Nestes tempos inquietantes que o mundo está a atravessar, o pensamento voga como pluma perdida no ar e as dúvidas acastelam-se na consciência de quem ainda a conserva intacta. À excepção da crise dos mísseis de Cuba em 1962, desde que me conheço não me lembro de o espectro da guerra e do conflito assombrar os espíritos com tanta cupidez como agora. No momento em que escrevo, Israel, um país de cultura ocidental, não hesitou em dizimar centenas de civis palestinianos só para eliminar um ou outro elemento do Hamas. Ao mesmo tempo, a Rússia de Putin não hesita em bombardear áreas habitadas por civis e matar pessoas inocentes.
“O fim da história ou a história
do fim”, em título, conduz-nos à teoria de Francis Fukuyama exposta no seu
ensaio “O fim da história”, em 1989, que três anos depois desenvolveu no livro
“O fim da história e o último homem”, aprofundando a tese em que sustenta que o
fim da Guerra Fria marcou o triunfo do liberalismo sobre os regimes
totalitários, visando em especial os sistemas comunistas. Entendeu ele que a
falência do marxismo-leninismo, na China e na União Soviética, teria criado as
condições para um “crescimento da importância do mercado nas relações
internacionais e uma diminuição da probabilidade de conflitos em larga escala
entre Estados”.
Antes de mais, a expressão “O fim
da história” é discutível sob o viés semântico porque parte do pressuposto de
que a história da humanidade é sobretudo uma sucessão diacrónica de guerras e
conflitos cuja origem é a vocação natural do homem para a violência, o
confronto e a disputa. Com o seu axioma, o ideólogo americano considerou que a
história, enquanto processo hegeliano, enquanto dialéctica entre forças que se
confrontam, tinha, efectivamente, chegado ao seu termo com a vitória do
liberalismo económico e político, permitindo a partir daí a emergência de um
Estado universal homogéneo. Desta forma, o filósofo parece subentender que o
único motor da história é a avidez humana e o seu impulso natural para a
conquista e satisfação das suas ambições de espaço e meios vitais, e daí a
guerra como instrumento privilegiado. Por exclusão de partes, tal proposição dá
azo a que, erradamente, se negue o privilégio da historiografia à virtuosa
consagração de um mundo de paz, cooperação e solidariedade entre as nações. É
como se uma concepção teleológica da história não devesse olhar para o instinto
competitivo do homem como algo que vise o seu aperfeiçoamento como ser social
em vez de favorecer a sua autodestruição.
A profecia de Fukuyama não tardou
a ser desmentida pela própria História e hoje ela é rejeitada pelo seu autor.
Um erro que lhe é atribuído foi ignorar a diversidade cultural e política fora
do mundo ocidental quando concebeu que a democracia liberal iria consagrar-se
em todas as geografias. Os factos falam por si. Com efeito, seguir-se-ia a
crise ideológica do capitalismo e do sistema financeiro, o definhar das classes
médias e o emergir de novos processos de polarização de riqueza ao arrepio da
justiça social. Com tudo isto, a ideologia neoliberal, sob a égide da
globalização, minimizando a importância do Estado, ao invés de se expandir e
implantar, fez despontar sentimentos nacionalistas e correntes políticas de
extrema-direita na Europa, na América do Sul e outras partes do mundo, em
muitos casos com a contribuição servil dos media. Assim, a concorrência
económica, longe de substituir o conflito entre as potências, antes parece
ter-se convertido em arma de eleição para fomentar e aprofundar clivagens e rivalidades
A violência, que no começo dos
tempos pareceria ao homem fenómeno exclusivamente discernível na impetuosidade
dos ventos, no ribombar dos trovões ou na ferocidade dos animais selvagens,
cedo tornar-se-ia meio irrecusável para a sua luta pela sobrevivência; mais
tarde, com o desenvolvimento da civilização e o surgimento das cidades-estados,
tornar-se-ia instrumento sofisticadamente organizado para realizar fins
políticos na esfera do Estado ou de grupos organizados. Eis o que fundamenta a
teoria de Fukuyama: a convicção de que a história da civilização é a história
da violência. Ele que, logo a seguir ao fim da Guerra Fria, veria o conflito
nos Balcãs, em plena Europa, ser o primeiro acontecimento a pôr em causa o seu
vaticínio. Outros acontecimentos se seguiriam: o terrorismo islâmico e os
conflitos sempre ao rubro no Médio Oriente envolvendo o Afeganistão, o Iraque,
a Líbia e a Síria, com Israel no epicentro, e o receio sempre presente de
aquisição de arma nuclear por um Irão teocrático e ameaçador.
Mas tudo passou a pintar-se com
cores bem mais sombrias desde que a Rússia invadiu a Ucrânia trazendo de novo a
guerra para o continente europeu e com uma violência inclemente que não se via
desde o fim da Segunda Guerra Mundial. O regime vigente na Rússia inspira os
mais profundos receios, o suficiente para os membros da União Europeia
acelerarem o passo para o seu rearmamento, com uma assertividade que interrompe
um longo tempo em que as políticas de defesa estiveram relegadas para baixa
prioridade. Fala-se mesmo no eventual apetrechamento da arma nuclear em alguns
países, sobretudo nos que sentem mais perto o bafo ameaçador de Putin e os seus
sequazes.
A recente reeleição de Donald
Trump veio pôr em causa o que ainda restava de auspicioso na ordem liberal
internacional e funcionava como antídoto contra regimes tiranos como o da
Rússia, Coreia do Norte e outros em estado larvar ou em potencial crescimento
como acontece na Hungria, na Eslováquia, na Argentina, na Venezuela ou mesmo no
Brasil afecto a um Bolsonaro, e sem poder-se excluir de todo a Turquia. As
primeiras medidas do presidente americano são radicais e de ruptura assumida
com o sistema que permitiu ao longo de décadas a modelação das relações entre
os Estados e o respeito pelas leis internacionais. O estranho conluio entre
Trump e Putin tem tudo para resultar em fenómenos de entropia na ordem mundial
que se construiu desde o fim da Segunda Guerra Mundial. É muito provável que se
venha a cair num vazio em que se torne difícil desalojar a irracionalidade e o
vírus da violência para dar lugar a cosmovisões renovadas sobre um destino mais
virtuoso para a humanidade.
A ironia manda então dizer que a
história regressou, ou continua igual a si própria, escapando ao sepultamento
que lhe sentenciou Fukuyama, mas que pode estar, sim, a desenhar-se a história
do fim do mundo que as nossas gerações conheceram. Mas oxalá que não tenha
razão Hannah Arendt, quando, lendo o seu mestre Karl Jaspers, afirmaria num
certo contexto que “o que agora começa é não a história e o seu fim, mas a
história do fim da humanidade”. Afastemos receios catastrofistas, mas não
convém dormir na forma.
Nota: este texto está escrito conforme a anterior ortografia.
Tomar, 23 de Março de
2025
Adriano Miranda Lima