Daniel dos Santos: “É uma figura a respeitar, mas não com a dimensão que se fala”
Entrevista
conduzida por Jorge Montezinho[i]
Muito
mito, pouco rigor. Nestes 100 anos do nascimento de Amílcar Cabral, podemos
resumir assim as palavras do politólogo, professor universitário e um dos
poucos cabo-verdianos que escreveu sobre o antigo líder do PAIGC [Amílcar
Cabral – Um Outro Olhar]. Por outro lado, defende, trazer para a
contemporaneidade as ideias de Cabral não faz qualquer sentido.
Amílcar Cabral nasceu há
100 anos. Figura marcante da luta pela independência e do nacionalismo
guineense e cabo-verdiano, o fundador do PAIGC acabou assassinado por elementos
do próprio partido e passou a ter o estatuto de lenda, com o mito a confundir-se
com a realidade e muitas vezes a ultrapassá-la.
“O sistema de ensino foi a principal vítima
dos 15 anos do Partido Unico em Cabo Verde”, diz ao Expresso das Ilhas Daniel
dos Santos. “Por isso, é natural que as academias, a elite nova e pensante,
escreva num tom panegírico. Isto só mostra a qualidade das elites que temos”.
“O sistema de ensino
daquele tempo ainda vigora no nosso sistema de ensino”, continua o professor
universitário. “Não se fala da democracia, mas fala-se da independência, dos
heróis da independência. Os heróis da democracia são, pura e simplesmente, marginalizados
e ignorados pela historiografia cabo-verdiana da actualidade. Eu acho que se
deve discutir Cabral, se deve celebrar Cabral, mas sem colocá-lo no patamar que
ele não tem”.
A academia engajada
Entre 1963 e 2020 foram
publicados 450 trabalhos científicos sobre Cabral – do Egipto à Suécia, da
Austrália ao Japão. E em Cabo Verde?
“Em Cabo Verde,
praticamente, não existem. Eu não os conheço”, assegura Daniel dos Santos. “O
que há são pequenos artigos publicados, aqui e ali, em revistas, mas em
revistas da Fundação Amílcar Cabral, da Uni-CV, mais nada. A forma como se
fazem esses trabalhos pode não atrair muitos investigadores. Quando um
investigador estrangeiro vem a Cabo Verde, por exemplo, dá-se-lhe balizas:
contacta esta pessoa, não contactes estas. Não é esta a perspectiva de isenção
que se quer ao abordar estudos sobre Amílcar Cabral”.
Esta idolatria da
academia sobre a figura, segundo o politólogo, retira discernimento,
distanciamento e, acima de tudo, credibilidade científica. “Quando leio artigos
de académicos, de historiadores, que passam por cima de acontecimentos que não
abonam a favor de Amílcar Cabral, ignoram-nos pura e simplesmente. Quem perde é
a ciência. Quem perde é a história. Mas insistem porque são assalariados da
Fundação Amílcar Cabral”.
“Toda a gente conhece
esses investigadores. São pagos, têm bolsas. Se não são bolsas da Fundação
Amílcar Cabral, são de outras organizações. Dinheiro não lhes falta”, refere.
“As universidades devem demarcar-se das
orientações que recebem dos políticos, da Fundação Amílcar Cabral e do próprio
PAICV, para, de vez, abraçarem uma investigação séria que retrate Amílcar
Cabral tal como ele é. Um homem com virtudes, sim, com defeitos, sim, sem o
maltratar e colocando-o no lugar da história que ele conquistou por mérito
próprio e com a própria vida. Não é fazendo propaganda panegírica e
canonizando-o por todos os lados e em todos os sítios que se resolve esse
problema”.
A ideologia cabralista
É quando se quer
contextualizar Amílcar Cabral que, entende Daniel dos Santos, começam as
dificuldades. As ideias de Cabral não são aplicáveis actualmente em Cabo Verde
e segundo o académico, pouco ou nada se aproveita do pensamento de Amílcar
Cabral. “O regime político que foi implantado em Cabo Verde no período
pós-colonial, é um regime que saiu da cabeça de Amílcar Cabral. E basta lermos
a última mensagem que ele endereçou aos povos da Guiné e de Cabo Verde, em que
ele desenhava um esboço do Estado a implantar em Cabo Verde e na Guiné com a
independência: um regime de partido único, à frente do qual deveriam estar os
melhores filhos da Guiné e de Cabo Verde. Uma ditadura”. “Cabral tinha um
projeto libertador? Certo! Mas para libertar o quê? Para libertar quem? Cabo
Verde não foi libertado pela Guerra da Independência na Guiné. Quem libertou
Cabo Verde foi o Movimento dos Capitães de Abril. Isto é indiscutível. Só que
depois entregaram Cabo Verde ao PAIGC que instituiu um regime da mesma igualha
que o Estado Novo”, afirma o docente universitário.
“O PAIGC limitou-se a
substituir um partido único português por um partido único autóctone. Sei que
isto é o que muita gente não quer ouvir, não quer mostrar, mas é verdade. Não
estou a inventar rigorosamente nada”.
“Hoje, Cabo Verde é um
país que está nos antípodas do pensamento político de Amílcar Cabral. É um país
democrático, que não tem nada a ver com o regime político pensado por Amílcar
Cabral”, reitera Daniel dos Santos.
A luta começa
A insurreição armada nos
PALOP inicia-se em Angola, em 1961, com a formação de três movimentos de
libertação – FNLA, MPLA e UNITA –, estende-se à Guiné-Bissau com o PAIGC e a
Moçambique com a FRELIMO.
A estas insurreições
armadas, Salazar respondeu com a deslocação de milhares de soldados para as
colónias, o que provocou o isolamento português a nível internacional e uma
crescente oposição interna contra a guerra colonial, que vem culminar com a
queda da ditadura no dia 25 de Abril de 1974.
Amílcar Cabral explicou a
ideologia que o guiava a um grupo de intelectuais, em Londres, em 1971: “nós
acreditamos que uma luta como a nossa é impossível sem ideologia. (...) Partir
das realidades do nosso próprio país para a criação de uma ideologia para a
luta não implica que se pretenda ser um Marx ou um Lenine, ou qualquer outro
grande ideólogo, mas é simplesmente uma parte necessária da luta. Confesso que
não conhecíamos suficientemente bem estes teóricos quando começámos. Nós não os
conhecíamos nem metade do que os conhecemos agora! Nós tivemos necessidade de
conhecê-los, como disse, a fim de julgarmos em que medida podíamos aproveitar a
sua experiência para ajudar a nossa situação – mas não necessariamente para
aplicar a ideologia cegamente, só por que ela é uma ideologia muito boa. Este é
o nosso ponto de vista. Mas a ideologia é importante na Guiné. (...) Não
queremos que o nosso povo seja mais explorado. O nosso desejo de desenvolver o
nosso país com justiça social e com o poder nas mãos do povo é a nossa base
ideológica. Nunca mais queremos ver um grupo ou uma classe de pessoas explorar
ou dominar o trabalho do nosso povo. Esta é a nossa base. Se se quiser chamar a
isso marxismo, chame-se marxismo”.
Um humanista radical?
Não!
Recentemente, Portugal
tem sido o país de onde parte a maior parte da efabulação à volta de Amílcar
Cabral: quando um colóquio de académicos que decorreu em Lisboa, no ano
passado, recuperou os obituários dos jornais internacionais após o assassinato,
os adjectivos sucederam-se – o pacifista que teve de pegar em armas, o rebelde
gentil, o diplomata combatente, o guerrilheiro moderado. Segundo Daniel dos
Santos, estão aqui vários exemplos do branqueamento da imagem do antigo líder
do PAIGC.
“Amílcar Cabral
pacifista? Não foi. Humanista? Não foi. Obrigado a responder à violência
colonialista com a violência revolucionária? Não foi”, sublinha o politólogo.
“Acho que a melhor via para Amílcar Cabral sobreviver, inclusive ao próprio
partido que fundou, era ter apostado na diplomacia, na propaganda, para lutar
contra o colonialismo português na Guiné. Houve guineenses, como Eliseu Turpin,
uma das figuras importantes do nacionalismo guineense, e um dos putativos seis
fundadores do PAIGC em 56, que nunca quis ir a Conakry participar na luta
armada. O Rafael Barbosa também não foi. São pessoas que não acreditaram na via
armada para a libertação da Guiné”.
“Cabral é um pequeno
burguês revolucionário, que apostou na violência como resposta ao regime
colonial, porque o colonialismo é em si um estado de violência permanente. Mas
mesmo depois da morte de Cabral violência não acabou na Guiné”, diz Daniel dos
Santos.
“Amílcar Cabral tinha um
discurso violento. Quando Lumumba foi assassinado, Amílcar Cabral escreveu um
texto [pode ser consultado na página da Fundação Mário Soares – www.casacomum.
org]. Em que ele escrevia que era um traidor e que merecia ser morto todo o
guineense ou cabo-verdiano que dissesse que era português”, reforça o professor
universitário.
“Veja-se também as séries
de execuções que se registaram na Guiné. A cultura de fuzilamento que o próprio
Cabral introduziu no PAIGC, como técnica de resolver problemas políticos.
Portanto, acho que podemos apresentar Cabral, como um combatente anti-imperialista,
um anticolonialista, um diplomata exímio, um grande propagandista, mas não um
pacifista”, afirma o académico.
Guiné vs Cabo
Verde
Idolatrado em Cabo Verde,
quase esquecido na Guiné, onde a fotografia saiu das notas e o nome abandonou a
toponímia. Para visitar o mausoléu, na fortaleza José de Amura, em Bissau, é
preciso pedir autorização aos militares.
“Em Cabo Verde, a aura do
Amílcar Cabral ficou. Nas escolas primárias, nas escolas secundárias, na
comunicação social”, explica Daniel dos Santos. “Mas, Amílcar Cabral não é uma
figura do Estado, é uma figura partidária. A Fundação Amílcar Cabral e o PAICV
têm muita dificuldade em lidar com essa verdade”.
“Os efeitos da acção do
PAIGC e de Amílcar Cabral na Guiné foram mais no âmbito militar do que
político. Em Cabo Verde são meramente políticos. A população não sofreu tanto
fisicamente como sofreu na Guiné. Isto acaba por explicar alguma coisa que seja
muito diferente do caso da Guiné e do caso do Cabo Verde. São processos
históricos completamente diferentes”.
“Em Cabo Verde não houve
violência, não houve luta armada. Na Guiné houve”, continua o professor
universitário. “Quais são os efeitos desta guerra na consciência do guineense?
E os das atrocidades que o PAIGC cometeu? De 1974 a 1980, cerca de 500 guineenses
foram torturados e assassinados a sangue-frio, sem julgamento”.
“Mesmo em Cabo Verde”,
diz o politólogo, “sou professor, lido com os jovens. Os jovens não querem
saber do Amílcar Cabral. Os jovens querem ver os seus problemas resolvidos.
Sim, dizem que é um herói. Mas isso é mais o resultado da grande intensidade propagandista
que foi levada a cabo nas escolas”.
“Amílcar Cabral é uma
figura a respeitar, mas não é com a dimensão que se fala”, conclui Daniel dos
Santos. “No fim, Amílcar Cabral não passa de um homem, de um político, que foi
amado e que foi odiado”.
1 comentários:
O professor Daniel dos Santos diz aqui verdades que alguns (com o tempo serão cada vez menos) jamais reconhecerão e que a sociedade cabo-verdiana, dum modo geral, encara com indiferença ou acriticismo - aquele entorpecimento mental que não favorece a construção de uma sociedade consciente e pró-activa. O entrevistado diz, e muito bem, que o ensino e certa comunicação social foram responsáveis pela mitificação da figura de Amílcar Cabral, um líder partidário e não uma figura nacional unanimamente reconhecida. O problema é que tarda a reposição pública da verdade, isto é, julgar os factos e os personagens com o rigor que a história exige.
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