sexta-feira, 3 de março de 2023

 

Por ter achado oportuna e bem fundamentada - neste Editorial de Humberto Cardoso do Jornal «Expresso das Ilhas» - a temática sobre as Línguas de Cabo Verde, aqui se publica para o Leitor , na parte que interessa.

 

 

Desafiar mitos para se chegar a um futuro democrático[i]

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Sem conhecimento integral da real história do país, recursos que podiam ser capitalizados para o desenvolvimento não são reconhecidos, alertas quanto aos percalços de desenvolvimento num país pequeno e arquipelágico não são escutados e conflitos artificiais podem ser criados. Neste particular, o conflito que se instalou entre o crioulo e a língua portuguesa é o exemplo de como às enormes dificuldades de um país como Cabo Verde se pode somar artificialmente mais um entrave ao seu desenvolvimento. Todos os cabo-verdianos falam o crioulo e pelo seu uso em cerimónias oficiais e momentos solenes pelo presidente da república, pelo governo e pelos deputados vê-se que não é ameaçada nem ostracizada.

A cabo-verdianidade, porém, não é expressa somente em crioulo como comprova todo o espólio literário que foi instrumental para a emergência da consciência da nação e que na sua quase totalidade resulta do uso criativo do português. Se conflito existencial entre as duas línguas não se verificava antes, não se compreende que quase cinquenta anos depois e com toda a gente a falar crioulo o presidente da república se sinta na necessidade de declarar que “N ta ben sta na linha di frénti di konbáti pa ofsializason plénu di nos Kriolu”. O posicionamento do PR levanta uma série de questões. Para começar no sistema constitucional cabo-verdiano só os deputados têm iniciativa em matéria de revisão constitucional. Sendo representante da unidade da nação e guardião da Constituição vigente não se vê como é que o PR vai ser parte no debate público e proceder para influenciar deputados que também representam os partidos no parlamento. Por outro lado, se houver revisão constitucional e qualquer que for a direcção tomada pelo legislador constituinte o PR não pode recusar a promulgação das leis de revisão (Artº 291 da CRCV).

De facto, nas circunstâncias e nos termos em que se referiu, o posicionamento do PR foi desnecessário: o crioulo só ainda não é oficial porque não se consensualizou uma versão estandardizada e escrita e desde de 1999 que há um comando constitucional a obrigar o Estado a criar as condições nesse sentido. Também foi pernicioso porque, pela linguagem utilizada, alimenta-se a conflitualidade linguística com consequência para disposição dos alunos em aprender o português e serem proficientes na língua oficial do país enquanto cidadãos plenos. Uma conflitualidade que não se pode negar considerando a hostilidade dirigida por certos sectores contra a Escola Portuguesa de Cabo Verde porque procura fazer o óbvio que é criar um meio imersivo para mais rápida aprendizagem da língua e suprir o facto que praticamente fora da escola só se fala o crioulo.

Neste início do segundo ano da guerra na Ucrânia, em que incertezas e imprevistos toldam a imagem do que pode vir à frente, o foco devia estar em conduzir o país com base segura, sem realidades ficcionadas, e pôr a democracia a funcionar de forma a encontrar soluções duradoiras para os problemas de desenvolvimento. Humildade, competência e procura da verdade deviam caracterizar a actuação dos actores de forma a se diminuir os conflitos e, com confiança e solidariedade se enfrentar os grandes desafios que o país tem para frente.



[i] Humberto Cardoso in “Expresso das Ilhas” Nº 1109 de 1 de Março de 2023 (Editorial)

 

2 comentários:

José Fortes Lopes disse...

Este editorial é muito forte, um autêntico aviso à navegação. Também recomendaria a entrevista da Fátima Monteiro no mesmo jornal "Em Cabo Verde a governação é pobre
porque não é enriquecida pelo conhecimento da sociedade civil"

Adriano Lima disse...

Ainda bem que há jornalistas atentos à realidade e conscientes de que a conflitualidade linguística criada em Cabo Verde desde a independência só pode concorrer para entravar o progresso e desenvolvimento social do país. Esta intervenção do Presidente da República sem dúvida que é inoportuna e desastrada, o que é estranho naquele que é dos mais experientes políticos cabo-verdianos.

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