Os termos Cultura e Civilização em título
revestem aqui o sentido epistemológico que lhe confere Oswald Spengler
(1880-1936) no seu livro “O Declínio do Ocidente”, e mesmo Nietzsche, com a sua
crítica violenta aos valores do mundo ocidental.
A Cultura é entendida como um complexo de
ideias e valores éticos e estéticos criados e cultivados pelas elites
intelectuais das comunidades, configurando uma visão particular do homem, da vida
e do mundo. Tudo se exprime basicamente na Filosofia, nas Ciências e nas Artes.
Desta sabedoria o homem foi fazendo as suas interpretações e aplicações
práticas, visando os aspectos utilitários e funcionais do seu modo de viver, no
seio de sociedades estruturadas e reguladas por normas. E assim surgiram as
civilizações, com os seus padrões de desenvolvimento e os seus interesses
vitais, estes nem sempre, ou raramente, coincidindo com os de comunidades ou
nações vizinhas em disputa de espaços limítrofes. É claro que os germes da
conflitualidade, ontem como hoje, radicam no seio das próprias comunidades,
opondo classes ou grupos diferentes, mas é na relação com o outro, o estranho,
o desconhecido, que emerge a natureza obscura, contraditória, conflituosa e violenta
do ser humano. A escala das confrontações é variável e circunstancial, indo de
questões menores passíveis de resolução pela negociação e pela diplomacia, a
conflitos bélicos de grandes proporções e devastadoras consequências,
envolvendo nações e coligações de nações.
É neste complexo de realizações,
idealizações e ambições de índole material que se traduz a Civilização como a
conhecemos. Ela é a expressão do mundo material que emana da Cultura, ou seja,
do mundo das ideias. No entanto, há uma relação de causalidade entre uma e
outra, ou, melhor dizendo, ambas têm a sua origem num mesmo legado intelectual.
Mas com uma diferença significativa na sua natureza intrínseca. Enquanto a
Cultura é de estirpe genuinamente espiritual, isto é, intelectual e volitiva, a
Civilização é do domínio emotivo, instintivo e imediatista. Enquanto a Cultura
se atém a uma atitude sistematicamente reflexiva, crítica, inovadora e
renovadora, questionando os fundamentos da essência do ser para melhor perspectivar
a sua evolução e o seu futuro, a Civilização é o respaldo de uma atitude de
aceitação dogmática, de um automatismo utilitarista, de um ajustamento a
princípios que não questiona e procura simplesmente converter em fórmulas de
aplicação prática.
Quando se diz Civilização, está
obviamente em causa o mundo ocidental e cristão (legado das culturas
greco-latina e judaico-cristã), e com razão, já que ele é que dominou o
percurso trans-histórico da humanidade nos dois últimos milénios. Para o bem e
para o mal, convenhamos, ostentando duas faces distintas e contraditórias: o progresso
material e altos padrões de vida, fruto das ciências e das inovações
tecnológicas; o protagonismo dos conflitos bélicos mais dilacerantes da
história.
É aqui que entra Spengler e o seu livro
“O Declínio do Ocidente”, editado logo a seguir à I Guerra Mundial, com a tese
de que a cultura (subentenda-se, civilização) ocidental havia perdido o seu
ciclo vital e caminhava irreversivelmente para o fim, à semelhança do que
acontecera com outras anteriores que tiveram o seu apogeu – como a babilónica,
a egípcia, a grega e a romana. Aquele filósofo e historiador, perante os sinais
que emite este nosso mundo actual, teria porventura razões acrescidas para
revalidar inequivocamente a sua tese. Do mesmo modo, Nietzsche certamente que o
secundaria com a visão ainda mais radical da sua filosofia moral expressa nas
suas dissertações em “Vontade de Poder”, em que estabelece a relação entre
Cultura e Civilização, preconizando que o desenvolvimento desta conduzirá a uma
decadência cultural.
De facto, o que vemos acontecer no mundo
em nada nos tranquiliza. Dos escombros da II Guerra Mundial pretendeu-se
construir uma nova ordem mundial, promissora de paz, mas ela não surtiu o
efeito desejado. Presa por arames durante o período da chamada Guerra fria,
teve ao menos a virtude de evitar um conflito declarado entre as duas grandes
potências do sistema bipolar. Ruído o Bloco Leste, entrou-se no actual sistema
multipolar, que é contemporâneo de uma globalização sob a égide de um
neoliberalismo que sobrevaloriza o capital e a lógica do negócio, em detrimento
da Cultura no sentido que aqui lhe reconhecemos, ou seja, a dignificação do ser
humano como um valor supremo ou o objectivo principal da marcha civilizacional.
Só para citar um exemplo, quando uma fábrica multinacional fecha as suas portas
num país europeu ou americano para as reabrir onde pode maximizar os seus
lucros, por recurso a mão-de-obra muito mais barata e em condições
infra-humanas, quase de escravidão, não se pode dizer que a civilização esteja
no bom caminho e que esta globalização sirva os valores e os princípios que
enformam a Cultura.
Bastará olhar para a qualidade média dos
actuais e recentes actores da cena mundial para se perceber que a sociedade
humana não soube ou não consegue renovar o cardápio de princípios orientadores
da liderança política que o actual progresso material exige. E quando,
sobretudo, se vê ao leme da potência mundial mais poderosa uma criatura da estirpe
de Donald Trump, instala-se então a intranquilidade. Que confiança pode
inspirar um homem cuja palavra de ordem é “America First”, que constrói muros na
fronteira com o seu vizinho a sul, que rasga acordos internacionais de
cooperação assinados pelo seu antecessor, que trata com desdém xenófobo e racista
povos de outras etnias e quadrantes geográficos?
Para compreender a dinâmica das forças
vitais do planeta e reagir aos seus desafios, não basta o progresso tecnológico
e o desenvolvimento material. É preciso olhar atentamente para a Cultura,
renovando as suas valorações éticas, morais e estéticas, para que o homem não
fique refém do mundo artificial das suas criações. Só assim se habilita a
interagir harmoniosamente com o mundo natural e a respeitar a vida e a dignidade
humanas como um valor absoluto.
Tomar,
28 de Janeiro de 2017
Adriano
Miranda Lima
1 comentários:
Gostei de a ler. A análise serena e assertiva do Adriano, é um convite à nossa reflexão sobre o que se passa na hora actual nas sociedades e nos países ditos civilizados, cuja cultura humanista se encontra gravemente enferma. Excelente texto!
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