O Fim da História ou a História do Fim

terça-feira, 25 de março de 2025

 

Nestes tempos inquietantes que o mundo está a atravessar, o pensamento voga como pluma perdida no ar e as dúvidas acastelam-se na consciência de quem ainda a conserva intacta. À excepção da crise dos mísseis de Cuba em 1962, desde que me conheço não me lembro de o espectro da guerra e do conflito assombrar os espíritos com tanta cupidez como agora. No momento em que escrevo, Israel, um país de cultura ocidental, não hesitou em dizimar centenas de civis palestinianos só para eliminar um ou outro elemento do Hamas. Ao mesmo tempo, a Rússia de Putin não hesita em bombardear áreas habitadas por civis e matar pessoas inocentes.

“O fim da história ou a história do fim”, em título, conduz-nos à teoria de Francis Fukuyama exposta no seu ensaio “O fim da história”, em 1989, que três anos depois desenvolveu no livro “O fim da história e o último homem”, aprofundando a tese em que sustenta que o fim da Guerra Fria marcou o triunfo do liberalismo sobre os regimes totalitários, visando em especial os sistemas comunistas. Entendeu ele que a falência do marxismo-leninismo, na China e na União Soviética, teria criado as condições para um “crescimento da importância do mercado nas relações internacionais e uma diminuição da probabilidade de conflitos em larga escala entre Estados”.

Antes de mais, a expressão “O fim da história” é discutível sob o viés semântico porque parte do pressuposto de que a história da humanidade é sobretudo uma sucessão diacrónica de guerras e conflitos cuja origem é a vocação natural do homem para a violência, o confronto e a disputa. Com o seu axioma, o ideólogo americano considerou que a história, enquanto processo hegeliano, enquanto dialéctica entre forças que se confrontam, tinha, efectivamente, chegado ao seu termo com a vitória do liberalismo económico e político, permitindo a partir daí a emergência de um Estado universal homogéneo. Desta forma, o filósofo parece subentender que o único motor da história é a avidez humana e o seu impulso natural para a conquista e satisfação das suas ambições de espaço e meios vitais, e daí a guerra como instrumento privilegiado. Por exclusão de partes, tal proposição dá azo a que, erradamente, se negue o privilégio da historiografia à virtuosa consagração de um mundo de paz, cooperação e solidariedade entre as nações. É como se uma concepção teleológica da história não devesse olhar para o instinto competitivo do homem como algo que vise o seu aperfeiçoamento como ser social em vez de favorecer a sua autodestruição.

A profecia de Fukuyama não tardou a ser desmentida pela própria História e hoje ela é rejeitada pelo seu autor. Um erro que lhe é atribuído foi ignorar a diversidade cultural e política fora do mundo ocidental quando concebeu que a democracia liberal iria consagrar-se em todas as geografias. Os factos falam por si. Com efeito, seguir-se-ia a crise ideológica do capitalismo e do sistema financeiro, o definhar das classes médias e o emergir de novos processos de polarização de riqueza ao arrepio da justiça social. Com tudo isto, a ideologia neoliberal, sob a égide da globalização, minimizando a importância do Estado, ao invés de se expandir e implantar, fez despontar sentimentos nacionalistas e correntes políticas de extrema-direita na Europa, na América do Sul e outras partes do mundo, em muitos casos com a contribuição servil dos media. Assim, a concorrência económica, longe de substituir o conflito entre as potências, antes parece ter-se convertido em arma de eleição para fomentar e aprofundar clivagens e rivalidades

A violência, que no começo dos tempos pareceria ao homem fenómeno exclusivamente discernível na impetuosidade dos ventos, no ribombar dos trovões ou na ferocidade dos animais selvagens, cedo tornar-se-ia meio irrecusável para a sua luta pela sobrevivência; mais tarde, com o desenvolvimento da civilização e o surgimento das cidades-estados, tornar-se-ia instrumento sofisticadamente organizado para realizar fins políticos na esfera do Estado ou de grupos organizados. Eis o que fundamenta a teoria de Fukuyama: a convicção de que a história da civilização é a história da violência. Ele que, logo a seguir ao fim da Guerra Fria, veria o conflito nos Balcãs, em plena Europa, ser o primeiro acontecimento a pôr em causa o seu vaticínio. Outros acontecimentos se seguiriam: o terrorismo islâmico e os conflitos sempre ao rubro no Médio Oriente envolvendo o Afeganistão, o Iraque, a Líbia e a Síria, com Israel no epicentro, e o receio sempre presente de aquisição de arma nuclear por um Irão teocrático e ameaçador.

Mas tudo passou a pintar-se com cores bem mais sombrias desde que a Rússia invadiu a Ucrânia trazendo de novo a guerra para o continente europeu e com uma violência inclemente que não se via desde o fim da Segunda Guerra Mundial. O regime vigente na Rússia inspira os mais profundos receios, o suficiente para os membros da União Europeia acelerarem o passo para o seu rearmamento, com uma assertividade que interrompe um longo tempo em que as políticas de defesa estiveram relegadas para baixa prioridade. Fala-se mesmo no eventual apetrechamento da arma nuclear em alguns países, sobretudo nos que sentem mais perto o bafo ameaçador de Putin e os seus sequazes.

A recente reeleição de Donald Trump veio pôr em causa o que ainda restava de auspicioso na ordem liberal internacional e funcionava como antídoto contra regimes tiranos como o da Rússia, Coreia do Norte e outros em estado larvar ou em potencial crescimento como acontece na Hungria, na Eslováquia, na Argentina, na Venezuela ou mesmo no Brasil afecto a um Bolsonaro, e sem poder-se excluir de todo a Turquia. As primeiras medidas do presidente americano são radicais e de ruptura assumida com o sistema que permitiu ao longo de décadas a modelação das relações entre os Estados e o respeito pelas leis internacionais. O estranho conluio entre Trump e Putin tem tudo para resultar em fenómenos de entropia na ordem mundial que se construiu desde o fim da Segunda Guerra Mundial. É muito provável que se venha a cair num vazio em que se torne difícil desalojar a irracionalidade e o vírus da violência para dar lugar a cosmovisões renovadas sobre um destino mais virtuoso para a humanidade.

A ironia manda então dizer que a história regressou, ou continua igual a si própria, escapando ao sepultamento que lhe sentenciou Fukuyama, mas que pode estar, sim, a desenhar-se a história do fim do mundo que as nossas gerações conheceram. Mas oxalá que não tenha razão Hannah Arendt, quando, lendo o seu mestre Karl Jaspers, afirmaria num certo contexto que “o que agora começa é não a história e o seu fim, mas a história do fim da humanidade”. Afastemos receios catastrofistas, mas não convém dormir na forma.

Nota: este texto está escrito conforme a anterior ortografia.

 

Tomar, 23 de Março de 2025

Adriano Miranda Lima


A Língua é do Falante

domingo, 16 de março de 2025

 

Exactamente, como diz o título: a Língua pertence ao Falante que a pratica, que a usa no seu dia a dia, que a transforma ao longo da vida

Creio que não haverá ambiguidades e nem confusões, com relação a essa pertença.

São os falantes que  a criam, que a falam, que a escrevem, e que a inovam tanto na perspectiva sincrónica, como na diacrónica; de tal modo assim é, que o legislador quando se debruça sobre questões à volta da  Língua que o Estado encomenda, apercebe-se, percepciona  a necessidade e a importância de um Referendo, isto é, de uma consulta dita popular, junto dos falantes para se aquilatar da problemática que directamente  diz respeito aos falantes da Língua. E como escreveu alguém que me é caro: “(...) é uma matéria digna de um Referendo, para que houvesse uma vinculação séria por parte de todos os entes, presentes e futuros (…)”   Tal é a importância e a complexidade de questões que tocam a Língua.

Continuando esta espécie de cadeia de “comandos linguísticos,” os Gramáticos, surgem depois da Língua estar na boca e na pena do falante para criar ou recriar normas, regras para melhor padronizar/estandardizar a Língua viva, de comunicação, evitando assim ambiguidades, confusões, mal-entendidos e caos linguísticos entre os falantes de um mesmo idioma. O seu papel é semelhante ao de um moderador, de um regulador que ajuda a tornar clara e correcta – igual para todos – a comunicação entre os falantes.

 Na mesma linha e com funções diferentes, surgem os Linguistas.

Ora bem, os Linguistas, nas suas diversas especializações como Dialectólogos, Sociolinguistas, Psicolinguistas – resumindo, – os cientistas da Língua, estudam-na, (a sua génese, a sua história) estruturam-na em grandes famílias de línguas, exemplo: a nossa – Língua portuguesa – é neo-latina e encontra-se no grupo do francês, do italiano, do espanhol, do romeno, entre outras, que derivam do Latim, daí serem classificadas como Línguas românicas.

Igualmente, são os Linguistas que estabeleceram os diferentes níveis de uma Língua, ora culta, ora corrente e ora ainda, popular entre outras questões que se põem quando uma língua viva e de comunicação entra na elocução e na escrita de diferentes falantes. Também foram eles  que denominaram as funções da linguagem, no acto elocutório do falante. 

Aliás, grandes nomes/fundadores da ciência Linguística como: Ferdinand de Saussure, Leonard Bloomfield, Eugenio Coseriu, Noam Chomisky, para só citar alguns Linguístas e filósofos da linguagem que se destacaram através das obras e das teorias que elaboraram neste ramo – e que tive o privilégio de estudar enquanto estudante universitária – tiveram sempre em mente os falantes das línguas sobre as quais se debruçaram.

Interessante relembrar, dada a ocasião, que Baltazar Lopes da Silva, eminente filólogo e renomado estudioso da fenomenologia linguística crioula, ao descrevê-la, considerou o nosso crioulo como: “Uma experiência românica nos trópicos”. Título de um ensaio deste autor, publicado na Revista Claridade, nº 4 e 5, 1947. Clarificando: os Linguistas descrevem a Língua nos seus múltiplos aspectos, enquanto ferramenta individual, social, na oralidade e na escrita do falante. Mas atenção, estes estudiosos e especialistas da Língua não se arvoram em “donos” da mesma e de que só eles é que podem proferir questões sobre o idioma do falante. Pelo contrário, os cientistas da Língua têm a noção perfeita de que aquela é, em primeira e última instância, pertença do falante. E em tempo algum declaram qualquer critério de autoridade para reivindicar e valorizar a sua posição.

Da mesma forma, uma lei, pode ser discutida e debatida entre não juristas, uma vez que o cidadão – enquanto beneficiário e tributário da lei criada, algo que a ele diz respeito perante as autoridades, – não pode revelar o seu desconhecimento de normas pelas quais, a vida dele em sociedade se rege.

Vem isto tudo a propósito de clarificar situações que configuram entre nós, a criação de alguma inibição, de alguma pressão sobre o falante, para o impedir que ele debata o seu próprio idioma, ou, ainda mais grave, de pensar sobre o idioma que ele herdou e vem passando de geração em geração; tornando essa ferramenta de comunicação, apenas “coutada” ou propriedade privada e exclusiva de especialistas da Língua que é nossa (plural e abrangente) Não. De maneira alguma!  É como se as partes beligerantes deixassem que uma guerra entre elas fosse apenas tratada por generais.

Todos nós podemos e devemos emitir opiniões sobre a nossa Língua materna. Não importa a profissão/actividade, formação académica, (economia, engenharia, artes, medicina, entre outras) ou apenas leigo e sem qualquer diploma; todos, mas todos os falantes, devem disponibilizar-se, se assim entenderem, para se pronunciarem sobre a sua Língua.  A Língua chamada materna, funciona para o falante como se de uma preciosa herança se tratasse, legada pelos seus ascendentes e que ele por sua vez, deixará aos descendentes.

 

Pobre Cabral!

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

 


Este escrito, foi-me sugerido por uma imagem altamente desafiadora, transmitida nas televisões portuguesas, aquando das manifestações ocorridas na Baixa lisboeta, por morte do homem de origem cabo-verdiana, atingido infelizmente, mortalmente por um tiro de polícia. Creio que no passado mês de Outubro, de 2024.

 O que vi interpelou-me: uma mulher, que me pareceu ser da ilha de Santiago, logo, cabo-verdiana, empunhando uma enorme bandeira de Cabo Verde e com a cara-imagem de Amílcar Cabral na “T-shirt” que envergava. Ela deliberadamente subiu uns degraus de uma estátua, ao longo da Avenida da Liberdade em Lisboa, ficando bem alta em relação aos de mais participantes da marcha, e com isso atraiu a atenção dos Repórteres e dos Fotógrafos aí presentes, que a focaram de modo intenso. Teve o seu momento de glória, parecendo sentir-se pela postura o “centro” dos acontecimentos.

Ora bem, imagem destacada que me interrogou da seguinte forma: Não seria esta imagem um paradoxo?  Uma espécie de contradição, de contrassenso, envergar de forma ostensiva e exibicionista, estes símbolos que remetem para a independência, em que tanto se empenhou Cabral para que Cabo Verde  deixasse de ser pertença de Portugal?  Exibi-los de forma reivindicativa, em pleno na Capital da antiga Metrópole colonial? Quando ela, pela lógica das coisas e da escolha feita, (a independência) deveria estar a viver tranquilamente nas ilhas? Não foram estas as premissas trazidas pela independência das ex-colónias, em que o desenvolvimento e o progresso acompanhariam os países tornados independentes há cinquenta anos? Parece paradoxal…

Afinal, a protagonista do momento, na marcha, pareceu-me pelo aspecto, tratar-se de uma jovem mulher que emigrou, após independência. E que por necessidade de vida melhor acolheu-se em Portugal, uma vez que o país dela não lhe proporcionou condições de vida. E, tal como ela, vejo centenas, senão milhares de jovens, homens e mulheres, oriundos das antigas colónias portuguesas, incluindo do Brasil, a procurar avidamente sair das suas terras para Portugal.

O interessante disto tudo é que os Activistas que por aqui andam, só descompõem e destratam o país de acolhimento, sem se lembrarem de endossar uma única crítica! Nem uma! aos governos dos seus países de origem que os fizeram demandar terras lusas. Chegou-se ao ponto de o Presidente da República Federativa do Brasil, país independente, há dois séculos, proferir em alto e bom som de que se Portugal não se acautelasse, qualquer dia haveria em Portugal e dentro de pouco tempo, mais brasileiros do que portugueses. O ilustre governante, não fez a meta semântica da sua frase…haja decoro linguístico!

Voltando à manifestação, embora pudesse entender os motivos da marcha, afinal de uma morte se tratava, já os símbolos que mostrava a participante cabo-verdiana da mesma, não me pareceram absolutamente nada adequados à circunstância.

Será que os nossos historiadores, analistas e activistas já pararam para pensar sobre os motivos e as causas que levaram  e levam à maior emigração de sempre para Portugal - note-se: após o processo das respectivas independências - de angolanos, brasileiros, cabo-verdianos, guineenses, são-tomenses e moçambicanos a tornar aquele país, também da CPLP, desejado para o seu refúgio, para uma vida melhor e para a cidadania?   

Retomando o título deste texto: Pobre Cabral! Se ele agora voltasse a este mundo nem que fosse sob forma e disfarçado de romeiro, em jeito da personagem D. João de Portugal, da obra «Frei Luís de Sousa» de Almeida Garret; ou de encoberto, à maneira de Dom Sebastião, havia de se escandalizar, incrédulo daquilo que fizeram dos seus sonhos, e das utopias por ele imaginados para a Guiné e para Cabo Verde, independentes há cinquenta anos…

Do mesmo modo, abranja-se nestes sonhos não realizados do pobre Cabral, e por extensão, também os dos independentistas/nacionalistas, de Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe e, porque não, do Brasil.

Continuando, os novos imigrantes em Portugal, quase todos eles possuem um ponto que os aproxima: que é o tempo de partida dos seus países de origem: emigraram afinal, após as independências respectivas. (para uns já há séculos, para outros, meio século) e em grande número para o antigo país colonizador,

Interessante, é que os seus activistas em terra de acolhimento, não se questionam porque é que todos eles tiveram necessidade de deixar as terras de origem para se mudarem para Portugal? Porquê que não criticam os governos respectivos que até hoje, não lhes proporcionou, saúde, boa escola, desenvolvimento, salário condigno?

Enfim, permitam-me também esta espécie de pequena reflexão sobre os “denodados" activistas oriundos das antigas colónias ou, possessões ultramarinas, e que vivem em terras lusas.

E tal como comecei, assim termino: Pobre Cabral!

 

O português de Cabo Verde

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

 

 


O português de Cabo Verde sempre existiu, ou antes, existe há séculos.

Esta é uma declaração introdutória, uma opinião de uma falante também tributária do português das ilhas.

 E justifico-a nos parágrafos que se seguem.

Ora bem, escutei recentemente uma conversa difundida em rede social, um diálogo havido entre dois jovens formados em Linguística, e /ou num dos cursos do ramo das Ciências Sociais, em que um deles dizia com toda a convicção que num futuro, ainda sem horizonte temporal delimitado, “havia de nascer o português de Cabo Verde, à semelhança do que aconteceu em Angola e no Brasil”.

Contrariamente ao ilustrado por estes dois professores - o português de Cabo Verde, formou-se há muitos séculos nas ilhas, num processo que o tempo graduou - se calhar bem antes do português do Brasil, dado o lapso de tempo -quarenta anos - entre o achamento de um (1500) e a descoberta das ilhas ocorrida antes, em 1460 pelos navegadores portugueses.

O português de Cabo Verde foi, é e vem sendo falado por falantes cabo-verdianos escolarizados.

Para além disso, o português de Cabo Verde está plasmado nas obras literárias dos mais conhecidos, romancistas e contistas nacionais.

Com efeito, encontrámo-lo na obra de Baltazar Lopes da Silva, (1907-1989) o romance «Chiquinho» de 1947 é disso prova bastante nas falas das personagens, de tal forma o é, que houve críticos que afirmaram que este romance foi pensado em Crioulo (variante de Barlavento) e “traduzido” em português.  Ora bem, o facto é que Baltazar Lopes da Silva escreveu-o quase todo, em português de Cabo Verde, bem fixado em toda a narrativa. O que o tornou um exemplo paradigmático de transposição literária do português das ilhas, na variante de Barlavento, na fala do narrador e de quase todos as personagens. Da mesma forma atestam-no as falas das personagens dos Contos deste autor.

Continuando, nas noveletas de António Aurélio Gonçalves, (1901-1984) o português de Cabo Verde atinge uma graça e uma delicadeza, nas falas das suas personagens femininas. Para exemplo, a noveleta: «Virgens Loucas»  

Igualmente, a variante do português de Cabo Verde está presente nos Contos: «O Galo Cantou na Baía» de Manuel Lopes, (1907-2005) publicado em 1936 e continuado em “Chuva Braba,” 1956, romance emblemático deste autor, entre outras obras romanescas do mesmo.

Não vá sem acrescentar que, os fundadores do movimento cultural, «Claridade» e proponentes da caboverdianidade, usaram com mestria e propositadamente, na ficção que nos legaram, a variante cabo-verdiana da Língua portuguesa.

Da mesma forma, o poeta, contista e ensaísta, Gabriel Mariano, (1928-2002) nos seus Contos, inseridos em «Vida e Morte de João Cabafume» iniciados na década de 50, usa o português de Cabo Verde com o mesmo à-vontade com que o fizeram os seus antecessores claridosos.

Nesta mesma linha, temos o português de Cabo Verde  nas falas, nos diálogos das personagens dos Contos de Orlanda Amarilís, (1924-2014) «Cais-de-Sodré-té-Salamansa» 1974.

Mais recentemente, nos anos 80/90 do século XX, em quase todas as falas das personagens cabo-verdianas dos romances de Germano Almeida, (1945) «O Testamento do Senhor Napumoceno da Silva Araújo» 1989, e em quase todos os romances deste autor, lemos e “ouvimos” o português de Cabo Verde com a entoação, o sotaque, da variante de São Vicente.

Mas antes, também Teixeira de Sousa (1919-2006) nos seus Contos insertos na colectânea, «Contra Mar e Vento, 1972, e nos seus romances, aqui e acolá nas falas de algumas personagens vemos isso bem presente, a nossa variante de português.

Nós aprendemos que quem fixa a norma e as variantes de uma Língua viva, são os seus escritores, os seus poetas, os seus compositores e as falas do povo. Daí falar-se genericamente em norma, culta, em norma corrente e em norma popular. Os livros, as falas, as cantigas, e os versos formam a língua, da mesma forma que os seus documentos de natureza histórica. Logo, a oralidade e a escrita juntam-se, fundem-se e surgem na nossa variante linguística, alterando-se, modificando-se – diacronicamente - ao longo do tempo.

Voltando ao português ilhéu, usado pelos nossos escritores, poderão até questionar se não foi apenas um artefacto estilístico, pitoresco, usado pelos autores aqui mencionados. Creio que não. Acredito que foi além disso. Foi para imprimir contexto verosímil e autenticidade, aos traços sociais, linguísticos, das personagens cabo-verdianas e ao ambiente insular em que interagem essas mesmas personagens que assim falam e assim expressam a Língua portuguesa de Cabo Verde.

Vale também dizer, que os nossos antepassados, os tetravós os avós, os pais, escolarizados expressavam-se em português fluente, com o sotaque e a entoação caraterísticos do português das ilhas.

Que não seja esquecido o papel relevante do antigo Seminário-Liceu de São Nicolau, (1866-1917) na aprendizagem e consequente difusão da Língua portuguesa como ferramenta de trabalho e de cultura dos muitos cabo-verdianos que estudaram naquele prestigiado estabelecimento de ensino e que foram os Quadros por excelência do funcionalismo público de Cabo Verde, nos finais do século XIX e no dealbar do Século XX.

Pois bem, continuando, os nossos governantes, os nossos professores, os médicos, os advogados, os juízes, os jornalistas, os funcionários públicos, cabo-verdianos, hodiernamente e quando se expressam em português, fazem-no usando a variante da Língua portuguesa, aclimatada ao nosso solo. E mais interessante ainda, é que se percebe no falante cabo-verdiano que se expresse em português, a sua ilha de origem, pois que subjacente à elocução, está o sotaque

Torna-se igualmente interessante, verificar no português de Cabo Verde, as formas, as expressões, as construções que lhe são peculiares.

Apenas uma pequena ilustração: a forma como o nosso aparelho fonador, articula e pronuncia os pronomes pessoais complementos indirectos: o lhe, o lho, o lha os lhes, os   lhos e lhas.

Outra particularidade da nossa variante do português é a maneira como o falante, nativo de São Vicente, pronuncia os nomes terminados em o fazendo-os terminar no e velado. Exemplos: movimente, desenvolvimente.  De igual forma, o falante de português, nativo de Santiago, regra geral, omite o r duplo ou r gutural, fazendo-o apical. Assim ao dizer a palavra terra, pronuncia tera. Podia aqui acrescentar o falante nativo da ilha do Fogo, que ao falar português, articula o pronome relativo que como qui com a vogal i bem acentuada fonicamente.

Mas mais ainda em termos das características do português de Cabo Verde: o uso do modo imperativo é quase sempre feito na 3ª pessoa, ainda que os dialogantes se tratem por “tu”. Exemplo: “não faça isso” em vez de “não faças isso”  tratando-se de uma ordem ou de uma exortação, mesmo entre falantes que normalmente se tratam na 2ª pessoa do singular.

Neste enunciar de particularidades, segue esta de natureza semântica: no português de Cabo Verde, quando reencontramos uma pessoa amiga que já não víamos há algum tempo, usamos com frequência e com sentido elogioso a expressão: “Estás bem disposta! ou bem disposto!” com o sentido de se estar com bom aspecto ou, com mais uns quilitos.  Nas outras variantes da Língua portuguesa, o estar-se bem disposto, significa, estar de bom humor, de espírito positivo, etc, mas nunca dirigido ao aspecto físico. 

Outra expressão, muito da nossa variante é a que se usa para se convidar alguém para o pequeno-almoço, com a expressão: “já tomaste café?...vem tomar café” mas para o falante de outra variante da língua comum, o “café” pode ser tomado no sentido literal do termo e responder: “obrigada, mas eu não gosto de café” A variante do português do Brasil, usa: café da manhã, para denominar a primeira refeição do dia. 

Mais uma especificidade vocabular semântica, do português de Cabo Verde:  o emprego da palavra ingrata, ingrato. Quando dizemos a alguém que ele ou ela "está um ingrato!..." apenas queremos com isso significar que a pessoa amiga, deixou de dar notícias, deixou de aparecer, de visitar os amigos, etc. Mas nas outras variantes do português, refiro-me mais directamente ao falado em Portugal, a palavra ingrato assim dito, tem uma conotação mais forte. Trata-se de uma pessoa mal agradecida, que não reconhece o que outrem fez por ela.

Para terminar estes exemplos que são de uso peculiar na Língua portuguesa de Cabo Verde, lembro o emprego do advérbio de modo e de intensidade, quase que tem o significado de "não completamente" ou: "a ponto de".  Ora bem, na variante do português de Cabo Verde, o quase, ora exprime uma dúvida, exemplo: "quase ele não fez o trabalho de casa" com sentido de: "se calhar" não fez o trabalho de casa, ou de "talvez" não tenha feito. Mas mais interessante é o uso do mesmo advérbio com o sentido de se ter uma certeza naquilo que se profere. Exemplo: "quem está a bater à porta a esta hora? (resposta de quem já viu a pessoa à porta): "quase é o primo António."  

De certa forma, os exemplos acimas dados, constituem-se como expressões idiomáticas da nossa variante da Língua portuguesa.       

Com efeito, isto assim dito e de forma resumida, apenas ilustra algumas particularidades da Língua portuguesa de Cabo Verde, rica e variada, que já possui existência vetusta e longeva, ao lado do Crioulo -Língua cabo-verdiana, por vezes até em sobreposição, e na maioria das vezes, muito próximas uma da outra, na oralidade do falante cabo-verdiano.

Para terminar, reiteraria que a Língua portuguesa de Cabo Verde existe já com séculos de duração e de fixação nestas ilhas atlânticas e da Macaronésia, influenciada fortemente pelo crioulo das ilhas, com ele coevo e em permanente interpenetração.