Caro
Leitor: aqui se transcreve um texto datado de 1962 e publicado no antigo Jornal «Diário
de Lisboa». Trata-se de uma entrevista concedida pelo escritor e ensaísta
cabo-verdiano, António Aurélio Gonçalves (1901-1984), dando conta da então situação literária, criativa e
cultural do Arquipélago, num primoroso e rigoroso panorama, como só o saberia
fazer alguém portador de conhecimento e de
uma vasta cultura que o antigo professor de Filosofia nos habituou
ao longo da sua vida. Por tudo isto, convido vivamente o leitor a ler a entrevista.
Deixo-o, caro leitor, com este magnífico texto sobre a Literatura cabo-verdiana de há 55 anos, fazendo votos de um
novo ano pleno de boas realizações.
No moderno movimento literário
cabo-verdiano, que há uns trinta anos se revelou com frescura e espontaneidade
singulares, só tardiamente veio alinhar o ensaísta e novelista António Aurélio
Gonçalves. Já as personalidades de Jorge Barbosa, de Baltasar Lopes, de Manuel
Lopes e alguns mais, eram largamente divulgadas nos círculos literários de Cabo
Verde e da Metrópole, como escritores de alto nível prontamente conquistado – e
ainda Aurélio Gonçalves prolongava em Lisboa, como estudante na Faculdade de
Letras, uma aprendizagem voluntariamente prolongada de intelectual e de
escritor. Espírito finíssimo, cultivando com delongas o sibaritismo superior da
mais larga cultura de raízes clássicas, não houve neste cabo-verdiano
intelectualmente supercivilizado nenhuma pressa de escrever. A criação
literária não se lhe impôs com qualquer urgência. Antes de regressar ao
arquipélago crioulo, onde tem exercido a função de professor no liceu de
Mindelo, só deixou publicado na Metrópole um ensaio crítico magistral, que
inseriu na revista «Seara Nova» então inspirada no admirável apostolado
cultural e cívico de António Sérgio.
Nas revistas «Cabo Verde» e
«Claridade» publicou António Aurélio Gonçalves, posteriormente, obras de ficção
e ensaio literário. Em 1956 e 1957, foram editadas, pela Divisão de Propaganda
e Informação de Cabo Verde, as suas noveletas «Pródiga» e «O Enterro de Nhâ
Candinha Sena» – obras de ambiente localista crioulo, em que
a observação do real se combina com uma atmosfera discretamente poética, uma
subtileza de psicologia de almas simples e uma elegância de forma que revelam o
escritor de profunda formação humanística. As duas narrativas foram
significativamente publicadas em abertura da «Antologia da Ficção Cabo-verdiana
Contemporânea», que Baltasar Lopes seleccionou e para a qual escreveram uma
introdução o escritor metropolitano Manuel Ferreira, e um comentário de
lucidíssima interpretação o próprio Aurélio Gonçalves.
O escritor está hoje em plena
disponibilidade para a germinação de uma obra literária que pode vir a ser acontecimento
de relevo na cultura de raiz portuguesa – e para o acabamento e divulgação do
que tem escrito nestes seus longos vinte anos de distanciamento insular. A
oportunidade inesperada da vinda a Lisboa de António Aurélio Gonçalves deu-nos
o ensejo de uma entrevista. Com ela fazemos a apresentação aos nossos leitores
de um ensaísta e novelista ultramarino de nível singular – e de quem obtivemos
a promessa de colaboração assídua neste suplemento do «Diário de Lisboa».
Através de Aurélio Gonçalves vai o público literário metropolitano tomar
contacto revelador com o escol intelectual e artístico de Cabo Verde, apesar de
tudo, tão distanciado e ignorado – mas tão digno de admiração nos seus melhores
valores.
Começamos por perguntar a António
Aurélio Gonçalves a sua opinião sobre o actual florescimento da actividade
literária do arquipélago, cuja evolução tem acompanhado intimamente nos últimos
anos:
– Um florescimento literário cabo-verdiano existe, na
verdade, continuando o esforço criador iniciado mais destacadamente há três
décadas. E o facto mais animador que nos permite confirmá-lo é o aparecimento
de valores novos muito positivos. Quer vivam em Cabo Verde, no relativo
isolamento insular, quer fora do arquipélago, esses escritores novos evidenciam
um aperfeiçoamento, sobretudo na técnica da criação literária e na largueza dos
seus interesses, que é a mais auspiciosa esperança. Seria difícil dizer, é
certo, se existe neles um «aprofundamento». Mas foge-se cada vez mais à
monotonia dos temas repetidos: a estiagem, a fome cíclica, a pobreza endémica,
a estreiteza de horizontes do arquipélago. O pequeno mundo cabo-verdiano também
é isso – mas não é só isso. A gente de Cabo Verde possui uma alma, alimenta
reacções que não se contém apenas nos limites dessas realidades locais. E é
preciso que a literatura desvende, explore as realidades mais profundas.
– E o que tem concorrido para esse
alargar de horizontes? A emigração? O contacto mais intenso com o exterior
através do livro e dos modernos meios de convivência humana?
– A
emigração, não creio. O emigrante, por via de regra, é o homem do povo mais
humilde e quase sempre inculto. Não vem até à literatura. E mesmo no que
respeita ao livro, ao jornal ou à revista de cultura, o escol cabo-verdiano não
tem o contacto intenso, assíduo e estimulador que seria de desejar. São raros
os meus conterrâneos que convivem intelectualmente de maneira regular e
constante com a literatura metropolitana e com as literaturas estrangeiras. A
actividade literária actual é a que o nosso estreito meio permite. E muito
haveria a fazer, certamente, para a alargar.
– Mas porque se publicam tão poucos
livros de escritores de Cabo Verde, existindo no arquipélago um escol
incontestavelmente rico?
–
Sim. É com razão que se estranha a morosidade do aparecimento de obras várias
de escritores cabo-verdianos. A verdade, porém, é que não somos tantos como se
poderá julgar por certas aparências. E faltaram-nos, durante muito tempo, os
incentivos, por vezes os meios materiais. Demais, vários escritores de Cabo
Verde estão ainda a «aprender» um método e um ritmo de trabalho. Não existe, é
claro, a profissionalização do escritor insular. Todos temos de ganhar a vida
em outras coisas. No entanto, há homens de letras em actividade criadora quase
constante – como é o caso de Jorge Barbosa na sua esplêndida produção poética.
O seu processo de trabalho é, talvez, lento, mas seguro, e é admirável na
qualidade como na continuidade.
– E os valores novos?
–
Devemos confiar neles. São autênticos valores. Gabriel Mariano, que parece
ter-se consagrado mais decididamente ao ensaio, nos últimos tempos; Ovídio
Martins, que publicou há pouco, na Colecção Imbondeiro, de Angola, dois contos
bem escritos; Terêncio Anahory, que surgiu com um belo livro de poemas,
«Caminho Longe»; Corsino Fortes, que não publicou ainda nenhum livro, mas se
tem revelado em colaborações valiosas; e, mais recentemente, um grupo de
rapazes que criaram a página Seló, no
«Notícias» de Cabo Verde – são o penhor de uma vigorosa continuidade nas letras
insulares. E, como esses que mencionei, muitos mais com que teria de alongar
demasiado este depoimento.
– Mas porque não ressurgiu ainda, a
revista «Claridade» como órgão perene dos valores literários do arquipélago?
– A
pergunta tem todas as justificações, mas há-de permitir-me que faça um pouco de
história. «Claridade» teve um primeiro ciclo, como sabe, nos anos 30, com três
números em que se destacaram as colaborações de Baltasar Lopes, Jorge Barbosa,
Manuel Lopes, João Lopes dos Santos e alguns mais. É o período inovador, sob
forte influência brasileira e, mais designadamente, do neo-realismo então
lançado com vigor por Lins do Rego e Jorge Amado. Foi nessa fase que se
intentou a criação de um estilo literário mais próximo do crioulo nativo e se
pretendeu traduzir, sob formas mais cruas, as dramáticas realidades
cabo-verdianas. Houve, a seguir, uma interrupção de alguns anos motivada pela
dispersão dos colaboradores. E, por volta de 1942, a revista apareceu com uma participação
mais larga e um espírito diferente: a mitigação daquele desígnio de instaurar
um novo estilo, uma nova linguagem literária e o retorno a uma forma mais
tradicionalmente portuguesa comum. Baltasar Lopes passou a ser o quase
exclusivo animador da revista, novos elementos surgiram, imprimindo sentido
mais largo e tendência mais universalista à literatura cabo-verdiana. O
folclorista Félix Monteiro, os poetas Ovídio Martins, Aguinaldo Fonseca e
Corsino Fortes, o ensaísta e poeta Arnaldo França, entre outros, reavivaram a
mensagem de «Claridade». Também Jorge Barbosa acompanhou esse movimento
renovador – enquanto alguns, incluindo Baltasar Lopes, com o seu irreprimível
inconformismo, prosseguiam fielmente a orientação nativista. Na actualidade, e
depois de uma interrupção de dois anos, «Claridade» tem grandes possibilidades
de reaparecer, desde que haja quem impulsione e sustente a sua ressurreição. A
revista conquistou, sem dúvida, um lugar de grande prestígio no conjunto
literário da língua portuguesa. Será missão de alto mérito continuá-lo.
– E que outros meios seriam
necessários para que a literatura de Cabo Verde fosse mais largamente conhecida
na Metrópole e até no Brasil?
– O
mais importante seria, sem dúvida, que os escritores cabo-verdianos publicassem
com maior assiduidade as suas produções em poesia e em prosa. Tenho sido
informado de que há editores na Metrópole que se oferecem decididamente para
publicar livros de homens de letras de Cabo Verde – desde que tenham qualidade,
evidentemente. Quanto à crítica literária, não temos razão de queixa na
constante e generosa atenção ante os escritores insulares. O interesse com que
João Pedro de Andrade, Óscar Lopes e outros críticos metropolitanos se referem
aos nossos escritores é o mais cativante e estimulador. E não se diga, também,
que o leitor metropolitano não anima a criação literária ultramarina. A 2ª
edição de «Chiquinho», de Baltasar Lopes, e de «Os Flagelados do Vento Leste»,
de Manuel Lopes, tiveram excelente venda nas livrarias da Metrópole.
– Diga-nos ainda, alguma coisa de si,
Aurélio Gonçalves. Em que trabalha actualmente, o que pensa escrever no futuro?
– Não
tenho cessado de escrever e, sobretudo de delinear ou esboçar projectos. Para
já, penso reunir em volume novelas e contos inéditos ou que publiquei
dispersamente nos últimos anos; vou completar o meu estudo, já extenso, sobre a
ironia de Eça de Queiroz; e ambiciono escrever muitas coisas mais, tanto de
ficção, como de ensaio crítico – para fixar ideias e observações que tenho
acumulado longamente e, também, para corresponder aos incentivos carinhosos que
vim encontrar em Lisboa, após vinte e dois anos de ausência. Levo impressões rápidas,
mas reconfortantes, levo muitos livros que desejava encontrar, tive encontros
intelectuais que me interessaram ou até me emocionaram profundamente. Embora
nunca me tenha alheado do movimento literário metropolitano, as minhas opiniões
e interpretações avivaram-se ao contacto com a atmosfera em que espiritualmente
me formei. E voltarei a Cabo Verde, em breve, com o desígnio bem assente de as
definir melhor, de as filtrar pela reflexão metódica e de as apresentar
publicamente em ensaio e crónica. A hospitalidade do suplemento literário do
«Diário de Lisboa» será mais um estímulo fundamental para a actividade
interpretativa e crítica que estou agora decidido a realizar.
António Aurélio Gonçalves vai
regressar a Cabo Verde – mas a ponte de comunicação com a vida intelectual
metropolitana, que a distância interrompeu, vai restabelecer-se. Os leitores de
hoje, muitos deles esquecidos ou desconhecedores deste alto espírito e notável
escritor, vão ter em breve a oportunidade grata de descobrir e de apreciar uma
relevante personalidade da cultura portuguesa.
(Do Diário de Lisboa de 27-9-1962)
* Título original da publicação
3 comentários:
Pelo que conheço das minhas pesquisas do "Diário de Lisboa", jornal que tenho vindo a consultar com regularidade, 1962 é um ano muito interessante para Cabo Verde. Nessa altura já se fazem pesquisas de culturas hidropónicas no lisboeta Jardim do Ultramar (eng. José d'Orey) tendo em vista a sua aplicação a Cabo Verde, Silvino Silvério Marques abandona Macau e é substituído por António Lopes dos Santos, ambos futuros próximos governadores de Cabo Verde e depois muito estimados no arquipélago (entretanto governado por Leão Sacramento Monteiro, comandante da Armada com ancestrais ilhéus), Amândio Cabral toca no Hotel Embaixador, em Lisboa, Arnaldo França fala sobre poesia e ficção cabo-verdiana na Casa do Império, também em Lisboa, Nuno de Miranda publica "Gente da Ilha", 1.º volume da "Colecção Unidade", da Agência Geral do Ultramar, Manuel Ferreira (um quase cabo-verdiano) é entrevistado e sai o seu romance "Hora di Bai" pela ed. Vértice, Amílcar Cabral fala na ONU e terminam-se as obras interiores do cais acostável e do cais de pesca de São Vicente.
Mas o acontecimento dominante do ano é a visita de Adriano Moreira, ministro do Ultramar, realizada entre 13 de Agosto e 6 de Setembro a todas as ilhas de Cabo Verde (foi o primeiro e talvez único governante português de sempre a desembarcar em Santa Luzia). É por sua iniciativa que vem a Portugal exibir-se na RTP o Grupo de Folclore de Cabo Verde que traz consigo a grande Titina (que por aqui fica até hoje), logo gravando para os discos Alvorada um single com uma morna e uma coladeira. E é nessa linha também que António Aurélio Gonçalves é entrevistado na capital do Império, onde se encontrava temporariamente, 22 anos depois de dela ter partido em regresso a Cabo Verde, constatando-se desde logo a sua estatura de grande homem de letras, a par dos da sua época que em Portugal produziam prosa. Completava ele então o seu estudo sobre Eça de Queirós, escritor também tão estimado por Germano Almeida, como é sabido…
Boa ideia e forte trabalho de transcrição este do "Coral Vermelho" (nunca aqui ninguém falou do jogo das iniciais deste blogue… CV) que merece salva de palmas aí por uns 10 minutos…
Braça do Pd'B
Desconhecia esta entrevista do grande ícone da nossa literatura que é o António Aurélio Gonçalves. Disse “é” e não “foi” porque os altos espíritos não desaparecem enquanto soubermos cultivar a sua memória e reactivar o convívio com o seu legado. Ainda não há muito tempo, reli o conto “O enterro de nha Candinha Sena”, uma criação literária que me encanta em particular. Aliás, volta e meia releio outras produções deste inesquecível intelectual cabo-verdiano, que tive a honra e o proveito de ter como professor de História e Filosofia.
Felicito a Ondina por em boa hora ter-se lembrado de postar no blogue esta entrevista que, segundo creio, a maior parte dos cabo-verdianos desconhece ou esqueceu.
Grande e feliz iniciativa essa da ventilação deste conto. Se bem me lembro, o primeiro do escritor que me entusiasmou a ponto de ler de imediato os demais.
Vejo um convite para revisões
Obrigado ao Coral
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