A problemática da Justiça tem andado na ordem do dia e muita tinta tem feito correr, o que é natural e desejável, porque todos os contributos são úteis para a socialização de um debate tão importante para a saúde da democracia.
Corremos o risco de derivar para uma perigosa dialéctica entre a “judicialização da política” e a “politização da justiça”, daí ser da maior conveniência que o Estado de Direito Democrático não chute para canto quando se lhe deparam fundadas razões para questionar se tudo vai bem com esse pilar da sua sustentação que é o Poder Judicial. Porque há evidências que são indisfarçáveis. Cada vez é mais perceptível que a Justiça precisa de uma clarificação do que se passa no seu interior, para evitar o avolumar da suspeição de que ela possui uma agenda própria, algo obscuro e suscitado por eventuais motivações políticas promiscuindo com objectivos sindicalistas ou corporativistas. Por isso, têm de ser aplaudidas as palavras do actual presidente do PSD, Rui Rio, quando, no congresso do seu partido, anunciou um pacote de medidas para a discussão da Justiça, no sentido de a tornar “mais eficaz mas também mais transparente nos seus actos e na sua prática”. Esperemos que encontre o devido eco no meio político, face à aparente abdicação em que tem incorrido o Primeiro-Ministro, com o seu já estafado cliché: “ à Justiça o que é da Justiça e à Política o que é da Política”.
Naturalmente que o chefe do executivo tem toda a razão em evocar um princípio que é basilar para o funcionamento do Estado de Direito Democrático. Mas há quem o censure por evitar chamar os bois pelos nomes, supondo-o constrangido na sua liberdade interior em virtude do caso Sócrates e de outros que envolvem figuras do seu partido ou próximas dele. Seja o que for, é errado porque numa sociedade livre não pode haver receio de discutir tudo o que possa comprometer os seus alicerces. Tudo deve ser questionado, discutido, reavaliado, para ser corrigido, se for o caso. Porque a edificação do Estado de Direito Democrático não é obra de nenhum arquitecto inspirado ou ungido por desígnio divino, mas fruto da vontade colectiva expressa em sede própria e nos momentos adequados. Isto é que lhe confere uma legitimidade quase metafísica. Desta maneira, não pode caber no seu seio qualquer categoria de actos ou actores políticos ou judiciais com existência ontológica autónoma, sacralizada e inviolável.
As questões candentes devem ser submetidas ao crivo da opinião pública. Se é demitido um ministro que se revela incompetente ou comete erros graves no exercício das suas funções, se um governo não é reconduzido eleitoralmente por não cumprir os objectivos do seu programa, por que razão o Poder Judicial há-de ser uma excepção à regra no sentido virtual da palavra? Por que há-de julgar-se sacrossanto, imune a qualquer escrutínio? Tem sido praticamente assim, com o Poder Judicial a fugir entre os pingos de chuva das procelas nacionais. A prova mais irrefutável da sua inimputabilidade tem sido a sistemática violação do segredo de justiça, que atinge proporções que envergonham e indignam o país, dando azo a interrogações pertinentes acerca do que verdadeiramente está na origem de tantas e tão constantes transgressões.
Uma Justiça séria, competente e responsável jamais poderia permitir que os conteúdos dos processos que instaura e deviam estar sob rigoroso sigilo sejam constantemente vertidos nas páginas de dois conhecidos órgãos de comunicação social, como se com eles coligados numa estratégia para atingir fins inconfessáveis. Num Estado de Direito Democrático todos os cidadãos indiciados por prática de crime têm direito à presunção de inocência até serem julgados em tribunal. A Justiça não pode nunca confundir-se com intenções persecutórias ou ajuste de contas com quem tomou decisões políticas que atingiram regalias pessoais dos seus membros. De colarinho branco, cinzento ou encardido, todos os cidadãos merecem o mesmíssimo tratamento em sede de Justiça. Circunstância alguma justifica que ela contribua para o achincalhamento público de cidadãos ainda não julgados, para a devassa da sua vida privada e para o atentado contra a sua imagem e a sua dignidade. Em suma, a Justiça não pode ser co-autora de assassinato político, cívico ou moral.
Este é o cenário que leva Rui Rio a incluir na agenda política do seu partido um conjunto de medidas para corrigir o que parece não estar bem neste pilar do Estado de Direito Democrático. Disse corrigir mas estava a pensar na palavra “sanear”, e talvez fosse a mais apropriada. Sim, porque a Revolução de Abril devolveu a democracia aos portugueses e “saneou” o que lhe parecia dever prestar contas por grave comprometimento político com o regime derrubado. Pouco se questiona a razão por que a magistratura foi o único sector da sociedade a escapar ao “saneamento”. E muita conta havia a ajustar com os juízes dos tristemente célebres Tribunais Plenários do Estado Novo, muitos deles tendo transitado, incólumes, para a democracia, e chegado aos pontos mais altos da magistratura nacional.
Analisando os casos mais mediatizados da nossa Justiça, não será descabida a suspeição de que ela tem um alinhamento preferencial com as teses da Direita e os seus representantes. A ministra da Justiça do governo de Passos Coelho, Paula Teixeira da Cruz, não se coibiu de afirmar publicamente que a Justiça tinha de ser exercida doesse a quem doesse, contrastando com a postura do actual governo, que afirma recorrentemente a sua intenção de não emitir qualquer directriz política orientadora da acção do Poder Judicial. A ministra não precisava de afirmar o que é óbvio, mas a verdade é que pouco depois das suas afirmações José Sócrates foi preso nas circunstâncias vexatórias que são conhecidas. Entretanto, e de modo diferente, o caso dos “Submarinos” e o caso “Tecnoforma” não foram objecto de qualquer acção do Poder Judicial, investigação ou reabertura de processo. E se dúvidas houvesse, o inventado caso Centeno veio adensá-las ainda mais, pondo em causa a linearidade e a transparência dos actos da Justiça.
Não é razoável estabelecer um nexo e causalidade entre a actual magistratura e aqueles que abdicaram da sua liberdade de consciência e se deixaram instrumentalizar no regime do Estado Novo. Todavia, não se pode dizer que o actual Poder Judicial seja detentor de um legado cívico e moral que emoldure lustrosamente a ciência e a doutrina dos seus procedimentos. Falta-lhe o lastro da “historicidade”, ou seja, uma dinâmica social anterior e contínua, pautada pelo amadurecimento da vivência democrática, feita de constante aquisição e formulação de valores que vão sendo ajustados e aperfeiçoados em função das perspectivas e das visões que a trajectória da vida nacional vai abrindo.
Oxalá Rui Rio e o António Costa acertem o timing e a amplitude da reforma da nossa Justiça, para que a sua balança tenha os mesmos pesos e as mesmas medidas para toda a gente.
Tomar, 18 de Fevereiro de 2018
Adriano Miranda Lima
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