Sobre o antigo Jornal «O Manduco»

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

( Agosto de 1923 a Junho de 1924)

A iniciativa  concretizada em boa hora, pela editora da Livraria «Pedro Cardoso» em dar à estampa uma edição “fac-símile” dos números do referido jornal; foi a todos os títulos louvável, pois  que veio não só dignificar o nome do  patrono que carrega, mas também, dar a conhecer de forma mais acessível a leitores interessados, parte da obra, por Pedro Cardoso deixada. Com efeito, o leitor tem assim  conhecimento e  registo histórico, muito importante, de um certo jornalismo que se fazia nos inícios do século XX,  nestas ilhas. No caso de «O Manduco», jornalismo com algum carácter regional, local, uma vez que partia da ilha do Fogo.
Trata-se aliás, de um  periódico impresso com uma feição muito singular feito um pouco à  imagem e à semelhança do perfil do seu fundador, dono e primeiro director, Pedro Monteiro Cardoso. Interessante é que ele logo no primeiro número como mandavam as normas, faz a apresentação  do seu jornal de uma forma original é certa, mas muito pouco ortodoxa. Aqui vão excertos do editorial do 1º número: “ Apresentando-se. Em nome de Deus...
É praxe dar-se, no 1º número de qualquer folha política ou literária, a razão do seu aparecimento.
A nós porém, aborrecem-nos as praxes.
De mais, este mensário é propriedade exclusivamente nossa.
Não nos consideramos pois, obrigados a dizer os motivos determinantes da sua publicação.
Que o comprem, que o assinem e o paguem adiantadamente, aqueles que porventura os deseje conhecer. Que do referido contexto se inferem, quando expressamente se não declarem. Dizer isto não será ainda programatizar?
 Talvez. No entanto assinar e pagar adiantadamente é o que convém. (...)
 (...) Oh! Como é doce sonhar! Praza a Deus que vos tome, caboverdianos, o vício de ler, não por empréstimo mas somente pagando-o. Amén!
 Todo o editorial se apresenta nesse tom, ora irónico, ora censurando os vícios do “grogue” e das “funçanatas” em que se deleita o putativo leitor, ao invés de comprar «O Manduco» e cultivar-se na sua leitura.
Portanto, ao «O Manduco»  liga-se um nome sonante da poesia e do folclore cabo-verdianos, Pedro Cardoso. Nome que se confundia com a própria ilha que o viu nascer. Acrescentaria por graça, que só não se chama ao Fogo a ilha de Pedro Cardoso, porque o vulcão é mais “roncador”. E, por isso, tomou-lhe lugar. Sim, porque em matéria de desaforo e quanto a bradar  altissonantemente as suas crenças, os seus amores, os seus desamores e os seus combates, quer em poesia, quer em prosa, creio que P. Cardoso não se coíbia muito e não ficava muito atrás do vulcão, metaforicamente falando, claro.  Um pequeno aparte: certamente que alguns  conhecem o célebre poema em crioulo «Djarfogo» deste poeta em que à boa maneira camoniana se confunde o “amador com a coisa amada” Djarfogo /Fogo é nha nome botismo, / é Fogo laba burcam, / é Fogo sangue na beia,/ é Fogo amor na coraçan. // Um dia na mei de mar, / m' labanta na luz de sol, / nha serra botom fitchado, / desdobra el abri um frol, / m' nece ja cu nha destino, / nhas fidjus un cria's assim: / ali o pa tudo mundo, / peto bronze, / alma cetim   / Fogo é nha nome botismo, / nha graca ama nha bençom, / Fogo corage na peto, / Fogo manduco na mon.”Pedro Cardoso, in:  É mi que lha'r Fogo (1941). Para o leitor não falante do crioulo de Cabo Verde (no caso, a variante da ilha do Fogo) aqui vai uma tradução aproximada ao português: “Fogo é o meu nome de baptismo / Fogo é ser lava do vulcão / Fogo é o sangue que corre na veia / Fogo é ter amor no coração / Um dia no meio do mar / alevantei-me à luz do sol / Vi a minha serra qual botão fechado / desdobrar-se e abrir-se em flor / assim nasci já com o meu destino / assim criei os meus filhos / aqui e em todo o mundo / peito de bronze / alma de cetim / Fogo é o meu nome de baptismo / É a minha graça e a minha bênção / Fogo coragem no peito / Fogo manduco na mão”
Ora bem, o poema para além de realçar em linhas metafóricas, a orografia da ilha, a idiossincrasia das suas gentes, o poeta antropomorfiza a ilha, fazendo-a “falar” na primeira pessoa. É igualmente, um bom exemplo de fusão do poeta, com a sua ilha. Claro que se percebe que a versão original foi escrita para ser dita ou lida em  voz altissonante e com muita força emotiva. O interessante  é que mais uma vez a imagem do “manduco” cara e reiterada pelo poeta, simboliza e singulariza a ilha do vulcão.
Feche-se este aparte e voltemos ao jornalismo da época  de Pedro Cardoso.

Para além do mais, através do «Manduco», espreita-se também um tipo de jornalismo praticado e nobilitado pela pena dos intelectuais cabo-verdianos do início do século passado. E aqui estamos já a falar de textos jornalísticos elaborados com o saber e a pena culta, dos seus autores, porque são homens de e da cultura que os elaboraram para os jornais onde colaboravam. Mas não vá sem dizer que estes jornalistas literatos, Pedro Cardoso, Eugénio Tavares e José Lopes manejam com à-vontade nos seus textos, o intertexto - porque os conhecem bem - dos escritores, poetas portugueses, clássicos, românticos e realistas. Para exemplo,  na poesia lírica adoptam como patronos, Camões e João de Deus; já o modelo e o modo de compor os sonetos de assuntos elevados e espirituais é em Antero de Quental que buscam o padrão; como modelo de poeta anti-clerical, protestatário e combativo é Guerra Junqueiro; e finalmente, o exemplo a seguir de Historiador probo e sério,  é Alexandre Herculano. Outro vulto frequentemente, por eles citado é Victor Hugo da Literatura francesa. Basta ler os números de «Manduco» para disso se aperceber. 
No jornalismo do passado das ilhas, encontrámos  personalidades e nomes que nele se destacaram. Referirei  apenas alguns, para exemplo: Luís Medina, Luís Loff,  Eugénio Tavares, José Lopes, Pedro Corsino Lopes, Abílio Macedo, José Barbosa, J. Calasans, João Gomes Barbosa, Mário Pinto, César M. Barbosa, entre outros.
Uma observação: neste rol de nomes ilustres mencionados incluí a maior parte daqueles, cuja colaboração «O Manduco» regista  e que pode ser confirmada pela vossa leitura dos números publicados.

Mas antes de prosseguir, e porque nada acontece ao acaso, haverá sempre um contexto histórico a enquadrar. Com efeito, e fazendo rapidamente um pouco de história, em retrospectiva, verificámos que a liberalização da imprensa portuguesa que já vinha acontecendo a partir do último quartel do século XIX como resultado de toda uma legislação de matriz liberalizante, especificamente a ela destinada, teve como efeito mais imediato, um surto de vários jornais em Portugal, a maior parte de expressão combativa e política. O interessante é que se verificou também aqui no arquipélago, mais ou menos na mesma altura, e com especial realce para a cidade da Praia, uma relativa “abundância”, se assim me é permitido expressar, de periódicos e de jornais, com a mesma feição dos congéneres portugueses.
Com efeito, em Cabo Verde, seguiu-se com entusiasmo, e através de alguns jornais portugueses, as lutas Liberais que em Portugal se travavam. Pois que o ideal liberal pugnava pela defesa do desenvolvimento do país e, por arrastamento também o das suas colónias. Mas o realce era o da liberalização de leis para vários sectores. 
Ora bem, nessa senda, e a partir de 1877, os nossos publicistas, periodistas e editores, a maior parte homens letrados e pertencentes, muitos deles, às elites das ilhas, entusiasmados com o caso da então metrópole, fundam - também aqui e  na cidade da Praia, sobretudo - jornais para a defesa dos interesses da colónia. Assim tivemos os jornais:  INDEPENDENTE,  CORREIO de CABO VERDE, semanários noticioso, literário e político; ECHO de CABO VERDE, jornal político e noticioso;  A IMPRENSA, semanário político e noticioso; A JUSTIÇA, O PROTESTO, quinzenários políticos; O POVO PRAIENSE, e O PRAIENSE, entre outros. Igualmente quase todos de pouca duração por motivos vários entendíveis, dos quais sobressai o problema financeiro para a sua manutenção e circulação.
De certa forma, este período pode ser considerado como tendo sido fecundo, porque também iniciático de um jornalismo com aspectos já autonomizados em matéria  opinativa e política do cabo-verdiano.
Abreviando, mais tarde, chegados ao século XX e com o advento e a implantação do regime republicano (1910) novas leis, mais democráticas e de maior alcance para a imprensa, são produzidas em Portugal - veja-se e leia-se o cabeçalho de «O Manduco» que traz destacada a seguinte inscrição: “Da Constituição Portuguesa (artigo 3º, nº 13) «A expressão do pensamento, seja qual fôr a sua forma, é completamente livre, sem dependência de caução, censura ou autorização prévia, mas o abuso deste direito é punível, nos casos e pela forma que a lei determinar». Tudo isso permitiu um renascer esperanças nos republicanos cabo-verdianos, que os havia aqui também e de boa cepa. Aguardaram ansiosamente  pela sua chegada. Entoaram-lhe loas através dos seus poemas e de outros escritos. Esperavam pelo cumprimento de promessas, de atendimento às graves crises famélicas, à construção de estradas, portos, escolas. Enfim, obras para o desenvolvimento do Arquipélago. Porque  eram eles,  os chamados homens bons das ilhas, que as haviam  reclamado. Então, aproveitando o bom momento histórico que se vivia, os activistas republicanos, os mais novos, muitos deles já com formação académica do Seminário-Liceu de S. Nicolau, retomaram com mais afinco, esta via de combate e de protesto que eram os jornais. E teremos agora um jornalismo mais politizado e até mesmo partidarizado. 
Reparem, que não é por acaso, que alguns dos nomes mais destacados da actividade jornalística cabo-verdiana foram filiados no Partido Republicano, no partido Socialista português, e alguns deles membros activos da maçonaria portuguesa que se expandiu entre as ilhas, com lojas e  com triângulos, organizações maçónicas do Grande Oriente Lusitano. A essas organizações políticas e secretas pertenceram exactamente os dois directores do «Manduco» - Pedro Cardoso e Eugénio Tavares. Outros, embora em menor número, como Abílio Monteiro de Macedo, pertenceram também à Carbonária. Todas elas sociedades secretas de índole republicana.
Vale acrescentar, que de uma maneira geral - raríssimas terão sido as excepções - os intelectuais cabo-verdianos aplaudiram, aderiram à liberdade trazida pelo republicanismo dos primeiros anos e conseguiram efectivar o chamado jornalismo combativo e de opinião com  algum desafogo. Aliás, o artigo de José Lopes inserto no nº 6 é um autêntico testemunho disso para a memória do Arquipélago.
Não é por acaso também, e  isso ficou evidenciado na leitura dos números do Manduco ora compilados que, quer Pedro Cardoso, quer Eugénio Tavares, quer José Lopes e quer ainda, os de mais colaboradores, procuram  louvar todos - Presidentes da República, deputados, ministros, governadores - desde que  tragam como “selo e senha” a marca do regime republicano. Eram sempre bem-vindos,  mesmo que falhassem os objectivos. Até isso lhes era tolerado. 
Abreviando e resumindo:  é neste contexto histórico de algum empolgamento republicano e libertário do espaço português de que Cabo Verde era parte, com liberdade de expressão da imprensa que vigorou (desde a implantação da república em 1910 até à ditadura militar instalada a 28 de Maio de 1926); é neste ambiente, repito, que surgiu e viveu  entre 1923/1924,  o jornal «O Manduco».
Para finalizar, uma nota de louvor à editora, Livraria «Pedro Cardoso», que na pessoa do seu Administrador/gestor Dr. Mário Silva, tem vindo a retirar da sombra e do esquecimento, autores e obras antigas, sempre válidos para a cultura cabo-verdiana, como foi esta edição compilada e “fac-símile” dos 13 números do Jornal «O Manduco».

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