre o nosso futuro, ou seja, o do Homo sapiens. Para Harari, os processos mentais não passam de simples algoritmos, pelo que no futuro todas as decisões sobre as nossas vidas serão tomadas por máquinas ou através de interfaces cérebro-computador.

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