Pela
simples circunstância de ter preopinado sobre o tema concreto de uma das
palestras agendadas para a comemoração do centenário do “Liceu Nacional de Cabo
Verde”, obliterei, ou adiei, o momento de manifestar publicamente o meu apreço de
cidadão por aqueles que aceitaram assumir a organização desse evento em nome da
nação cabo-verdiana. Por isso, faço-o agora, com o sentimento de orgulho e
gratidão de que não pode abdicar nenhum conterrâneo.
Quando,
no meu texto (1), focalizei a atenção num excerto da entrevista de Amiro Faria
para extrair elementos estruturantes da minha argumentação, poderá ter passado
a ideia de que pretendi conflituar ou afrontar as intenções que o meu ilustre
conterrâneo propugna para o êxito da comemoração. Mas não, longe de mim
semelhante propósito; tal seria absurdo, tanto mais que as suas palavras
serviram-me apenas como função veicular. O meu objectivo era, e é, tão-só, o
tema da palestra que se propõe Leão Lopes, não por discordar da temática em si
− Liceu
Gil Eanes, Consciencialização Política e Resistência Colonial, O caso
“Semente de Manga”− mas por entender que é um exagero considerar o
antigo reitor um caso paradigmático da repressão colonial. Mas sobre este tema
voltarei mais adiante. Impõe-se é desde já assinalar que, como todo o
cabo-verdiano, tenho Amiro Faria em alta consideração cívica, por aquilo que
representa como cidadão e por tudo o que tem dado ao nosso país, como o atesta
a actividade pública que já exerceu com comprovada competência e as valiosas
ideias que tem exprimido sobre várias matérias de interesse colectivo.
Na
verdade, reitero a minha absoluta discordância com a ideia de trazer o alegado
“Caso Semente de Manga” para o pelourinho da fustigação pública. Não o faço por
estar mandatado para defender ou justificar o professor Antero Simões, que não
deve sequer imaginar o que escrevo e torno público. E enganar-se-á redondamente
quem possa supor nas minhas palavras outra servidão que não aos ditames da
minha consciência. É exactamente por eu ser também usufrutuário do legado
cultural que o liceu Gil Eanes representa, que me julgo no direito de emitir
uma opinião própria sobre o caso. Faço-o com o distanciamento temporal indispensável
a uma avaliação fria e objectiva dos factos, conforme aconselha Foucault no seu
conceito de Problematização. E também com a autonomia intelectual e moral que
desprenda a minha narrativa de qualquer tutela, seja ela política, seja ela
determinada por qualquer preconceito, modismo ou corrente de opinião. Eu
julgava o Antero Simões já fora do mundo dos vivos até ter tido um contacto com
ele por mera casualidade e conforme expliquei no artigo anterior. O que, de
facto, me surpreendeu foi notar-lhe um renovo de alma quando soube que um
antigo aluno cabo-verdiano quis saber do seu destino.
Ora,
é por estar em causa a dialéctica dos meios e dos fins que me permiti
questionar se, de facto, o “Caso Semente de Manga” deve ser ressuscitado na
comemoração do centenário. Eu julgo que não porque reafirmo que o professor foi
mais vítima das circunstâncias do que o tal carrasco com que foi conotado. É
que para mim ele foi mal escolhido para reitor, e pior ainda se a intenção foi mesmo
incumbi-lo de uma “missão especial”, como é suposto. Não tinha idade e
experiência suficientes para o cargo e faltavam-lhe sobretudo requisitos
naturais de liderança, assim como uma estrutura psicológica ou emocional adequada.
E isto é que me espanta porque não é concebível que o então governador, Silvino
Silvério Marques, um homem de fina inteligência e oficial de gabarito, possa
ter incorrido em semelhante erro de casting. De resto, o Silvino
Silvério Marques não era seguramente um salazarista ferrenho, definia-se mais
propriamente como um oficial imbuído de elevado espírito de missão e, sem ponta
de dúvida, um humanista, como o provou preocupando-se mais com o resolver o
problema da fome na nossa terra do que com o policiamento da ordem do Regime.
Conforme
refiro no artigo anterior e referenciado no fim deste texto, Antero Simões é
hoje um homem fragilizado pela idade e corroído pela mágoa do seu insucesso em
Cabo Verde como reitor de liceu, e, por sinal, deixando transparecer facilmente
a insegurança emocional e a fragilidade psicológica que lhe devem ser
congénitas e não o recomendavam para o cargo. E para agravar o seu estado,
perdeu recentemente a esposa, vítima de cancro. O que lhe parece dar ânimo,
talvez suprindo a solidão interior, é a sua intensa e profícua actividade
literária, tendo produzido obra biográfica de valor inestimável sobre o Eça de
Queirós nas suas múltiplas facetas, de homem, escritor, polemista e cidadão.
Sucede
que depois de ler o texto de alguém que era um adolescente de 15 anos à data
dos acontecimentos, reclamando a co-autoria do assalto às instalações do liceu,
reforçou-se-me a convicção de que o episódio que espoletou a queda do reitor, foi
mais um acto de rebaldaria e irreverência juvenil do que uma acção de
resistência pensada e organizada contra a “opressão colonial”. Que leitura faço
daquele texto? Desculpar-me-á o seu autor mas penso que entram aí doses de efabulação
e metonímia. O autor, agora homem maduro e certamente exemplar cidadão, gaba-se
e baba-se pela autoria de uma façanha em que não vejo motivo nenhum para gáudio
ou vanglória. Quando se lêem palavras do aludido texto deste teor, ispsis verbis: “Queremos os mondrongos
fora da nossa terra"; "Queremos reitor caboverdeano"; tem de se
denunciar um flagrante sentimento xenófobo e um radicalismo que surpreende
quando comummente se glosa o espírito de tolerância e convivialidade dos
mindelenses. Será para mim decepcionante se se confirmar que aquele sentimento
xenófobo foi menos um arrobo juvenil instantâneo do que um sentimento que o
adulto de hoje amadureceu e cristalizou no espírito. Porque será então caso
para lhe perguntar o que pensariam os autores da bravata de homens que foram
grandes beneméritos para a nossa terra como o Dr. Regala e o Dr. Baptista de
Sousa, também eles “mandrongos”, um imortalizado em estátua numa praça do
Mindelo, outro no frontispício do hospital da ilha. Isto para não falar de
outros mais que se inscreveram facilmente na nossa idiossincrasia e na esfera
da nossa humanidade.
É
certo que alguns alunos mais velhos tinham, na altura, cada um a seu modo e em
grau variável, uma opinião crítica em relação à acção do reitor. Mas não creio
que aqueles que, como eu, eram finalistas, pudessem enveredar por actos de
pouca civilidade, que seriam contrários aos padrões comportamentais ou à
maturidade psicológica que, embora em fase incipiente, estavam em processo de
modelação nas nossas jovens personalidades. Desta maneira, defrontamo-nos com a
ironia desta constatação: não fora o tal “assalto” ao liceu perpetrado por
rapazes de quinze anos, provavelmente não se teria configurado a acção de
“resistência anticolonial” que conduziu à destituição do reitor. Poderia vir a
acontecer mais tarde, é certo, mas provavelmente em moldes diferentes ou por
outras vias. É exactamente por isso que eu sugiro maior ponderação nos juízos
que o “Caso Semente de Manga” possa suscitar, para evitar hiperbolizações,
manipulações ou mistificações que levem a confundir actos administrativos
precipitados, canhestros ou excessivos com propósitos de “repressão colonial”.
A
vida é breve, o tempo e os acontecimentos fluem vertiginosamente e desaguam
nesse silêncio onde procuramos rebuscar a memória, ordená-la e construir a
história. Esta é mais fidedigna se apaziguarmos o ânimo e mantivermos a
capacidade de lobrigar que a nossa condição humana sucumbe à sua própria
incapacidade de se interrogar, quanto mais de julgar. Com isto tudo quero
apenas sugerir que seja exaltado e celebrado, e muito bem, o papel que o Gil
Eanes exerceu na nossa consciencialização cívica, e mais tarde política, mas
sem entrar-se em endeusamentos ou diabolizações de meros peões de xadrez. Dê-se
lugar aos grandes vultos da história do liceu Nacional de Cabo Verde, ignore-se
o que não passa de episódio menor, transitório, perecível à fogueira da ilusão
ou do delírio.
Em
minha opinião, o velho professor, que diz ter a ilha de S. Vicente no coração,
mais do que Angola, para onde seria compulsivamente transferido, foi apenas um
peão de xadrez desacertado no tabuleiro do jogo. Foi mais vítima de uma má
escolha administrativa para a função de reitor do que agente de “opressão
colonial” aturdido nos trâmites da sua missão. Ele próprio reconhece que a sua
vocação era ensinar e não administrar. Foi o que me disse com grande angústia
visível no rosto, o que me leva a perguntar se ele não foi também vítima da
política autoritária que terá pretendido servir com obediência acrítica.
Meus
caros conterrâneos e antigos colegas de liceu, interposta a sugestão que as
minhas palavras subentendem, deixemos que o escantilhão da memória nos trace a
perspectiva mais correcta para revisitar e celebrar a história do Gil Eanes.
(1) Artigo
intitulado O Alegado “Caso Semente de Manga”,
Entre a Mistificação e a Politização,
de Set/2017, publicado no jornal online
Notícias do Norte e no blogue Coral Vermelho.
Tomar,
4 de Outubro de 2017
Adriano
Miranda Lima
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