Nas vésperas do recente Natal, a minha
filha mais velha, que vive no Algarve, viajava ao volante do seu automóvel para
se juntar à família, em Tomar. Deslocando-se sozinha, trazia o Pepe, cão de
raça Yorkshire Terrier, já com 13 anos de idade, deitado no banco do pendura. A
poucos quilómetros de Grândola, ao fazer uma festinha na cabeça do animal,
notou que ele não deu qualquer sinal de si. Receando o pior desfecho, ensaiou
desesperadamente uma manobra de reanimação mas o cão não reagiu. Desviou-se
para Grândola e foi à procura de um veterinário, que confirmou a morte do
animal, atribuindo-a a um colapso cardíaco.
Escusado é pintar o quadro de
consternação que se apoderou da dona do cão e da profunda tristeza da jovem sua
filha quando, em Tomar, já antecipadamente reunida aos avós para o Natal,
recebeu a notícia. É nestas alturas que se percebe o potencial de afectos que
os animais domésticos representam para os humanos. Dão-se completamente e despertam
em nós sentimentos tão sublimes que é caso para se interrogar se não serão mais
genuínos e mais profundos do que os que regem normalmente as relações humanas.
E por que será?
Talvez porque a natureza humana seja
complexa demais para permitir sentimentos lineares e puros de uma forma estável
e duradoura. É que entre o homem e o seu semelhante existe sempre uma
conflitualidade latente mesmo que se cultivem relações amistosas ou cordiais.
Porque estas são muitas vezes mais aparentes que reais, pois escondem os
egoísmos, as questões de orgulho, as rivalidades disfarçadas e outras
aflorações do carácter que o ser humano tem dificuldade em dominar.
Diferentemente, os animais que o homem introduz no seu convívio, em especial o
cão e o gato, proporcionam-lhe laços em que não há ambivalência nenhuma. O
animal é de uma dedicação, estima e lealdade ao seu dono que não têm paralelo
nas relações humanas, donde se pode dizer que a adopção de um animal doméstico
funciona como uma compensação para os afectos que o homem sente recalcados em
si próprio ou descrê que possa partilhar com a mesma autenticidade com o seu
semelhante. Por isso é que em muitos
casos a relação entre o homem e o animal funciona como uma terapia psicológica.
Contudo, a tradição filosófica ocidental
não estará inclinada a caucionar essa constatação ao separar cartesianamente o
ser racional da natureza que lhe é exterior. De facto, para considerar os
animais possuidores de sentimentos seria necessário conferir-lhes dignidade, o
que equivaleria a opor-se a Kant quando, na sua Fundamentação Metafísica dos
Costumes, os classifica como “coisas”, diferenciando-os dos seres humanos, que
são “pessoas”. Ou contrariar o racionalista Descartes, que na sua obra Discurso
do Método alerta que, “após o erro dos que negam Deus, não há outro que mais
afaste os espíritos fracos do caminho recto da virtude que imaginar que a alma
dos animais é da mesma natureza que a nossa”. O problema é que a visão antropocêntrica
do mundo advém do protagonismo desse mesmo homem que pensa e raciocina e no
entanto não se liberta da complexa teia das suas contradições e dos seus
conflitos interiores. Esse mesmo ser racional que é capaz de aniquilar sem
piedade o seu semelhante e destruir irresponsavelmente o ambiente natural.
Porém, abre-se uma janela de arejamento quando os filósofos Theodor W. Adorno e
Max Horkeimer postulam uma reforma da razão para a libertar do que a tornou um
instrumento de dominação tanto da natureza como do próprio homem e sua
racionalidade. A prova de que não é assim tão líquida a separação entre a
cultura e a natureza está, por exemplo, no campo da criatividade literária, em
que os animais são personagens que representam as comédias e os dramas da vida
humana.
O Pepe era igual aos da sua raça, nem
mais nem menos. Um cão manso, cordial e amistoso mesmo com estranhos, mas que
fazia um alarido sempre que sentia a presença de alguém nas escadas ou no
elevador do seu prédio. De igual modo, sinalizava a chegada da sua dona ou de
pessoas de família, mesmo que estivessem ainda longe do seu alcance visual. À
hora das refeições, sentava-se ao pé da mesa a olhar para as pessoas
fitando-as, e por vezes empoleirava-se nas pernas apoiando as patinhas nas
cadeiras dos donos, como se esperasse por algo apetecível. Apreciava o seu
passeio e dava sinal, com pequenos latidos, quando achava que a hora nunca mais
chegava. Desafiava as pessoas para a brincadeira correndo atrás da bola que lhe
pertencia. Deliciava-se a destroçar uma garrafa de plástico enquanto ia emitindo
grunhidos, excitado com o estardalhaço que ia produzindo. Mesmo a dormir,
parecia atento aos movimentos, e se alguém se preparava para sair de casa,
desaparecia-lhe subitamente a sonolência. E se via então a sua trela na mão dos
donos, entrava em grande frenesim, latindo e correndo até à porta, na antevisão
de um passeio no exterior. Gostava de saltar para cima dos sofás e se lhe fosse
permitido era o seu leito preferido. Era um cãozinho carinhoso, só lhe faltando
falar, como é hábito dizer-se dos cães. Mas nos últimos tempos notou-se claramente
que foi perdendo vitalidade, passando mais tempo a dormir.
Fomos enterrar o Pepe no regaço da
mãe-natureza, em local isolado, ao lado de um sobreiro. Estava um dia luminoso
e os pássaros quebravam o silêncio com o seu chilreio à volta, como se
incorporassem um concerto musical dedicado ao fim de um ciclo. É nestas alturas
que sentimos um foco redentor para onde afluem todas as retrospectivas, ao
mesmo tempo que nos perpassa a sensação de que todos os seres do mundo sensível
são possuidores da mesma pulsão vital que é o limiar das capacidades sensoriais
e da inteligência racional. É o que nos faz crer que todas as criaturas são
iguais na aventura universal.
Tomar,
30 de Dezembro de 2018
Adriano
Miranda Lima
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