sexta-feira, 26 de dezembro de 2025

 

Uma luz ao fundo da noite

 

                     Conto de Natal dos tempos em que se vivia com pouco

 

      Naquele tempo, anos quarenta do século passado, para o comum das pessoas de poucos recursos a celebração do Natal pouco mais era que um sentimento interiorizado e partilhado no seio das famílias. Numa época em que até escasseavam bens de primeira necessidade, imagine-se quão distante se estava do consumismo de hoje com as promoções e o black Friday vulgarizados na actividade comercial.

 

 

      No bairro onde vivia a Luzia a iluminação pública era escassa e nem todos os lares tinham luz eléctrica puxada para o interior das habitações. A véspera do Natal não era para ela diferente dos dias comuns. Como sempre, levantou-se aos primeiros alvores da madrugada para confeccionar os bolos e os salgados que vendia diariamente na vizinhança e nos estabelecimentos, para garantir o seu sustento. Mulher de rija têmpera, abandonada pelo marido há alguns anos, tinha da vida uma experiência agridoce, na sua maneira peculiar de sofrer as agruras do quotidiano sem hipotecar as reservas do seu ânimo. Os seus sessenta anos de idade foram-lhe ensinando desde cedo que o poder da imaginação logra por vezes autênticos milagres na busca de novos estímulos para a vida. Bastava-lhe a simples contemplação das estrelas distantes para pensar que algo mais haverá para lá do bairro onde se esgota a rotina da sua vida. Este e outros devaneios do género transformam-na, com frequência, em avatar da vida fervilhante das grandes cidades estrangeiras que uma ou outra vez viu estampadas em coloridos postais. Mas ela logo se devolve, satisfeita consigo própria e com o pouco que tem, à pobreza honrada do lugar em que exerce a soberania do seu viver.

      Este dia é véspera de Natal e seria mais um igual aos outros não fosse o sonho que ela vinha acalentando e queria ver realizado logo à noite. Foi na prateleira de uma loja de utilidades domésticas que o sonho da Luzia tinha começado a ganhar forma. Há muito que desejava ver-se livre do modesto candeeiro a petróleo que mal lhe alumiava a casa à noite. Pensava ela: − isto é coisa de fraco jeito, está mais que velho, fumega com frequência e não me dá aquela luz que entra pela alma dentro. E o que a seduziu? Um grande candeeiro de vidro, com um vistoso globo brilhante como cristal. Mulher de espírito fantasioso, seduzia-se com as figurinhas gravadas a estilete de aço no globo do candeeiro, que no seu entender só podiam ser obra de artista de outro mundo.

       E foi assim que começara desde há algum tempo a amealhar um escudo hoje, outro amanhã, e por vezes valores mais avultados quando o dia lhe corria de melhor feição no negócio do seu sustento. Arranjara um pote de barro com uma ranhura e dele fez o cofre que haveria de realizar o milagre da sua melhor prenda natalícia alguma vez recebida. 

      Quando o Sol se pôs, a Luzia já estava em casa e esfregava as mãos de contente por ter realizado um dia de venda lucrativo. Compôs a sua mesa com especial esmero e nela dispôs os ingredientes da ceia natalícia, produto da sua própria confecção. Depois, quando já escurecia, foi buscar o ambicionado candeeiro dias antes comprado. Atestou-o de petróleo, aguardou que a torcida se embebesse do combustível, nivelou-a o suficiente, riscou um fósforo e chegou-lhe a chama. O compartimento foi subitamente inundado de uma luminosidade nunca vista na salinha da sua pequena casa. Ela elevou a torcida ainda um pouco mais, na ânsia de conferir à luz o máximo de incandescência, e de repente todo o interior da habitação quase pareceu ganhar padrões caleidoscópicos, realçando-se pormenores antes ocultados pela luz modesta do anterior candeeiro. Convidou a sua amiga e vizinha, a idosa Isabel, viúva e a viver só, para a ceia de Natal. E a Isabel teve logo este espontâneo desabafo, mal entrou: − Luzia, isto hoje está outra coisa, mulher! É como se a luz deste candeeiro lavasse e renovasse tudo, incluindo os nossos corações! A Luzia não coube em si de contente com o reparo da amiga. 

      Cearam e conversaram longamente sobre o seu longínquo passado de raparigas novas, relembrando a dureza da vida, com as suas artimanhas e traições, mas também com as ilusões que se douram e se renovam com a luz do sol nascente de cada dia. A cumplicidade entre ambas tornava a Isabel a melhor confidente dos segredos do coração da amiga, cujas divagações do espírito mereciam sempre a sua concordância mesmo que muitas vezes as não entendesse. 

      Despediram-se quando lá fora o silêncio da noite era ainda quebrado pelo estalejar de um ou outro retardatário foguete de Natal. Por fim, foram-se extinguindo os ruídos da noite, sempre mais pródiga de eflúvios em dias festivos. Luzia ficou acordada mais algum tempo, sozinha com os seus pensamentos, inalando sofregamente a luz do seu novo candeeiro, sentindo um revigoramento de alma, como que banhada por outra luz, uma luz celestial.

      Nota: a redação deste texto obedeceu à ortografia anterior ao AO 90.

 

Tomar, 21 de Dezembro de 2025 

Adriano Miranda Lima