A Boa Vista de ontem na escrita e no romance de Germano Almeida

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010
A Ilha da Boa Vista era a ilha cujo nome diariamente se invocava nas outras Ilhas. Porquê? Porque a ilha entrava, estava e ficava em quase todas as casas, em muitos lares de Cabo Verde, tanto no seu exterior, pois era com a cal da ilha que se caiavam as casas, eram com telhas da Boa Vista que se cobriam muitas casas, como também no seu interior, sobretudo com lugar destacado, na cozinha. O atum enlatado da Fabrica Ultra muito apreciado nas mesas e do qual se podia variar a ementa caseira preparando-o de varias formas, Para além dessa iguaria, vinha da Boa Vista o binde que servia e serve para se confeccionar o cuscuz, uma espécie de bolo feito de farinha de milho que se come geralmente, ao pequeno-almoço ou no café da manhã. Hoje em dia, em vias de desaparecimento diário das mesas cabo-verdianas substituído pelo pão e pelas bolachas, produtos comprados já prontos a servir. Enquanto que a confecção cuidada do cuscuz, requeria que de véspera se deixasse o milho de molho, que era depois pilado, cochido, após o cantar do galo. Preparada a farinha, enchia-se o binde o qual se colocava em banho-maria para o cozimento do cuscuz. O ritual da sua preparação caseira, era mais adequado a um ambiente rural do que citadino.
O pote, utensílio indispensável para se conservar a água fresca, na ausência do frigorífico, vinha do barro da Boa Vista. Os moringues, as bilhas, as tagarras, largas tigelas de barro onde se colocavam as iguarias ou simples comida que depois se serviam à mesa. Os pratos de barro que durante muito tempo eram colocadas em quase todas as mesas de Cabo Verde, da mais abastada à mais pobre. Mais tarde, com a importação, mais generalizada, da chamada loiça fina da metrópole, a da Boa Vista passou a ser apenas da casa dos menos favorecidos, ou dos mais pobres. Refiro-me, como exemplo e, nomeadamente, o que sei sobre isso da ilha do Fogo, minha ilha de origem. Todas estas mercadorias distribuíam-se pelas ilhas através dos barcos que demandavam o porto de Sal-Rei em grande movimento no transporte para o comércio de cerâmica, de peles curtidas e sal que se vendiam nas outras ilhas. Por fim, desapareceu, faliu e fechou a Fábrica de Chaves de que fala o romance de Germano Almeida: «A Ilha Fantástica». Hoje, o célebre barro ou a argila da Boa Vista ficou circunscrita a trabalhos de artesanato não industrial da pequena olaria. Continuam a ser muito procurados os vasos para plantas, considerados, aliás, os mais bem acabados, mais bonitos e os que ficam bem, enfeitando, qualquer sala ou varanda da casa.
Logo, a ilha da Boa Vista esteve sempre presente outrora em quase todos os lares das ilhas.
Mas da Boa Vista vinham também as tâmaras douradas e saborosas de tal modo apreciadas que os rapazes do antigamente, para elogiarem uma rapariga diziam-lhe “a tua pele é como a tâmara passada da Boa Vista”, numa interessante metáfora para se referirem a cor e, possivelmente, ao que julgavam ser a macieza da pele da amada ou da pretendida como tal.
Considerada a Ilha mais oriental do Arquipélago, famosa também por aí “ter passado” o célebre meridiano, do Tratado de Tordesilhas, um dos marcos assinalados como divisória entre Portugal e a Espanha das novas terras achadas e por achar na época dos Descobrimentos, nos séculos XV e XVI.
Boa Vista é na actualidade uma das ilhas tomadas pelo turismo, definido nas palavras por G. Almeida «como garimpeiros de turismo que a tomaram parece que de assalto», estou a citar, para rematar que: «a Boa Vista está em vias de se transformar num grande hotel e que Deus ajude o boavistense a guardar para si, quanto mais não seja sete palmos de terra onde meter o caixão» Fim de citação.
Boa Vista é considerada, ex-aequo com a ilha Brava, a amorável pátria da morna a canção típica de Cabo Verde de que a internacional Cesária Évora é considerada das melhores interpretes. Terra de exímios rabequistas e de deliciosos violões, para além das mornas satíricas muito antigas da Boa Vista, de tal modo, a ilha era «terra sabi» que nos relatórios para os governadores, se escrevia que: «aquela gente muito folgava, muito dada as festas de muita dança e de... pouco trabalho»....
A “indolência” tornada proverbial/lendária que caracteriza o homem da Boa Vista e que faz com que os defensores da ilha, até encontrem explicações que a justificam, ao invés de a negar... o que não deixa de ser uma interessante abordagem da questão.
Permitam-me nesta sequência de evocações sobre a ilha da Boa Vista, trazer a pena de Maria Helena Spencer (1911-2005) antiga Jornalista do também antigo e já extinto «Boletim de Cabo Verde» (1949-1964) que numa soberba crónica descreve os homens (enaltecendo-os) e a ilha que apelida a «A ilha da Saudade». Numa alusão ao passado que permanece vivo, porque querido, na memória da sua gente. O que se conjugará, num belo acaso e convergência, com o que mais tarde, Germano Almeida de forma semi-ficcionada por vezes, nos transmite da sua ilha.
A ilha passou por muita penúria, ao longo do tempo. Os trabalhos quer fossem da pesca, da agricultura, ou mesmo fabril, eram regra geral sazonais para não dizer ocasionais e muito precários alias, tudo isto, aliado ao facto de o homem da Boa Vista ser muito dado à música e ao lazer e também justificados por ter muito tempo livre, e por se dedicar ao pastoreio que é, segundo alguns, uma actividade também contemplativa, e que convida a dedilhar as cordas do violão ou o arco da rabeca, ou do violino. Enfim, da “fama/lenda” não se livra o homem da Boa Vista. É quase gozo", quando se diz que, quando há necessidade de mão-de-obra para grandes obras de infra estruturação da ilha, vão-se buscar trabalhadores a outras ilhas.
O escritor G. Almeida “brinca” com isso, a seu jeito, mas vai defendendo a sua dama, dizendo que é mais lenda que ficou, do que outra coisa, essa da “preguiça” do homem da Boa Vista. Atenção, do homem, que não da mulher boavistense, pois ela é tida como trabalhadeira, empenhada e afamada cozinheira.
Boa Vista é também a ilha de artistas musicais, de intelectuais de boa pena, de oleiros, de artesãos, de pescadores, de mulheres emigrantes esforçadas e de agricultores esforçados também pois que lutam, a um tempo, com alguns adversários de peso: a areia invasora, os burros e as cabras, daninhos do plantio e das colheitas.
O romancista Germano Almeida centra boa parte da sua intriga ficcionista – na minha opinião, a mais densa, a mais profundamente trabalhada enquanto discurso literário e a melhor narrada – naturalmente, na ilha que o viu nascer.
A «Ilha Fantástica» 1994 – juntamente com a «Família Trago» 1994 – é um exemplo disso e constitui-se como memórias adolescentes da Ilha da Boa Vista, que sem deixar de lado relatos históricos, elas (as memórias) são narradas ao jeito e ao estilo satírico, mordaz e cómico do autor.

Nota actualizada: Este escrito é a introdução de uma intervenção feita na Universidade Brown de Rhode Island nos Estados Unidos. O tema explanado: “O romance cabo-verdiano contemporâneo”. Embora já com algum tempo, achei que podia figurar no «Coral Vermelho».

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