O Fim da História ou a História do Fim

terça-feira, 25 de março de 2025

 

Nestes tempos inquietantes que o mundo está a atravessar, o pensamento voga como pluma perdida no ar e as dúvidas acastelam-se na consciência de quem ainda a conserva intacta. À excepção da crise dos mísseis de Cuba em 1962, desde que me conheço não me lembro de o espectro da guerra e do conflito assombrar os espíritos com tanta cupidez como agora. No momento em que escrevo, Israel, um país de cultura ocidental, não hesitou em dizimar centenas de civis palestinianos só para eliminar um ou outro elemento do Hamas. Ao mesmo tempo, a Rússia de Putin não hesita em bombardear áreas habitadas por civis e matar pessoas inocentes.

“O fim da história ou a história do fim”, em título, conduz-nos à teoria de Francis Fukuyama exposta no seu ensaio “O fim da história”, em 1989, que três anos depois desenvolveu no livro “O fim da história e o último homem”, aprofundando a tese em que sustenta que o fim da Guerra Fria marcou o triunfo do liberalismo sobre os regimes totalitários, visando em especial os sistemas comunistas. Entendeu ele que a falência do marxismo-leninismo, na China e na União Soviética, teria criado as condições para um “crescimento da importância do mercado nas relações internacionais e uma diminuição da probabilidade de conflitos em larga escala entre Estados”.

Antes de mais, a expressão “O fim da história” é discutível sob o viés semântico porque parte do pressuposto de que a história da humanidade é sobretudo uma sucessão diacrónica de guerras e conflitos cuja origem é a vocação natural do homem para a violência, o confronto e a disputa. Com o seu axioma, o ideólogo americano considerou que a história, enquanto processo hegeliano, enquanto dialéctica entre forças que se confrontam, tinha, efectivamente, chegado ao seu termo com a vitória do liberalismo económico e político, permitindo a partir daí a emergência de um Estado universal homogéneo. Desta forma, o filósofo parece subentender que o único motor da história é a avidez humana e o seu impulso natural para a conquista e satisfação das suas ambições de espaço e meios vitais, e daí a guerra como instrumento privilegiado. Por exclusão de partes, tal proposição dá azo a que, erradamente, se negue o privilégio da historiografia à virtuosa consagração de um mundo de paz, cooperação e solidariedade entre as nações. É como se uma concepção teleológica da história não devesse olhar para o instinto competitivo do homem como algo que vise o seu aperfeiçoamento como ser social em vez de favorecer a sua autodestruição.

A profecia de Fukuyama não tardou a ser desmentida pela própria História e hoje ela é rejeitada pelo seu autor. Um erro que lhe é atribuído foi ignorar a diversidade cultural e política fora do mundo ocidental quando concebeu que a democracia liberal iria consagrar-se em todas as geografias. Os factos falam por si. Com efeito, seguir-se-ia a crise ideológica do capitalismo e do sistema financeiro, o definhar das classes médias e o emergir de novos processos de polarização de riqueza ao arrepio da justiça social. Com tudo isto, a ideologia neoliberal, sob a égide da globalização, minimizando a importância do Estado, ao invés de se expandir e implantar, fez despontar sentimentos nacionalistas e correntes políticas de extrema-direita na Europa, na América do Sul e outras partes do mundo, em muitos casos com a contribuição servil dos media. Assim, a concorrência económica, longe de substituir o conflito entre as potências, antes parece ter-se convertido em arma de eleição para fomentar e aprofundar clivagens e rivalidades

A violência, que no começo dos tempos pareceria ao homem fenómeno exclusivamente discernível na impetuosidade dos ventos, no ribombar dos trovões ou na ferocidade dos animais selvagens, cedo tornar-se-ia meio irrecusável para a sua luta pela sobrevivência; mais tarde, com o desenvolvimento da civilização e o surgimento das cidades-estados, tornar-se-ia instrumento sofisticadamente organizado para realizar fins políticos na esfera do Estado ou de grupos organizados. Eis o que fundamenta a teoria de Fukuyama: a convicção de que a história da civilização é a história da violência. Ele que, logo a seguir ao fim da Guerra Fria, veria o conflito nos Balcãs, em plena Europa, ser o primeiro acontecimento a pôr em causa o seu vaticínio. Outros acontecimentos se seguiriam: o terrorismo islâmico e os conflitos sempre ao rubro no Médio Oriente envolvendo o Afeganistão, o Iraque, a Líbia e a Síria, com Israel no epicentro, e o receio sempre presente de aquisição de arma nuclear por um Irão teocrático e ameaçador.

Mas tudo passou a pintar-se com cores bem mais sombrias desde que a Rússia invadiu a Ucrânia trazendo de novo a guerra para o continente europeu e com uma violência inclemente que não se via desde o fim da Segunda Guerra Mundial. O regime vigente na Rússia inspira os mais profundos receios, o suficiente para os membros da União Europeia acelerarem o passo para o seu rearmamento, com uma assertividade que interrompe um longo tempo em que as políticas de defesa estiveram relegadas para baixa prioridade. Fala-se mesmo no eventual apetrechamento da arma nuclear em alguns países, sobretudo nos que sentem mais perto o bafo ameaçador de Putin e os seus sequazes.

A recente reeleição de Donald Trump veio pôr em causa o que ainda restava de auspicioso na ordem liberal internacional e funcionava como antídoto contra regimes tiranos como o da Rússia, Coreia do Norte e outros em estado larvar ou em potencial crescimento como acontece na Hungria, na Eslováquia, na Argentina, na Venezuela ou mesmo no Brasil afecto a um Bolsonaro, e sem poder-se excluir de todo a Turquia. As primeiras medidas do presidente americano são radicais e de ruptura assumida com o sistema que permitiu ao longo de décadas a modelação das relações entre os Estados e o respeito pelas leis internacionais. O estranho conluio entre Trump e Putin tem tudo para resultar em fenómenos de entropia na ordem mundial que se construiu desde o fim da Segunda Guerra Mundial. É muito provável que se venha a cair num vazio em que se torne difícil desalojar a irracionalidade e o vírus da violência para dar lugar a cosmovisões renovadas sobre um destino mais virtuoso para a humanidade.

A ironia manda então dizer que a história regressou, ou continua igual a si própria, escapando ao sepultamento que lhe sentenciou Fukuyama, mas que pode estar, sim, a desenhar-se a história do fim do mundo que as nossas gerações conheceram. Mas oxalá que não tenha razão Hannah Arendt, quando, lendo o seu mestre Karl Jaspers, afirmaria num certo contexto que “o que agora começa é não a história e o seu fim, mas a história do fim da humanidade”. Afastemos receios catastrofistas, mas não convém dormir na forma.

Nota: este texto está escrito conforme a anterior ortografia.

 

Tomar, 23 de Março de 2025

Adriano Miranda Lima


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