A língua portuguesa resiste bem, mas urge acabar com o estado a que ela chegou

quinta-feira, 30 de abril de 2020


Mais um bom contributo e tributo à nossa Língua comum com muito interesse para a compreensão da questão do malfadado Acordo Ortográfico. Aliás, este texto está na linha daquilo a que já nos habituou o seu autor Nuno Pacheco a quem, com a devida vénia, peço autorização para aqui o transcrever. 





Nuno Pacheco*
Mesmo confinados, não nos faltam datas para comemorar. Primeiro foi a Páscoa, depois o 25 de Abril, amanhã será o 1.º de Maio, domingo o Dia da Mãe e na próxima terça-feira, dia 5, o Dia Mundial da Língua Portuguesa, essa outra mãe que nos calhou. Como de costume, vão tecer-se louvores ao Camões (não a Luís Vaz, mas àquele que despudoradamente usa o seu nome), brandir-se mapas e números, organizar-se saraus e discursos, agora forçosamente virtuais.
Mas nada disso pode ocultar algo que não é propriamente penúria, até porque a língua vai resistindo a tudo (fome, privações, maus tratos) e há por aí muita gente de todas as idades a falá-la e a escrevê-la com conhecimento, criatividade e brio; mas é um estado de ignorância e desleixo, muito pouco saudável, que a vai apoucando e corroendo até roçar o analfabetismo.
Nos mais diferentes meios (jornais, revistas, televisão, livros, Internet), a aplicação acéfala do chamado Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (AO90) continua a dar coisas como (e todas elas estão documentadas, com origens e datas) “artefatos” por artefactos, “estupefato” por estupefacto, “impato” por impacto, “impatante” por impactante, “pato” por pacto, “ojetivo” por objectivo, “corruto” por corrupto, “convição” por convicção, “execto”, “excepo” e “exeto” por excepto, “exeção” ou “excessão” por excepção, “inteletual” por intelectual (a mais recente prova desta imbecilidade foi estampada no oficialíssimo Diário da República n.º 72/2020, Série II de 13/4/2020, no Aviso n.º 6075/2020), para já não falar na aplicação a Portugal, contra as indicações do próprio AO90, da norma escrita brasileira, escrevendo-se e até dizendo-se “fato” por facto, “contato” por contacto, “seção” por secção ou “conosco” por connosco, isto, apesar de a rubrica Bom Português da RTP garantir que é “connosco” que se escreve em Portugal.
Se bem se lembram, o AO90 gabava-se de conseguir “unificar ortograficamente cerca de 98% do vocabulário geral da língua”, segundo a nota explicativa que o acompanhava. Só que tal frase ignorava um pequeno pormenor: mesmo que fosse possível unificá-lo graficamente, o vocabulário difere no uso e no sentido não só em Portugal e no Brasil (onde as diferenças são enormes), mas também nos países que começaram a moldar a língua ao seu jeito. Se a unificação ortográfica é, já de si, uma quimera retrógrada — porque línguas como o inglês, o francês ou o espanhol admitem tantas variantes ortográficas nacionais quantos os países que as usam —, a unificação vocabular é uma tolice sem nexo. Nisto, o brasileiro Evanildo Bechara, um dos bonzos do AO90, foi claro, numa entrevista que deu ao Expresso em 2012. Disse ele: “Não tem sentido uniformizarmos o vocabulário comum e os portugueses chamarem à capital da Rússia Moscovo e o Brasil chamar Moscou.” Mas chamam e escrevem, ainda hoje. Ao mesmo tempo, Bechara disse este disparate: “Em qualquer área em que seja usada, tanto no Brasil, como em Portugal ou na África, a língua portuguesa será grafada de uma só maneira. Isso significa que um livro editado em português pode correr todos esses países, porque a ortografia é a mesma.”
“Podíamos estar a celebrar oito variantes ortográficas, mas em vez disso somamos erros”
Não, não é a mesma, há o facto-fato, bebé-bebê, contacto-contato, amnistia-anistia, secção-seção, libertar-liberar, casino-cassino, registo-registro, planear-planejar, além das mil e uma palavras que no Brasil e em Portugal querem dizer coisas diferentes. Isso chama-se evolução. A língua foi crescendo e modificando-se consoante a cultura dos seus utilizadores. Ora isto, em lugar de ser usado como trunfo e sinal de riqueza, é aplainado por um capricho retrógrado e infame. Sim, podíamos estar a celebrar o facto, historicamente merecido, de termos neste Dia Mundial da Língua Portuguesa oito variantes vocabulares e ortográficas, que juntas fariam ainda mais forte o idioma no seu todo. Porém, na miséria que nos coube, vamos passar esse dia a ouvir discursos inflamados e a ler novos erros fomentados por um acordo que se transformou numa descabelada caça às consoantes. Seguindo a sugestão de “escrever como se fala”, ainda iremos ler “runiões”, “tamos”, “competividade”, “óvio”, “curdenação”, “mnistro” ou “custume”. É só esperar.
Na madrugada do 25 de Abril de 1974 houve um discurso decisivo para conquistar as tropas em Santarém. Foi feito por Salgueiro Maia e ele resumiu-o assim no seu livro Capitão de Abril (Editorial Notícias, 1997, pág. 87): “Declarei que havia várias modalidades de Estados: os liberais, os sociais-democratas, os socialistas, etc., mas nenhum pior do que o Estado a que chegáramos, pelo que urgia acabar com ele.” Pois também na língua portuguesa, espalhada por vários Estados e neles enraizada, há o estado indecoroso a que chegámos. Acabemos com ele.
Aliás, há um precedente vindo de dentro. Quando se acede ao Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP) e se tenta entrar no dito Vocabulário Ortográfico Comum (VOC), recebe-se esta mensagem de alarme: “Este site não é seguro. Isto poderá significar que alguém está a tentar enganá-lo ou a roubar qualquer informação que envie para o servidor. Deve fechar este site imediatamente.”
É isso, fechem-no. E festejemos a rica diversidade desta língua que nos é comum.

*Jornalista. Escreve à quinta-feira nuno.pacheco@publico.pt (30.04.2020)

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