(
Agosto de 1923 a Junho de 1924)
A
iniciativa concretizada em boa hora,
pela editora da Livraria «Pedro Cardoso» em dar à estampa uma edição “fac-símile” dos números do referido jornal;
foi a todos os títulos louvável, pois
que veio não só dignificar o nome do
patrono que carrega, mas também, dar a conhecer de forma mais acessível
a leitores interessados, parte da obra, por Pedro Cardoso deixada. Com efeito,
o leitor tem assim conhecimento e registo histórico, muito importante, de um
certo jornalismo que se fazia nos inícios do século XX, nestas ilhas. No caso de «O Manduco»,
jornalismo com algum carácter regional, local, uma vez que partia da ilha do
Fogo.
Trata-se
aliás, de um periódico impresso com uma
feição muito singular feito um pouco à
imagem e à semelhança do perfil do seu fundador, dono e primeiro
director, Pedro Monteiro Cardoso. Interessante é que ele logo no primeiro
número como mandavam as normas, faz a apresentação do seu jornal de uma forma original é certa,
mas muito pouco ortodoxa. Aqui vão excertos do editorial do 1º número: “ Apresentando-se. Em nome de Deus...
É praxe dar-se, no 1º número de qualquer
folha política ou literária, a razão do seu aparecimento.
A nós porém, aborrecem-nos as praxes.
De mais, este mensário é propriedade
exclusivamente nossa.
Não nos consideramos pois, obrigados a
dizer os motivos determinantes da sua publicação.
Que o comprem, que o assinem e o paguem
adiantadamente, aqueles que porventura os deseje conhecer. Que do referido
contexto se inferem, quando expressamente se não declarem. Dizer isto não será
ainda programatizar?
Talvez. No entanto assinar e pagar
adiantadamente é o que convém. (...)
(...) Oh! Como é doce sonhar! Praza a Deus que
vos tome, caboverdianos, o vício de ler, não por empréstimo mas somente
pagando-o. Amén!
Todo o editorial se apresenta nesse tom, ora
irónico, ora censurando os vícios do “grogue” e das “funçanatas” em que se
deleita o putativo leitor, ao invés de comprar «O Manduco» e cultivar-se na sua
leitura.
Portanto,
ao «O Manduco» liga-se um nome sonante
da poesia e do folclore cabo-verdianos, Pedro Cardoso. Nome que se confundia
com a própria ilha que o viu nascer. Acrescentaria por graça, que só não se
chama ao Fogo a ilha de Pedro Cardoso, porque o vulcão é mais “roncador”. E,
por isso, tomou-lhe lugar. Sim, porque em matéria de desaforo e quanto a
bradar altissonantemente as suas crenças,
os seus amores, os seus desamores e os seus combates, quer em poesia, quer em
prosa, creio que P. Cardoso não se coíbia muito e não ficava muito atrás do vulcão, metaforicamente
falando, claro. Um pequeno aparte:
certamente que alguns conhecem o célebre
poema em crioulo «Djarfogo» deste poeta em que à boa maneira camoniana se
confunde o “amador com a coisa amada” Djarfogo /Fogo é nha nome botismo, / é Fogo laba burcam, / é Fogo sangue na beia,/
é Fogo amor na coraçan. // Um dia na mei de mar, / m' labanta na luz de sol, / nha serra botom fitchado, / desdobra el abri um frol, / m' nece ja cu nha destino, / nhas fidjus un cria's assim: / ali o pa tudo mundo, / peto bronze, / alma cetim / Fogo é nha nome botismo, / nha graca ama nha bençom, / Fogo corage na peto, / Fogo manduco na mon.”Pedro Cardoso, in: É mi que lha'r Fogo (1941). Para o leitor não falante do crioulo de Cabo Verde (no caso, a variante da ilha
do Fogo) aqui vai uma tradução aproximada ao português: “Fogo é o meu nome de
baptismo / Fogo é ser lava do vulcão / Fogo é o sangue que corre na veia / Fogo é
ter amor no coração / Um dia no meio do mar / alevantei-me à luz do sol / Vi a
minha serra qual botão fechado / desdobrar-se e abrir-se em flor / assim nasci já
com o meu destino / assim criei os meus filhos / aqui e em todo o mundo / peito
de bronze / alma de cetim / Fogo é o meu nome de baptismo / É a minha graça e a
minha bênção / Fogo coragem no peito / Fogo manduco na mão”
Ora bem, o poema para além de realçar em
linhas metafóricas, a orografia da ilha, a idiossincrasia das suas gentes, o
poeta antropomorfiza a ilha, fazendo-a “falar” na primeira pessoa. É
igualmente, um bom exemplo de fusão do poeta, com a sua ilha. Claro que se
percebe que a versão original foi escrita para ser dita ou lida em voz altissonante e com muita força emotiva. O
interessante é que mais uma vez a imagem
do “manduco” cara e reiterada pelo poeta, simboliza e singulariza a ilha do
vulcão.
Feche-se este aparte e voltemos ao jornalismo
da época de Pedro Cardoso.
Para
além do mais, através do «Manduco», espreita-se também um tipo de jornalismo
praticado e nobilitado pela pena dos intelectuais cabo-verdianos do início do século passado. E
aqui estamos já a falar de textos jornalísticos elaborados com o saber e a pena
culta, dos seus autores, porque são homens de e da cultura que os elaboraram
para os jornais onde colaboravam. Mas não vá sem dizer que estes jornalistas
literatos, Pedro Cardoso, Eugénio Tavares e José Lopes manejam com à-vontade
nos seus textos, o intertexto - porque
os conhecem bem - dos escritores, poetas portugueses, clássicos, românticos e
realistas. Para exemplo, na poesia
lírica adoptam como patronos, Camões e João de Deus; já o modelo e o modo de
compor os sonetos de assuntos elevados e
espirituais é em Antero de Quental que buscam o padrão; como modelo de poeta
anti-clerical, protestatário e combativo é Guerra Junqueiro; e finalmente, o
exemplo a seguir de Historiador probo e sério,
é Alexandre Herculano. Outro vulto frequentemente, por eles citado é
Victor Hugo da Literatura francesa. Basta ler os números de «Manduco» para
disso se aperceber.
No jornalismo do passado das ilhas, encontrámos personalidades e nomes que nele se
destacaram. Referirei apenas alguns,
para exemplo: Luís Medina, Luís Loff,
Eugénio Tavares, José Lopes, Pedro Corsino Lopes, Abílio Macedo, José
Barbosa, J. Calasans, João Gomes Barbosa, Mário Pinto, César M. Barbosa, entre
outros.
Uma observação: neste rol de nomes ilustres mencionados
incluí a maior parte daqueles, cuja colaboração «O Manduco» regista e que pode ser confirmada pela vossa leitura
dos números publicados.
Mas
antes de prosseguir, e porque nada acontece ao acaso, haverá sempre um contexto
histórico a enquadrar. Com efeito, e fazendo rapidamente um pouco de história,
em retrospectiva, verificámos que a liberalização da imprensa portuguesa que já
vinha acontecendo a partir do último quartel do século XIX como resultado de toda uma legislação de matriz
liberalizante, especificamente a ela destinada, teve como efeito mais imediato,
um surto de vários jornais em Portugal, a maior parte de expressão combativa e política. O interessante é que se
verificou também aqui no arquipélago, mais ou menos na mesma altura, e com
especial realce para a cidade da Praia, uma relativa “abundância”, se assim me
é permitido expressar, de periódicos e de
jornais, com a mesma feição dos congéneres portugueses.
Com efeito, em Cabo Verde, seguiu-se com
entusiasmo, e através de alguns jornais portugueses, as lutas Liberais que em
Portugal se travavam. Pois que o ideal
liberal pugnava pela defesa do desenvolvimento do país e, por arrastamento
também o das suas colónias. Mas o realce era o da liberalização de leis para vários sectores.
Ora bem, nessa senda, e a partir de 1877, os nossos publicistas, periodistas e editores, a maior parte homens letrados e pertencentes, muitos deles, às elites das ilhas, entusiasmados com o caso da então metrópole, fundam - também aqui e na cidade da Praia, sobretudo - jornais para a defesa dos interesses da colónia. Assim tivemos os jornais: “INDEPENDENTE, CORREIO de CABO VERDE, semanários noticioso, literário e político; ECHO de CABO VERDE, jornal político e noticioso; A IMPRENSA, semanário político e noticioso; A JUSTIÇA, O PROTESTO, quinzenários políticos; O POVO PRAIENSE, e O PRAIENSE, entre outros. Igualmente quase todos de pouca duração por motivos vários entendíveis, dos quais sobressai o problema financeiro para a sua manutenção e circulação.
Ora bem, nessa senda, e a partir de 1877, os nossos publicistas, periodistas e editores, a maior parte homens letrados e pertencentes, muitos deles, às elites das ilhas, entusiasmados com o caso da então metrópole, fundam - também aqui e na cidade da Praia, sobretudo - jornais para a defesa dos interesses da colónia. Assim tivemos os jornais: “INDEPENDENTE, CORREIO de CABO VERDE, semanários noticioso, literário e político; ECHO de CABO VERDE, jornal político e noticioso; A IMPRENSA, semanário político e noticioso; A JUSTIÇA, O PROTESTO, quinzenários políticos; O POVO PRAIENSE, e O PRAIENSE, entre outros. Igualmente quase todos de pouca duração por motivos vários entendíveis, dos quais sobressai o problema financeiro para a sua manutenção e circulação.
De certa forma, este período pode ser considerado como tendo sido fecundo, porque também iniciático de um jornalismo com aspectos
já autonomizados em matéria opinativa e
política do cabo-verdiano.
Abreviando, mais tarde, chegados ao século XX e com
o advento e a implantação do regime republicano (1910) novas leis, mais
democráticas e de maior alcance para a imprensa, são produzidas em Portugal -
veja-se e leia-se o cabeçalho de «O Manduco» que traz destacada a
seguinte inscrição: “Da Constituição Portuguesa (artigo 3º, nº 13) «A
expressão do pensamento, seja qual fôr a sua forma, é completamente livre, sem
dependência de caução, censura ou autorização prévia, mas o abuso deste direito
é punível, nos casos e pela forma que a lei determinar». Tudo isso
permitiu um renascer esperanças nos
republicanos cabo-verdianos, que os havia aqui também e de boa cepa. Aguardaram
ansiosamente pela sua chegada.
Entoaram-lhe loas através dos seus poemas e de outros escritos. Esperavam pelo
cumprimento de promessas, de atendimento às graves crises famélicas, à
construção de estradas, portos, escolas. Enfim, obras para o desenvolvimento do
Arquipélago. Porque eram eles, os chamados homens bons das ilhas, que as
haviam reclamado. Então, aproveitando o
bom momento histórico que se vivia, os activistas republicanos, os mais novos, muitos deles já com formação académica do Seminário-Liceu de S. Nicolau,
retomaram com mais afinco, esta via de
combate e de protesto que eram os jornais. E teremos agora um jornalismo mais politizado e até mesmo
partidarizado.
Reparem, que não é por acaso, que alguns dos nomes mais destacados da actividade jornalística cabo-verdiana foram filiados no Partido Republicano, no partido Socialista português, e alguns deles membros activos da maçonaria portuguesa que se expandiu entre as ilhas, com lojas e com triângulos, organizações maçónicas do Grande Oriente Lusitano. A essas organizações políticas e secretas pertenceram exactamente os dois directores do «Manduco» - Pedro Cardoso e Eugénio Tavares. Outros, embora em menor número, como Abílio Monteiro de Macedo, pertenceram também à Carbonária. Todas elas sociedades secretas de índole republicana.
Reparem, que não é por acaso, que alguns dos nomes mais destacados da actividade jornalística cabo-verdiana foram filiados no Partido Republicano, no partido Socialista português, e alguns deles membros activos da maçonaria portuguesa que se expandiu entre as ilhas, com lojas e com triângulos, organizações maçónicas do Grande Oriente Lusitano. A essas organizações políticas e secretas pertenceram exactamente os dois directores do «Manduco» - Pedro Cardoso e Eugénio Tavares. Outros, embora em menor número, como Abílio Monteiro de Macedo, pertenceram também à Carbonária. Todas elas sociedades secretas de índole republicana.
Vale
acrescentar, que de uma maneira geral - raríssimas terão sido as excepções - os intelectuais
cabo-verdianos aplaudiram, aderiram à liberdade trazida pelo republicanismo dos primeiros anos e
conseguiram efectivar o chamado jornalismo combativo e de opinião com algum desafogo. Aliás, o artigo de José Lopes
inserto no nº 6 é um autêntico testemunho disso para a memória do
Arquipélago.
Não é
por acaso também, e isso ficou
evidenciado na leitura dos números do Manduco ora compilados que, quer Pedro
Cardoso, quer Eugénio Tavares, quer José Lopes e quer ainda, os de mais
colaboradores, procuram louvar todos - Presidentes da República, deputados, ministros, governadores - desde que tragam como “selo e senha” a marca
do regime republicano. Eram sempre bem-vindos,
mesmo que falhassem os objectivos. Até isso lhes era tolerado.
Abreviando e resumindo: é neste contexto histórico de
algum empolgamento republicano e libertário do espaço português de que Cabo
Verde era parte, com liberdade de
expressão da imprensa que vigorou (desde a implantação da república em 1910 até
à ditadura militar instalada a 28 de Maio de 1926); é neste ambiente, repito,
que surgiu e viveu entre 1923/1924, o jornal «O Manduco».
Para
finalizar, uma nota de louvor à editora, Livraria «Pedro Cardoso», que na
pessoa do seu Administrador/gestor Dr. Mário Silva, tem vindo a retirar da
sombra e do esquecimento, autores e obras antigas, sempre válidos para a
cultura cabo-verdiana, como foi esta edição compilada e “fac-símile” dos 13
números do Jornal «O Manduco».
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