SOBRE O TEMA DA EUTANÁSIA

segunda-feira, 14 de março de 2016

 

 

Este tema tem sido badalado nos últimos dias, interpelando o sentido da nossa humanidade e a nossa espiritualidade.

No ano passado, no mês de Maio, desloquei-me a S. Vicente/Cabo Verde, minha ilha natal, para estar presente numa altura em que, a minha mãe, aos 92 anos, sofrendo de doença grave pouco tempo antes detectada (cancro no pâncreas), estava acamada e a aguardar o desfecho final. Depois de ter estado internada no hospital, os médicos decidiram que ela devia regressar a casa porque o único tratamento ali ministrado podia ser prosseguido em casa: medicamentação para aliviar as dores, cuidados paliativos, como hoje se diz.

Num estado de semi-inconsciência, ela ainda me reconheceu quando cheguei, mas não tardaria a perder a noção do que a rodeava. Pelas informações que fui recebendo enquanto estive ausente, o súbito agravamento do seu estado convencera-me de que tinha de viajar sem demora, sob pena de não chegar a tempo do funeral, dado que, com a sua avançada idade, a morte podia ocorrer a todo o momento. No entanto, assim não aconteceu. Ela ainda resistiu 21 dias desde a minha chegada, o que me proporcionou o conforto espiritual de lhe fazer uma companhia que, embora em circunstância dolorosa, tinha para mim um significado muito especial: no momento derradeiro, estar presente e desejar que a minha mãe permanecesse viva o mais que pudesse.

Mas aí é que podem emergir sentimentos contraditórios. Sentir o enlevo da presença de um ente querido e ao mesmo tempo assistir angustiosamente ao seu sofrimento, sabendo-o uma tortura de que só a morte é capaz de libertar. Interrogar-se também sobre qual será o desejo que o doente acalenta lá no fundo da sua semi-inconsciência quando, como era o caso da minha progenitora, não era possível qualquer comunicação verbal ou minimamente sinalizada.

O que eu senti, eu, Adriano, e toda a família, é que seríamos de todo incapazes de autorizar qualquer forma de eutanásia, mesmo que a mãe, estando consciente, o desejasse. No entanto, no que a mim toca, se um dia vier a estar em semelhante situação, desejarei, pelo contrário, que os meus familiares autorizem o termo do sofrimento. Mas o que desejarei para mim não o projecto para outros.

Eis uma questão verdadeiramente controversa e difícil de ser avaliada sob uma perspectiva jurídica sem que a nossa consciência ético-moral e os fundamentos da nossa espiritualidade não reclamem primazia.

No entanto, em Portugal, no dealbar do século passado, a eutanásia era praticada nas remotas aldeias serranas. Escreve o Aquilino Ribeiro na sua obra “Geografia Sentimental” que essa prática era usual naquele tempo. Quando um idoso, em fim de vida, se apresentava doente, em grande sofrimento, sem esperança, a família chamava o “abafador”, um homem que se prestava ao acto de abreviar o sofrimento de outrem. E Aquilino descreve a cena: na sala, o mulherio aguarda em silêncio; entra o “abafador” e, sem palavra, dirige-se ao quarto do paciente que, à vista, começa a gemer; o outro, às cavalitas, tapa-lhe o rosto com a almofada e pressiona até que a imobilidade sucede ao estertor. Consumada a tarefa e pago, o “abafador” sai e o mulherio rompe em choro lastimoso: “ai coitadinho, ai coitadinho…”.

Mais de um século depois, interrogamo-nos sobre o que verdadeiramente evoluiu positivamente em termos civilizacionais. Os recursos da ciência médica para aliviar o sofrimento do doente terminal? Certamente que sim. Os fundamentos da nossa consciência ético-moral em relação aos tempos transactos? Provavelmente não.

 

Tomar, 13 de Março de 2012

Adriano Miranda Lima

 

 

 

 

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