1. INTRODUÇÃO
Lisboa é reconhecidamente uma cidade dotada
de uma singular beleza e luminosidade que nos toca. E o seu epicentro cultural
situa-se na chamada Baixa Pombalina – Chiado, Rossio, Rua Augusta, Terreiro do
Paço, etc.
Ora é justamente na Baixa Pombalina de
Lisboa, tendendo para a monumental praça do Terreiro do Paço, erguida dos
escombros de uma Lisboa devastada pelo terramoto de 1755, que encontramos o
mais velho café português – o “Café Martinho da Arcada”.
Na verdade, com os seus 236 anos de vida e de
história, o Martinho da Arcada – como é conhecido - constitui uma incontornável referência
cultural de Lisboa, que acolheu ao longo de um tão ampliado período de tempo várias
gerações de governantes, políticos, militares, escritores e artistas, que, dos
oitocentistas românticos aos opositores à ditadura salazarista, o elegeram como
um singular ponto de encontro e espaço de convívio. De resto, como veremos, das
inúmeras personalidades que por lá passaram, destaca-se um cliente muito
especial e figura tutelar da Casa: Fernando Pessoa, um dos maiores poetas
portugueses e figura das letras de dimensão universal.
2.
PRIMÓRDIOS
Disse um dia George Steiner: “Desenhe-se o
mapa dos cafés e obter-se-á um dos marcadores essenciais da ideia de Europa”. E
a verdade é que é impossível desenhar Lisboa sem uns quantos cafés, de que são
exemplos paradigmáticos, para além do Martinho da Arcada e do seu “irmão” mais
novo e há muito finado, o “Café Martinho” (1846/1968, ao longo dos seus
primeiros 100 anos de vida, o mais representativo café literário, artístico e
político de Lisboa), o “Marrare do Polimento” (1820/1925, o café mais sedutor da
Lisboa romântica) e o celebrado “Brasileira do Chiado” ( aberto em 1905 e felizmente
ainda hoje exuberantemente cheio de vida), todos na zona do Chiado ou dele
muito próximos. Mas fixemo-nos no Martinho da Arcada, objecto do presente
trabalho.
Localizado, pois, no Terreiro do Paço, por
baixo da arcada nordeste da mais majestosa praça da capital e do País e uma das
maiores da Europa com os seus 36.000,00 m2, a história do mais do que bicentenário
Martinho da Arcada, segundo uma certa versão histórica, ter-se-á iniciado em
1778 num modesto estabelecimento de bebidas e de gelo, instalado no âmbito da reconstrução
da Baixa de Lisboa na sequência do terramoto de 1755. Contudo, em bom rigor
histórico, a data oficial da sua inauguração é 7 de Janeiro do ano da Graça de
1782.
Na Lisboa setecentista onde proliferavam
tabernas e botequins, o aparecimento de um novo estabelecimento era um
acontecimento festivo. Assim aconteceu naquele dia em que, segundo ecos dessa
época porventura algo romanceados, foi à luz de lampiões de azeite e ao som de
uma fanfarra que o seu proprietário, Julião Pereira de Castro, neveiro-mor da
Casa Real, destapou um letreiro, onde se lia, em letras pintadas a dourado,
“Casa da Neve”, o nome do estabelecimento. Foi, então, perante uma assistência
onde se destacavam, entre os convidados de honra, altos representantes da
Rainha de Portugal, D. Maria I, e alguns burgueses mais endinheirados que, com
pompa e circunstância, o café foi inaugurado.
Contudo, devido aos muitos afazeres que detinha
na Corte Real, o fundador do Martinho da Arcada arrenda-o em 1784 a um
italiano, Domenico Mignani, que logo o rebaptiza com o nome de “Casa do Café
Italiano”, para, tempos depois, em 1795, passar a “Café do Comércio”
Entre 1795 e 1810 o Café atravessou um
período muito conturbado. Com efeito, lá se conspirou contra a monarquia,
praticaram-se jogos de azar, fizeram-se dívidas, compraram-se favores e até a
honra. Também frequentado por jacobinos – por isso lhe chamavam então o “Café
dos Jacobinos” - o poderoso Intendente-Geral da Polícia de então, Pina Manique,
que ficou conhecido pela sua implacável repressão aos liberais, mandou
encerrá-lo em 1810 por alegadamente ser um centro de conspirações, antro de
jogo e de gente mal-afamada.
Porém, dez anos depois – em 1820 – voltou a
abrir portas, agora com o nome de “Café da Neve”, convertendo-se numa gelataria
famosa. Em 1824 muda de novo de mãos e de nome, desta vez para “Café da Arcada
do Terreiro do Paço”.
3.
MARTINHO BARTOLOMEU RODRIGUES: O PROMOTOR DE DOIS 2 CAFÉS HISTÓRICOS
A história do estabelecimento mudou
definitivamente com a sua aquisição em 1829 por Martinho Bartolomeu Rodrigues –
neto do fundador, Julião Pereira de Castro, já atrás referido - que nele fez obras profundas e o converteu num
dos melhores e mais elegantes cafés de Lisboa, passando a ter o nome de “Café Martinho”.
Este nome foi ainda uma vez mais alterado para o que ainda hoje se mantém, “Café
Martinho da Arcada”, para o distinguir de outro café que, entretanto, o mesmo
empresário abriu em 1845 no, hoje, Largo D. João da Câmara, em frente da
Estação do Rossio, a que chamou apenas “Café Martinho”. Martinho Bartolomeu
Rodrigues teve, assim, a glória de ter sido o empresário destes dois cafés,
ambos na Baixa de Lisboa – de resto, próximos um do outro – que marcaram
significativamente a vida cultural, política e social da cidade.
Graças ao dinamismo do novo empresário, o
Café albergou então tertúlias literárias e artísticas, liberais e progressistas
e, depois, de conspiração republicana contra a monarquia. De resto, se algum
traço de continuidade perdurou ao longo da sua vida até hoje, é o de espaço (e
de espírito) de tertúlias. Com a morte de Martinho Bartolomeu Rodrigues, o Café
passou por um período de instabilidade, até que em 1925 foi comprado por novos
proprietários, que o mantiveram em actividade mais ou menos regular – mas longe
dos tempos áureos antes vividos - até 1988.
4. SEGUNDA
VIDA APÓS O INCÊNDIO NO CHIADO (1988)
O grande incêndio ocorrido em Agosto de 1988
que destruiu a zona mais emblemática de Lisboa – O Chiado – agravado pelo
esquecimento a que entretanto foi votado o Martinho da Arcada no contexto dos
duros anos de reconstrução daquela zona, contribuiu decisivamente para a sua
decadência. Foram anos em que se temeu pela sua sobrevivência, não obstante os
esforços e o empenho da Família Mourão, proprietária do Café, em o manter de
portas abertas.
Mas em 1988 o Café foi adquirido por um
empresário que lhe introduziu profundas obras de recuperação e remodelação, mantendo
no essencial a traça original que fez questão de preservar, tendo reaberto de
cara lavada em 1990.
Com nova vida e o pulsar crescente da cidade,
em particular em toda a Baixa de Lisboa, a que não é alheio o impulso turístico
que aquela zona exponencialmente foi conhecendo, o café recomeçou uma nova vida.
Na verdade, vem de há anos a esta parte sendo frequentado por uma vasta população
de nativos e turistas, sobretudo como lugar de culto de Fernando Pessoa que vem
sendo procurado por gentes de todo o mundo – ou não seja um Poeta plural e
universal.
O café é depositário de um famoso Livro de
Honra, contando testemunhos de ilustres de todo o mundo – escritores,
políticos, intelectuais, artistas, dignitários da Igreja e outros cidadãos que
por alguma razão se celebrizaram. Um dos que ganharam um cantinho especial no Martinho
da Arcada, para além naturalmente de
Fernando Pessoa, foi o escritor português José Saramago, a quem lhe foi feita
uma homenagem e atribuída simbolicamente uma mesa, aquando da assinatura do
Livro de Honra do Café na sequência da atribuição do Prémio Nobel.
O actual proprietário tem visto o seu
trabalho reconhecido nacional e internacionalmente, graças à preservação das
raízes históricas do espaço e à sua dinamização no plano da gastronomia
tradicional portuguesa e da actividade cultural, nomeadamente com a organização
de ciclos de conferências e debates sobre temas de política interna e europeia.
5.
HISTÓRIAS E FIGURAS DO MARTINHO DA ARCADA
Muitas são as histórias que se contam em
redor deste café e do seu ex-libris,
Fernando Pessoa. São, se quisermos, curiosidades que, a um tempo, atestam essa
vivência e dizem muito da importância que o Martinho da Arcada teve em certos
períodos da vida da cidade e até do País. Vejamos algumas:
·
Não é um facto muito conhecido, mas a verdade
é que a Carta Constitucional Portuguesa de 1826 outorgada pelo Rei D. Pedro IV
– que representou o fim do absolutismo e o triunfo do liberalismo em Portugal -
foi redigida no “Café da Arcada do Terreiro do Paço”, antecessor do Martinho da
Arcada.
·
Até 25 de Abril de 1974 e o regresso de
Portugal à democracia, o Martinho da Arcada foi, em diversas épocas, um café particularmente
predestinado para a conspiração: jacobinos, monárquicos, anarquistas, republicanos,
maçons, todos conspiraram naquele espaço histórico.
·
Os amigos de Fernando Pessoa sabiam que ele
tinha um verdadeiro temor de trovoadas. Almada Negreiros, escritor e amigo de Fernando
Pessoa, conta que, encontrando-se com ele à mesa do Martinho da Arcada e tendo
desabado uma tremenda trovoada sobre Lisboa – que ele foi espreitar – quando
regressou, encontrou o Poeta debaixo da mesa “pálido como um defunto
transparente”.
·
O Poeta comia pouco e, sendo muito esquisito
em matéria de alimentação, tinha na sopa Juliana e nos ovos mexidos com queijo dois
dos seus pratos favoritos – que a proprietária, Albertina Mourão, generosamente
lhe mandava fazer com frequência.
·
Fernando Pessoa, numa quarta-feira de Outono,
dia 27 de Novembro de 1935, já fragilizado e doente, toma, com o seu amigo, o já
citado Almada Negreiros, o seu último café no Martinho da Arcada. Dois dias
mais tarde é internado no Hospital de S. Luís dos Franceses, em Lisboa, onde
morre no dia 30 de Novembro desse ano.
·
Nos primeiros anos da ditadura salazarista, o
café tornou-se um ponto de encontro secreto da maçonaria, tanto mais que o
dono, Alfredo Mourão, era o tesoureiro da loja maçónica “Grande Oriente
Lusitano”. Com a lei publicada em 1935 que ordenou a ilegalização e dissolução
das sociedades secretas em Portugal, os membros da maçonaria passaram a reunir
em “triângulo” – ou seja, com apenas três membros – e em locais secretos e
seguros, como cafés ou casas particulares. O Martinho da Arcada foi um deles.
·
Ainda no tempo da ditadura salazarista, o
Martinho da Arcada também chegou a ser usado como local de importantes
encontros de grandes figuras do regime, como foi o caso do Ministro das Obras
Públicas de Salazar, Duarte Pacheco – que revolucionou a rede viária em
Portugal e promoveu a construção de importantes obras públicas - que organizava
reuniões num anexo do café.
·
Seria fastidioso referir as inumeráveis ilustres
figuras nacionais e estrangeiras que passaram pelo Martinho da Arcada.
Refira-se, a título de mera e breve amostragem, Eça de Queirós (um dos maiores
escritores portugueses), Jorge Amado (um dos maiores escritores brasileiros),
Satoshi Tajiri (o criador dos desenhos animados Pokémon) e o antigo chanceler
alemão, Gerhard Schröder.
6. MARTINHO DA ARCADA E O CULTO PESSOANO
Como
se infere do atrás exposto, das muitas figuras ilustres que frequentaram o
Martinho da Arcada, destaca-se obrigatoriamente Fernando Pessoa, nascido em
Lisboa em dia de S. António (o grande santo de Lisboa, em honra do qual se
organizam anualmente grandes Festas Populares ao longo do mês de Junho) a 13 de
Junho de 1888. Figura cimeira da literatura portuguesa e universal, escreveu
muitos dos seus poemas à mesa do Martinho da Arcada. De todos os cafés que
frequentou – dentre os quais se destacam o outro “Café Martinho” e o ainda
vivo, “Brasileira do Chiado”, com a estátua mais fotografada de Lisboa, a do
poeta sentado na sua esplanada – o Martinho da Arcada, sobretudo nos últimos
dez anos da sua vida, foi como que uma segunda casa do Poeta. Utilizava-o como
escritório de fim de tarde, onde espalhava os seus maços de papéis na nessa de
tampo de mármore que ainda hoje se mantém, escrevia e convivia com os amigos
mais íntimos. Muitos dos poemas que integram o seu único livro publicado em
vida, a “Mensagem”, bem como grande parte do fascinante “Livro do Desassossego”,
nasceram no Martinho da Arcada. Após a
morte de sua mãe, em 1925, os últimos anos do poeta foram particularmente penosos
- muito só, atormentado e já com a saúde muito precária. Numa quarta-feira de
Outono, 29 de Novembro de 1935, é internado no Hospital S. Luís dos Franceses,
em Lisboa, onde morre no dia seguinte, em 30 de Novembro, aos 47 anos de idade.
Lisboa,
15 de Janeiro de 2018
José M. Gameiro Lopes
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