terça-feira, 29 de março de 2016

Eis mais um inédito da escritora, contista Maria Margarida Mascarenhas (1938-2011) enviado ao «Coral Vermelho» pelas mãos amigas de Adriano Miranda Lima. Uma crónica sobre o final da vida.

 

Cemitério de elefantes

 
Já não ofertarei mais chocolates a Maria Inácia. Despedimo-nos dela e de sua vida quase vegetativa no último domingo. Mas adorava chocolates.


A caçula da Clotilde já os enterrou a todo, um a um, desde que retornaram de Angola. Conheci-a acompanhando a penúltima às sessões de quimioterapia. Saberá ainda recuperar a vida que não viveu?
 

Em Cabinda contaram-me histórias dos cemitérios dos elefantes devastados por caçadores de marfim. Os elefantes quando pressentem a morte dirigem-se para um local escolhido para isso.
 

Há quem tome as suas decisões. Há quem delegue noutros essa decisão e há aqueles a quem ninguém pergunta nada e se decide tudo por eles. EUTANÁSIA.
 

A Maria Inácia foi levada no dia um de Setembro para uma antecâmara de um desse lugares de nomes celestiais e paradisíacos e pela primeira vez recusou comer os meus chocolates.
 

Como sempre fui conversar com o meu banco azul. A Bela acácia mesmo em frente ao banco definhava a olhos vistos, cheia de buracos e infestada de cogumelos gigantes. A última poda deve ter ditado, para meu desgosto, a sentença. A serra eléctrica cortou-a cerce ao passeio e ali estava aquele vazio alargando-me o panorama do rio.
 

Todos os dias contemplo o que sobejou, uma face em forma de coração expondo como num calendário dos Maias a história daquela vida e o tempo que a habitou. Círculos concêntricos e irregulares onde conto os anos e as fases daquela vida. Anos mais fartos, anos mais sóbrios, rugas, dores e cicatrizes. Entre a lisura do tronco e a sua crosta nasceu um misericordioso rio resinoso formando colóides.
 

Surpreendeu-me hoje aquele relógio vegetal de raízes pujantes. As chuvas de Setembro choraram sobre ela e no bico da oração cresce já com alguns ramos uma futura árvore se a lei humana se sobrepuser à Natural. As duas leis que regem aquele jardim....
 
A quem posso ainda oferecer chocolates?

 
Paço de Arcos, 28 de Setembro de 2006
 
Maria Margarida Mascarenhas

 

 

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