Foi
publicado no “Jornal de Letras” nº 1259 (de 2 a 15 de Janeiro de 2019) um
Caderno intitulado “Fake News - A Verdade da Mentira” com uma série de artigos
de especialistas da área da comunicação. Desses artigos escolhemos um, que, com a devida vénia, a seguir transcrevemos, cuja
abordagem nos parece interessante por “refutar” a existência das chamadas “notícias
falsas”.
Por DORA SANTOS SILVA*
No dia
22 de Novembro de 2018, o Diário de
Notícias relatava a “volta ao mundo” de uma fotografia verdadeira que se
tinha tornado uma mentira. Era verdadeira, porque mostrava uma mulher
sem-abrigo a dormir com uma criança na rua pedonal de Sainte Catherine, em
Bordéus. A mentira começou, porém, no momento em que pessoas de todo o mundo se
apropriaram daquela fotografia e lhe deram um novo contexto nas suas redes
sociais, consoante a mensagem que queriam partilhar: irlandeses usaram-na para
denunciar a situação dos sem-abrigo daquele país; ingleses aproveitaram-na como
mote para disseminar ideias xenófobas. Notícias falsas? Não.
A
descontextualização de imagens não surgiu em ambiente digital e muito menos com
as redes sociais. Está na publicidade, na educação, no quotidiano, nas relações
sociais e também no jornalismo. Surpreendemo-nos com a própria surpresa de
turistas que chegam a Portugal e não vêem as velhinhas de preto adornadas com
bigode a passear na Avenida da Liberdade. Associamos o continente africano
somente a violência e a crianças em sofrimento, porque foram essas as imagens
que percorremos nos livros de História do ensino secundário. Vemos, vezes sem
conta, os mesmos planos de enquadramento nos noticiários televisivos para
representar a época natalícia ou uma fotografia que facilmente se vê ser dos
Alpes Suíços para anunciar um nevão na Serra da Estrela. Notícias falsas? Não.
Esta é
a própria essência da imagem enquanto representação do mundo ou enquanto
cultura de simulacros e simulações, como diria Jean Baudrillard. O problema
começa quando a imagem constrói uma realidade muito diferente da que existe,
contribuindo para a percepção de um mundo ficcional. Notícia falsa? Não.
Tal
como as imagens, a informação que os media veiculam também constrói um mundo
que pode ser mais ou menos aproximado da realidade (basta confirmar a diferença
entre o alinhamento editorial de um meio de comunicação social dito
sensacionalista ou de outro dito de referência). E, por isso mesmo, por esta
responsabilidade tão grande de construir o mundo percepcionado pela população,
os jornalistas encetaram um compromisso há pouco mais de 200 anos com o próprio
mundo: guiarem-se pela verdade, pela transparência e pela objectividade (na
medida do possível). E esse elo de confiança – a sua representação – foi
apelidado de notícia. Notícia falsa? Um paradoxo.
Qualquer
pessoa pode usar imagens, vídeos e palavras para representar um mundo que não
existe, na ficção, na publicidade, na imaginação… O problema começa quando essa
representação ganha o apelido que por várias gerações esteve ligado a
confiança, transparência e verdade: o apelido de notícia. É por isso um
paradoxo a utilização da própria expressão “notícia falsa”, cuja disseminação
só aumenta a percepção errada de que as notícias podem ser falsas e de que o
jornalismo quebrou a confiança com os seus utilizadores.
A
Comissão Europeia insiste, e muito bem, no uso do termo “desinformação”
(misinformation no original) para designar qualquer informação falsa ou
incorrecta disseminada com ou sem intenção. É um termo muito mais apropriado ao
que se passa, ao mesmo tempo que protege o legado da palavra “notícia”. E, se
pensarmos bem, não foi com notícias falsas que Trump ou Bolsonaro foram
eleitos; não foi com notícias falsas que as campanhas de comunicação negras
mais célebres arruinaram uma marca ou personalidade. Foi, sim, com
desinformação.
As
mentiras mais eficazes baseiam-se, de certa forma, numa potencial verdade.
Investigadores da Universidade de Yale concluíram num estudo publicado em 2018
que basta uma exposição a uma “notícia falsa”, ou, melhor, à desinformação para
criar uma verdade “ilusória”. O ingrediente é ter um certo grau de
plausibilidade e verdade ou a capacidade de legitimar as nossas crenças,
preconceitos e histórias de vilões e heróis com as quais crescemos.
A
fotografia da mulher sem-abrigo a dormir na rua de Bordéus não é falsa – nem
“deepfake”. Mas a sua reapropriação com diversas intenções – boas ou más – é,
sim, um caso de desinformação. As imagens escolhidas para representar diversas
realidades nos manuais de ensino não são falsas; poderão sim, ser fruto da
própria ignorância de quem as escolheu. Os planos de enquadramento utilizados
vezes sem conta pelos jornalistas para representar uma realidade não são
“notícias falsas”, mas acabam por ser um caso de desinformação na maioria das
vezes sem repercussões negativas (embora o seu uso exagerado e aleatório também
contribua para meter os jornalistas nesta parada).
Os
diversos casos de desinformação grave (infelizmente, muitos) da responsabilidade
dos jornalistas são fruto de pressões, incompetência e má formação, mas não
podem ser equiparados aos milhares de bots
que actuam nas redes sociais com intenções precisas ou dos humanos que nos
vendem “gato por lebre”. São igualmente graves, claro – ainda mais, porque
quebram a confiança que neles depositamos -, mas devem ser resolvidos noutra
arena.
O
poder de moldar a forma como vemos o mundo ou, pelo menos, de criar a vertigem
diária do sentimento “isto pode ser assim” ou “eu podia ser assim” era usado
desde sempre por poucos; hoje por qualquer um com boas ou más intenções, com
falsidades ou factos alternativos, com verdade ou pós-verdade. Mas, por
enquanto, tirem as “notícias” desta equação.
*In
Jornal de Letras – Professora do departamento de Ciências da Comunicação da
Universidade Nova de Lisboa, com especialização em media digitais.
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