O mundo está estranhamente convulso e perigoso e o país parece confuso

sexta-feira, 1 de março de 2024

 Por Adriano Miranda Lima

O ambiente social de instabilidade e conflitualidade que vem caracterizando o país desde o último governo de maioria absoluta só é equiparável aos tempos do PREC. Nesse já longínquo ano de 1975, uma alterosa onda reivindicativa envolveu o sector público e o privado, e, em meio ao desconchavo revolucionário espoletado por facções extremistas, destruiu o aparelho produtivo. Hoje, há quem pense que uma atitude mais ponderada e de teor reformista, ao invés da convulsão social, teria evitado dois anos mais tarde o recurso ao FMI, além de muitos amargos de boca.

Regressando à premissa inicial, houve duas circunstâncias fundamentais que ora concorreram para a instabilidade social que não seria previsível e menos ainda consentânea com a estabilidade política que o governo de maioria absoluta só por si devia garantir. Primeira circunstância: a ideia, partilhada pelos sindicatos em geral, de que os governos do Partido Socialista proporcionam a ocasião mais favorável para toda a sorte de reivindicações, por tratar-se de partido tolerante e programaticamente virado para a distribuição de rendimentos, fiel à sua política de justiça social e de promoção da igualdade de direitos. Segunda circunstância: a ilusão pacóvia, ou então insidiosa, de que o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) seria gerador de recursos para toda a reivindicação, desde que esta orquestrada com clamor público e instrumentalizada com greves constantes e convenientemente mediatizadas pelos canais televisivos. Pouco importa se o PRR é um instrumento estratégico comunitário destinado exclusivamente a implementar um conjunto de reformas e de investimentos visando a competitividade da economia e a sua resistência a vicissitudes futuras, como foi a última pandemia e os efeitos das guerras em curso.

Nesta transição para o próximo pleito eleitoral, perduram ainda os ecos do alvoroçado rodopio reivindicativo e grevista do sector público. Uns, com alguma razão, se comparada a degradação do seu nível remuneratório com a de outras classes profissionais equivalentes em grau de formação académica e em importância institucional e social. É o caso da classe docente.

Outros sectores, como o dos servidores do Serviço Nacional de Saúde (SNS), sob a égide dos respectivos sindicatos e ordens profissionais, foram como o gato escondido com o rabo de fora, ao alardearem defender aquele serviço público quando a motivação era claramente o seu estatuto remuneratório e outras regalias. Algumas máscaras que caíram do rosto de ex-bastonários e sindicalistas mostraram que afinal há “portas giratórias” entre a oposição política e certos interesses corporativos. Excedeu a mais pura hipocrisia querer convencer a nação de que a reabilitação do SNS era o seu único móbil e não a defesa do sector privado da saúde.

Os magistrados, esses, não terão qualquer razão para reivindicar outra coisa senão a reforma da Justiça, porque são a classe a anos-luz distanciada em matéria remuneratória, sendo escandalosa a forma como, sem razão plausível, se diferenciaram de outras classes a que estiveram desde sempre equiparados. Em 1980, um magistrado auferia uma remuneração equivalente à de um coronel das Forças Armadas e hoje é mais do dobro. Basta consultar as listas dos aposentados da CGA para o comprovar. E são os únicos privilegiados com subsídio de habitação, mesmo com casa própria onde exercem as suas funções, e com a particularidade de o valor desse subsídio ser integrado na pensão de aposentação, caso único no Estado. E acresce frisar que enquanto um coronel atinge este posto em final da carreira, e após a frequência de cursos de formação sucessivos a seguir à licenciatura inicial, um magistrado ascende a esse nível remuneratório no decurso ou a meio da carreira. Como exemplo, e passe a declaração de interesse, se qualquer das minhas filhas, em vez de docentes do ensino secundário, fossem magistradas, ganhariam hoje o dobro do pai, que arriscou a vida em duas guerras do Ultramar, sujeitando-se a arruinar a saúde por submissão a agruras, intempéries e condições de vida insalubres, passando pelas vicissitudes de uma revolução, e só atingindo o último posto no fim da carreira.

Ao citar esse exemplo comparativo, vem a propósito a questão do risco profissional e desde logo a actual reivindicação do respectivo subsídio que tem sido a luta infrene das forças de segurança. Não se discute o seu legítimo direito. O incompreensível é esse subsídio ter sido consideravelmente aumentado para a PJ, sem ser equacionado no conjunto global das forças de segurança. Pode ser factor ponderoso o diferencial de qualificações profissionais e académicas entre uns e outros, mas não a problemática do risco. Pode-se também considerar que a enorme disparidade de efectivos entre uns e outros representa um encargo permanente à partida incomportável para o erário público.

E novamente por concatenação vem o estatuto remuneratório das Forças Armadas. As suas associações cívicas já anunciaram que, se houver atribuição do subsídio no montante que as forças de segurança reivindicam, os militares ponderarão ir pela mesma via de contestação maciça a que se tem assistido com milhares de polícias nas ruas, desprestigiando a instituição a que pertencem e transpondo limites que raiam a insurreição. Ora, os militares têm razão com a sua advertência, porque a atribuição do valor do subsídio de risco reivindicado colocaria um guarda da PSP ou da GNR a auferir uma remuneração semelhante se não mesmo superior à de um capitão das Forças Armadas. Mas no dia em que os meus camaradas de armas saíssem para a rua ensaiando o mesmo espectáculo ridículo e indecoroso a que se têm permitido os polícias, eu sentiria vergonha da farda que honradamente enverguei durante 40 anos servindo Portugal com risco da própria vida.

O efeito dominó da devassa reivindicativa não tem precedentes e é contagiante, a ponto de até os bombeiros se terem também manifestado a exigir carreiras profissionais e vencimentos condizentes com o risco da sua atividade. Outras mais classes profissionais estarão em lista de espera, a aguardar que o governo que abra os cordões à bolsa dê o sinal de partida para o descalabro final em que o país pode cair. Até podem reaparecer os antigos guardas nocturnos a reivindicar ao Estado o pagamento de retroactivos pelos riscos a que outrora se submeteram.

Não haja ilusão. O país parece ter ficado à deriva depois do golpe palaciano que a Procuradora-Geral e o Ministério Público engendraram e com que fizeram derrubar o governo da República e o da região Autónoma da Madeira. Entretanto, o turbilhão da campanha eleitoral que o país não desejava nem esperava segue o seu curso, e as promessas eleitorais inscrevem-se sem contenção, com cada actor político à procura do pedestal em que melhor sobressaia. O que intriga, ou talvez não, é estar arredado do discurso político estas 3 realidades basilares e incontornáveis:

− A economia nacional não gera riqueza para acudir a todas e quaisquer exigências salariais, senão com um crescimento real e sustentado que, atento ao princípio de igualdade e justiça social, possa contemplar os que têm voz reivindicativa como os que não a têm;

 − A Europa está em guerra e o tema da Defesa nacional e das Forças Armadas, desde há décadas relegado para a mais indigente das prioridades nacionais, nem assim pontifica no discurso nacional, como se fosse um tabu. É preciso consciencializar-se que o reforço do orçamento da Defesa Nacional implica sacrifícios, mas justificáveis porque nada é mais valioso que a vida e a segurança dos povos, como hoje no-lo dizem com lágrimas de sangue os ucranianos;

− A Justiça, como o demonstra os seus servidores ou ex-servidores mais experientes e credenciados, carece de uma urgente reorganização, sob pena de graves entorses no funcionamento do Estado de Direito Democrático. Também ela, a Justiça, parece um tabu; e escuso especular sobre as reais razões que o possam explicar.

As próximas eleições legislativas são uma oportunidade de escolha e de clarificação. É um momento crucial. É bom que ninguém se abstenha e que o povo abra os olhos e diga claramente o caminho que quer seguir. Se quer continuar livre e senhor do seu destino ou se quer ir na cantiga dos vendedores de banha de cobra que de um momento para outro parecem conquistar auditórios.

Nota: Escreve conforme a ortografia anterior ao AO 90.

Obs.: Texto publicado no jornal "Templário" de Tomar

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