Deus, Fernando Pessoa
ou McLuhan: cuidado com as citações
Por Nuno Pacheco*
Se o texto apócrifo é uma praga antiga, como se recordou aqui
há uma semana, a citação abusiva não o é menos. Há criaturas que, para
justificarem uma tese ou tornarem credível um texto, recorrem a frases alheias,
muitas célebres e já feitas cliché, venham elas de Platão ou Churchill, Pessoa
ou Lacan, Homero ou Lincoln. Citar substitui a leitura, tal como a vaga ideia
substitui o pensamento. Há vários livros e sites de citações, e deles não vem
mal ao mundo; mas já o seu uso leviano ou acéfalo é, pelo contrário, coisa a
evitar. Se há palava usada e abusada, é esta: a de Deus. Não falta quem se
arrogue a invocá-lo para justificar tudo, mesmo as ideias mais pérfidas ou os
actos mais criminosos. E esta “cegueira” começa por ser exaltação. No Brasil,
um deputado conhecido como Pastor Sargento Isidório apresentou, na primeira
sessão legislativa da era Bolsonaro, um projecto de lei para tornar a Bíblia
“património nacional, cultural e imaterial do Brasil e da Humanidade”.
Corresponde, por alto, a decretar que a água é líquida ou que uma esfera é
redonda, já que a Bíblia não precisa de leis para se tornar património
universal. Mas Isidório, ex-militar que diz ter curado a sua homossexualidade
com “a palavra de Deus” (pena que não tenha curado o que o levou a tal afirmação),
quis chamar a si a profética tarefa. Ora num congresso onde as facções
dominantes já são conhecidas por “BBB” (Bíblia, Boi e Bala), imagina-se o
efeito disto. Sobre a Bíblia há um interessante texto de Frei Bento Domingues,
no PÚBLICO, em 2016, intitulado “Não invocar o nome de Deus em vão”. Escreveu
ele: “Nunca temos acesso à ‘Palavra de Deus’ de modo imediato. Estritamente
falando, a Bíblia não é a Palavra de Deus, mas um conjunto de testemunhos de fé
de crentes que se situam numa tradição particular da experiência religiosa.” O
pior, fora dessa experiência, é que muitos dela se apropriam no sentido mais
vil. E o que deveria ser inspiração benigna passa a justificação de tormentos.
Noutro campo, há entre as simplificações do pensamento uma particularmente
irritante: o abuso de Fernando Pessoa na já estafada frase “A minha pátria é a
língua portuguesa” ou até, neste caso mal citado: “A minha pátria é a minha
língua.” O que escreveu Pessoa, a coberto do seu heterónimo Bernardo Soares, no
Livro do Desassossego? Na íntegra, e na ortografia original, anterior à grafia
oficial decretada em 1911, escreveu isto (corresponde aos 2 últimos parágrafos,
de 5, do trecho 259): “Não tenho sentimento nenhum politico ou social. Tenho,
porém, num sentido, um alto sentimento patriotico. Minha patria é a lingua
portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não
me incommodassem pessoalmente, Mas odeio, com odio verdadeiro, com o unico odio
que sinto, não quem escreve mal portuguez, não quem não sabe syntaxe, não quem
escreve em orthographia simplificada, mas a pagina mal escripta, como pessoa
própria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem
ípsilon, como escarro directo que me enoja independentemente de quem o
cuspisse. Sim, porque a orthographia também é gente. A palavra é completa vista
e ouvida. E a gala da transliteração grecoromana veste-m’a do seu vero manto
régio, pelo qual é senhora e rainha.” É bem menos cómodo e romântico do que a
frase tirada do seu contexto, não é verdade? Por último, uma cena de um filme
que é um achado. Woody Allen, no seu Annie Hall (1977), inventa um diálogo que
põe em causa o abuso do pensamento de outrem. Na fila de um cinema, o personagem
que ele interpreta (Alvy Singer) ouve alguém atrás de si (o actor Russel
Horton) dizer para a namorada: “O Marshall McLuhan trata a questão em termos de
alta intensidade. Estás a perceber? Um medium quente...” Allen diz que ele não
faz a mínima ideia do que diz MacLuhan, mas Horton defende-se: “Ai é? Por acaso
até dou uma cadeira em Columbia sobre TV, Media e Cultura. E acho que as minhas
ideias sobre o sr. McLuhan têm imensa validade.” Allen riposta: “Ai acha? Calha
bem, porque tenho aqui o sr. McLuhan.” E Marshall McLuhan, o próprio, surge em
cena e diz: “Ouvi o que disse. Não sabe nada do meu trabalho. (...) É espantoso
que o deixem dar uma cadeira do que quer que seja.” É nesse momento que Woody
Allen, na pele de Alvy Singer, se vira para os espectadores e diz: “Se a vida
fosse assim...” Infelizmente não é.
*Jornalista. In “Público” de 14.02.2019
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