Cartografia dos Sentimentos

domingo, 20 de janeiro de 2019



      Nas vésperas do recente Natal, a minha filha mais velha, que vive no Algarve, viajava ao volante do seu automóvel para se juntar à família, em Tomar. Deslocando-se sozinha, trazia o Pepe, cão de raça Yorkshire Terrier, já com 13 anos de idade, deitado no banco do pendura. A poucos quilómetros de Grândola, ao fazer uma festinha na cabeça do animal, notou que ele não deu qualquer sinal de si. Receando o pior desfecho, ensaiou desesperadamente uma manobra de reanimação mas o cão não reagiu. Desviou-se para Grândola e foi à procura de um veterinário, que confirmou a morte do animal, atribuindo-a a um colapso cardíaco.
      Escusado é pintar o quadro de consternação que se apoderou da dona do cão e da profunda tristeza da jovem sua filha quando, em Tomar, já antecipadamente reunida aos avós para o Natal, recebeu a notícia. É nestas alturas que se percebe o potencial de afectos que os animais domésticos representam para os humanos. Dão-se completamente e despertam em nós sentimentos tão sublimes que é caso para se interrogar se não serão mais genuínos e mais profundos do que os que regem normalmente as relações humanas.
      E por que será?
      Talvez porque a natureza humana seja complexa demais para permitir sentimentos lineares e puros de uma forma estável e duradoura. É que entre o homem e o seu semelhante existe sempre uma conflitualidade latente mesmo que se cultivem relações amistosas ou cordiais. Porque estas são muitas vezes mais aparentes que reais, pois escondem os egoísmos, as questões de orgulho, as rivalidades disfarçadas e outras aflorações do carácter que o ser humano tem dificuldade em dominar. Diferentemente, os animais que o homem introduz no seu convívio, em especial o cão e o gato, proporcionam-lhe laços em que não há ambivalência nenhuma. O animal é de uma dedicação, estima e lealdade ao seu dono que não têm paralelo nas relações humanas, donde se pode dizer que a adopção de um animal doméstico funciona como uma compensação para os afectos que o homem sente recalcados em si próprio ou descrê que possa partilhar com a mesma autenticidade com o seu semelhante.  Por isso é que em muitos casos a relação entre o homem e o animal funciona como uma terapia psicológica. 
      Contudo, a tradição filosófica ocidental não estará inclinada a caucionar essa constatação ao separar cartesianamente o ser racional da natureza que lhe é exterior. De facto, para considerar os animais possuidores de sentimentos seria necessário conferir-lhes dignidade, o que equivaleria a opor-se a Kant quando, na sua Fundamentação Metafísica dos Costumes, os classifica como “coisas”, diferenciando-os dos seres humanos, que são “pessoas”. Ou contrariar o racionalista Descartes, que na sua obra Discurso do Método alerta que, “após o erro dos que negam Deus, não há outro que mais afaste os espíritos fracos do caminho recto da virtude que imaginar que a alma dos animais é da mesma natureza que a nossa”. O problema é que a visão antropocêntrica do mundo advém do protagonismo desse mesmo homem que pensa e raciocina e no entanto não se liberta da complexa teia das suas contradições e dos seus conflitos interiores. Esse mesmo ser racional que é capaz de aniquilar sem piedade o seu semelhante e destruir irresponsavelmente o ambiente natural. Porém, abre-se uma janela de arejamento quando os filósofos Theodor W. Adorno e Max Horkeimer postulam uma reforma da razão para a libertar do que a tornou um instrumento de dominação tanto da natureza como do próprio homem e sua racionalidade. A prova de que não é assim tão líquida a separação entre a cultura e a natureza está, por exemplo, no campo da criatividade literária, em que os animais são personagens que representam as comédias e os dramas da vida humana.  
      O Pepe era igual aos da sua raça, nem mais nem menos. Um cão manso, cordial e amistoso mesmo com estranhos, mas que fazia um alarido sempre que sentia a presença de alguém nas escadas ou no elevador do seu prédio. De igual modo, sinalizava a chegada da sua dona ou de pessoas de família, mesmo que estivessem ainda longe do seu alcance visual. À hora das refeições, sentava-se ao pé da mesa a olhar para as pessoas fitando-as, e por vezes empoleirava-se nas pernas apoiando as patinhas nas cadeiras dos donos, como se esperasse por algo apetecível. Apreciava o seu passeio e dava sinal, com pequenos latidos, quando achava que a hora nunca mais chegava. Desafiava as pessoas para a brincadeira correndo atrás da bola que lhe pertencia. Deliciava-se a destroçar uma garrafa de plástico enquanto ia emitindo grunhidos, excitado com o estardalhaço que ia produzindo. Mesmo a dormir, parecia atento aos movimentos, e se alguém se preparava para sair de casa, desaparecia-lhe subitamente a sonolência. E se via então a sua trela na mão dos donos, entrava em grande frenesim, latindo e correndo até à porta, na antevisão de um passeio no exterior. Gostava de saltar para cima dos sofás e se lhe fosse permitido era o seu leito preferido. Era um cãozinho carinhoso, só lhe faltando falar, como é hábito dizer-se dos cães. Mas nos últimos tempos notou-se claramente que foi perdendo vitalidade, passando mais tempo a dormir.
      Fomos enterrar o Pepe no regaço da mãe-natureza, em local isolado, ao lado de um sobreiro. Estava um dia luminoso e os pássaros quebravam o silêncio com o seu chilreio à volta, como se incorporassem um concerto musical dedicado ao fim de um ciclo. É nestas alturas que sentimos um foco redentor para onde afluem todas as retrospectivas, ao mesmo tempo que nos perpassa a sensação de que todos os seres do mundo sensível são possuidores da mesma pulsão vital que é o limiar das capacidades sensoriais e da inteligência racional. É o que nos faz crer que todas as criaturas são iguais na aventura universal.

Tomar, 30 de Dezembro de 2018
Adriano Miranda Lima

  
    

0 comentários:

Enviar um comentário