quinta-feira, 30 de junho de 2016


O texto que se segue, recebi-o há já algum tempo, enviado pelas mãos amigas de Valdemar Pereira, que sei leitor assíduo destes e de outros assuntos.
Com a devida vénia à autora e ao Jornal português «Expresso», aqui o reproduzimos pois que é de interesse para a leitura daqueles que  cépticos e contrários estão relativamente ao Acordo - ortográfico - do nosso desacordo...
 

 
 Nove argumentos contra o Acordo Ortográfico de 1990

Manuela Barros Ferreira *

Qualquer crítica - e qualquer defesa - que se baseie sobretudo em insultos não é crítica nem defesa: é mero desabafo. Não vale nada. Por isso apresento uma série de argumentos relativos à eficiência operativa do OA 90 e a aspectos de ordem linguística, educativa, sociológica, diplomática, económica e de preservação patrimonial que me levam a não concordar com a sua aplicação.

1. Argumento da pouca eficácia

O AO 90, em vez de diminuir o número de palavras que se escreviam diferentemente em Portugal e no Brasil, aumentou-o consideravelmente. Segundo um estudo de Maria Regina Rocha (que exclui três tipos de vocábulos), 2.691 palavras que se escreviam de forma diferente mantêm-se diferentes; apenas 569 que eram diferentes se tornaram iguais; 1.235 palavras que eram iguais tornaram-se diferentes e, destas, 200 mudaram apenas em Portugal, dando origem a soluções aberrantes como aceção, conceção, confeção, contraceção, deceção, impercetível..., enquanto no Brasil se continua a escrever acepção, concepção, confecção, contracepção, decepção, imperceptível, etc. (cf. “A falsa unidade ortográfica”, Jornal Público, 19.01.2013, retomado em http://ciberdúvidas.iscte-iul.pt/.)

2. Argumento de ordem fonológica

Uma das características da língua portuguesa falada em Portugal é a chamada “elevação das vogais átonas”, ou seja: para nós, a pronúncia das vogais “a” , “e” e “o” em posição tónica não é a mesma que a que têm em posição átona. Compare-se o primeiro “a” de “casa” com o de “casinha”: na primeira palavra o “a” é aberto, e na segunda o “a” é fechado. Compare-se o “e” de “mesa” com o primeiro de “meseta”: em “mesa” pronunciamos “ê”, em “meseta” o “e” é mudo. Mesmo que esse “e” desapareça da fala e digamos “mzeta”, continuamos a perceber que se trata de “meseta”. Dizemos “tolo” com “ô” mas em “tolice”, o “o” é fechado. Esta regra é de aprendizagem automática, desde a primeira infância. Existem excepções, por motivos etimológicos e de paradigma morfológico: caveira, dilação, especar, especular, padeira, relator, retrovisão e algumas mais. Algumas dessas palavras até costumavam, até certa altura, levar um acento grave para indicar que a vogal era aberta: pàdeira e rètaguarda por exemplo. Hoje ele só subsiste como indicador da junção do artigo “a” com a preposição “a” e com os demonstrativos aquele, aquela, aquilo (“Dei um bolo à Maria”, “Àquele nunca falo”). Em 1971 no Brasil e em 1973 em Portugal foi eliminado dos advérbios de modo, e assim “sòmente” e “fàcilmente” passaram a escrever-se “somente”, “facilmente”. Considerou-se inútil porque “os falantes da língua sabiam como se pronunciavam as palavras”. Foi talvez essa a primeira “facada” que os legisladores da língua deram na transparência que a escrita devia ter para quem o português não era a língua materna – como era o caso da maior parte dos nativos das colónias de então. Noutros casos subsistia porém o recurso a letras etimológicas, com a função de indicar que as vogais que as precediam eram abertas. É o caso de “nocturno”,“espectador”, “tractor”. Sem esse auxílio, a regra de fechamento da vogal que não tem acento tónico tende a aplicar-se. É por isso que o AO 90 induz a que se leia “nuturno” ou, quando muito, “nôtúrno”; “espetador” como um derivado de “espeto” e “trator” com “a” fechado, vocábulo que não existe. Quer dizer, o AO aumentou desmesuradamente o número das excepções a uma regra de pronúncia que permitia uma leitura intuitiva.

3. Argumento de ordem morfológica

Há um princípio básico de qualquer ortografia: a coerência morfológica. O AO 90, seguindo estritamente a produção fonética, exige que se escreva “os egípcios são os nativos do Egito”. Conserva-se, e muito bem, o “p” do “egípcio” porque se pronuncia, mas em “Egito” perde-se a ligação gráfica entre o nome do país e o dos seus habitantes.

4. Argumento de linguística histórica

A língua portuguesa é, como todas as línguas naturais, um produto da História. A nossa deriva maioritariamente do latim, tem muitas raízes gregas, muitas achegas vocabulares árabes, tem remodelações renascentistas, tem neologismos oriundos das nações até onde viajou e dos variadíssimos povos, objectos e ideias que aqui foram chegando através dos séculos. A escrita reflecte essa riqueza.

Sobretudo com o Renascimento, a nossa língua sofreu um impulso extraordinário. A partir dessa altura foram criadas ou recuperadas numerosas palavras com base no grego e latim. Não falemos nos termos da Botânica, Medicina, Biologia, Química, que não há lugar nem tempo para tamanha empresa. Falemos apenas de um processo: o da criação de palavras derivadas.

Se repararem bem, a coerência morfológica que mencionei acima, é coisa que aparentemente falha: as palavras derivadas muitas vezes diferem daquela que lhes deram origem. Por exemplo, “lunar” e “luneta” não derivam de “lua”, “pedal” não deriva de “pé”, “lacticínio” não deriva de “leite”, “nocturno” não deriva de “noite”. Todas estas (e tantas, tantas outras...) palavras foram criadas, não a partir da palavra portuguesa (que sofreu todas as evoluções que o tempo imprimiu à raiz latina), mas sim directamente a partir do étimo latino, recuperado por pessoas eruditas: “luna-”, “pede-“, “lacte-“, “nocte-“. Uma coisa é o ter-se a pronúncia do latim transformado por via popular, através dos séculos (perdendo o “n“, o “l” e outras consoantes sonoras intervocálicas, transformando “–ct” em “-it”, etc.) outra coisa é criar-se uma palavra nova, aproveitando, reciclando um étimo já longínquo para fazer frente às novas necessidades de vocabulário. Deste modo, muitas das nossas palavras derivadas conservaram o étimo latino a partir do qual foram criadas. Elas fazem parte do património da língua, veiculando uma dupla marca de origem: social (erudita) e temporal (tardia).

5. Argumento educativo

Como ensinar a uma criança que “soturno” se lê com “o” fechado, pronunciado “u” na maior parte do país, e a palavra “noturno” se lê com “o” aberto”? A resposta é fácil: não se fala no assunto e fica o caso arrumado. Como ensinar a uma criança que da palavra “noite” se formou “noitada”, mas que “noiturno” e “noitívago” não existem, o que existe para o AO 90 é “noturno” e a dupla grafia “notívago” e “noctívago”?

Não seria mais fácil escrever estas últimas com “ct” e dizer-lhe que são palavras entradas na língua por via erudita e não por via popular? E que, se elas, crianças, comeram papa “láctea”, esta é outra palavra também erudita, tal como “lacticínios” ? Escrever “laticínios” não remete para outra coisa a não ser para “lata”. Talvez a lata de leite condensado que se vende nos supermercados?

6. Argumento sociológico

Antes de 1990 já existiam duas grafias em Portugal: a norma de 1945, muito bem destrinçada e explicada em Prontuários Ortográficos; e uma grafia difusa, sempre em reconstrução e evolução - a das mensagens juvenis - caracterizada pela simplicidade extrema, minimalista, com consoantes isoladas representando palavras, sem pontuação, nem cedilhas nem tiles. Esta tendência não fez senão acentuar-se com a generalização do uso electrónico. É nesta situação dicotómica que se insere uma terceira forma ortográfica, a do AO 90. Os defensores da norma de 45 agridem verbalmente os defensores da de 90 e vice-versa. E os jovens? Uns são penalizados nas notas por escreverem à antiga algumas palavras-ratoeira; outros são menosprezados porque escrevem à sua, deles, moda “simplex”; e os que escrevem “à moderna” deixam de respeitar as edições existentes na biblioteca da sua escola e inclusive invocam o pretexto da “confusão gráfica” para deixarem completamente de ler.

Se o AO 90 não é um erro sociológico, não sei o que será.

7. Argumento diplomático

O Acordo Ortográfico de 1990 tinha-se proposto unificar a escrita de todos os países de língua oficial portuguesa. Este objectivo não foi conseguido. Portugal impôs unilateralmente uma grafia que não tem o acordo de todos .

Diz-se que o AO 90 foi feito, essencialmente, para aumentar as vendas de livros portugueses no Brasil. Para isso pretendia unificar a escrita. Não unificou. Temos, por exemplo, acentos agudos onde os brasileiros têm acentos circunflexos (fenómeno /fenômeno, o que corresponde a uma efectiva diferença de pronúncia); e eliminamos o “c” e o “p” que são pronunciados em palavras brasileiras e não o são nas correspondentes portuguesas. Por exemplo, no Brasil: respectivo, perspectiva, recepção; em Portugal, segundo o AO: respetivo, perspetiva, receção, embora os “e” destas palavras não se pronunciem como os de “repetido” e “recessão”.

Angola e Moçambique não assinaram o AO 90 (o que me parece um grande exemplo de bom senso, sobretudo se tivermos em conta o argumento que se segue). A opinião destes países de língua oficial portuguesa devia ter sido ponderada e tida em conta pelo governo português antes de avançar para uma “situação de facto” extremamente difícil de reverter.

8. Argumento económico

O que seria economicamente mais recomendável?

Adoptar como obrigatório o AO 90 em nome de futuras vendas de futuros livros, tornando obsoletas as bibliotecas existentes? Ou manter a escrita de 1945, com todo o enorme acervo literário e científico que produziu?

Leiamos as palavras da escritora moçambicana Paulina Chiziene:

“Quantos dicionários Moçambique terá de comprar de novo? Quantos livros terá de mandar reescrever? Quantos livros de escola terão de ser refeitos, em nome de um acordo ortográfico? Será que vale a pena sacrificar tanto dinheiro dos pobres só para tirar um “c” e um “p” do que está escrito? [...] Penso que é um capricho tão desnecessário quanto caro”. (Tradutores contra o Acordo Ortográfico).

9. Argumento da preservação patrimonial

É natural que uma língua que se começou a escrever e ensinar há relativamente pouco tempo – por exemplo, o mirandês, no fim do século XX – não tenha qualquer obrigação de respeitar formas que os portugueses foram elaborando ao longo dos séculos. Porém a mim parece-me que todos nós, portugueses, que dispomos de uma língua escrita desde, pelo menos, D. Afonso II, temos obrigação de manter o mais possível as marcas históricas das palavras que até nós chegaram.

A grafia portuguesa já em tempos renunciou a algumas marcas históricas: por exemplo, o “ph” e os “ll” etimológicos (pronunciados “f” e “l”), dado que esse modo de escrever induzia a leituras erradas, e podia, por isso mesmo, ser descartado. Porém o AO 90 vai longe demais, ao afectar de modo evidente a leitura das vogais não acentuadas e a íntima conexão lógica que existe dentro de cada paradigma vocabular.

Ao modificar-se a escrita, com base numa (suposta) maior facilidade da sua aprendizagem, estabeleceu-se uma enorme confusão nessa mesma escrita e perdeu-se a possibilidade de jovens e menos jovens compreenderem os mecanismos de formação das palavras. Perdeu-se o nexo entre elas.

Para terminar:

Outra coisa ainda deveria ser tida em conta: ao renunciar de modo cego às marcas históricas, este “acordo” insere-se num movimento global de apagamento da memória e de negação da História. Terrível movimento, que cada dia se torna mais evidente e que deixará sem raízes, sem passado, uma série de povos, se não a maioria. E que já está deixando o mundo à deriva, presa dócil de todas as tiranias. Admiramo-nos do modo como estão sendo destruídos monumentos, museus, cidades, inúmeras etnias e línguas. Este desrespeito, este crime que hoje nos parece abrupto, começou devagar, por pequenas coisas, aparentemente insignificantes.

É inelutável? Será irreversível? Há quem diga que é demasiado tarde para recuar. Mas talvez ainda se possa fazer qualquer coisa. Mesmo este Acordo, que ainda não está instaurado em todo o mundo lusófono, é passível de emendas fundamentais.

* ex-investigadora do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa

 

 

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quarta-feira, 22 de junho de 2016

Porque estamos em período de exames; porque se trata de uma época muito particular para os alunos e para quem os tenha em casa a estudar; achei interessante e oportuno trazer ao leitor deste Blogue o presente texto  -  com a devida vénia ao autor, Henrique Magalhães, e ao Jornal «Público» de 22/06/2016 - pois que reflecte de forma verosímil, o “animus” de um aluno em provas finais. Mas afinal, são etapas necessárias na vida do estudante em processo formativo.
 

Se o exame de História tivesse rosto
 
Diário do aluno
Henrique Magalhães
 
Talvez o exame de História tenha identidade própria. Sorria quando vê a minha mão mergulhada em tinta e o meu pensamento a sufocar com a matéria como se estivesse imobilizado dentro de um oceano profundo, a segundos de se afogar. Ou talvez seja eu que estou assustadoramente cansado. Não consigo pensar em melhor metáfora para alcançar a maturidade do que esta prova.

É impossível conseguir bons resultados sem lutar e lutar contra aquela folha medieval e tenebrosa, sem suar, sem sentir uma cortante e gélida brisa na espinha ao ver as horas a acumularem-se no relógio e continuar trémulo e hesitante enquanto tento reflectir sobre três aspectos estruturantes do impacto da Grande Depressão e das prioridades económicosociais do regime nazi. A todos os redactores destes exames, um severo obrigado! Ainda ontem, olhei pela janela do meu quarto, num dos poucos segundos que tive para respirar no meio de todo aquele fumo de revoluções e contra-revoluções e tratados e conferências que suspiravam através dos milhentos livros e fichas espalhadas pela minha escrivaninha, e vi duas crianças a jogarem à bola com um carinhoso sorriso nos lábios. Desejei expulsá-las, porém, nesse momento, apercebi-me de uma melancólica verdade: eu já fui assim, despreocupado e cheio de energia. Estarei a ficar velho? Não! A culpa é da História. Penso para os meus botões: será que posso colocar no meu currículo que fiz o exame até ao fim? Independentemente da nota, será que ter sobrevivido a 15 páginas, quatro grupos e 700 anos de acontecimentos confinados em duas ou três folhas de teste é o suficiente para arranjar um bom emprego no futuro? Devia! Será que se, numa entrevista de trabalho, disser isto chamar-me-ão piegas? Provavelmente. No final da prova reparei que tinha as mãos sujas de tinta esferográfica e não consegui deixar de pensar que talvez isso tenha uma razão de ser. A cada letra que escrevi, a cada erro que cometi tracei um bocadinho mais do meu futuro, um bocadinho mais da minha pessoa. Qualquer que seja o nosso fado, enfrentaremos toda a história que está para vir com bravura. Agora descansemos, que também faz bem.

Aluno do 12.º ano, Secundária Rainha Dona Amélia, Lisboa
terça-feira, 21 de junho de 2016

Assinala-se o X ano da morte (2006) do escritor Henrique Teixeira de Sousa. Em jeito de homenagem a um grande nome das Letras cabo-verdianas, «Coral Vermelho» junta-se às efemérides evocativas, focando o perfil deste inesquecível contista e romancista que boa obra nos deixou.
 
Resenha bio-bibliográfica
 
1919 – Nasce na Freguesia de São Lourenço, na localidade de S. Domingos, na Ilha do Fogo, Henrique Teixeira de Sousa, filho do capitão de longo curso, João de Sousa, natural da Brava e de Laura Teixeira de Sousa, natural do Fogo.
1926-1930 - Instrução Primária em S. Filipe.
1931 - Preparatório para o Liceu.
1932-1938 - Estudos secundários no então Liceu Infante D. Henrique, na cidade do Mindelo.
1936 – Publicação do Conto «Tchuba é nós Governador» no Jornal Juventude, órgão dos estudantes liceais. No antigo 6º Ano do Liceu de Gil Eanes em Mindelo, S. Vicente.
1938 – Ingresso na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.
1945 – Conclusão do curso de Medicina.
1946 – Cursos do Instituto de Medicina Tropical, de Medicina Sanitária, da Universidade do Porto.
1946 – Ingresso no Quadro de Saúde do Ultramar, tendo sido colocado em Timor, como médico interno no Hospital central e Professor da escola de Enfermagem.
1947 – Publica no n.º 5 da Revista «Claridade» o estudo sobre: Estrutura Social da Ilha do Fogo em 1940.
1948 – Transferido para Cabo Verde e colocado como Delegado de Saúde da Ilha do Fogo, onde construiu e renovou  os actuais Hospital e Maternidade.
1949 – Publica no n.º 8 da Revista «Claridade»: Sobrados, Lojas & Funcos.
1950 – Inicia uma colaboração duradoira no Boletim “Cabo Verde” que só termina no último ano de publicação da revista, em 1964.
1955-56 – Frequenta em Marselha, França o II Curso para Formação de Médicos Nutricionistas para a África ao sul do Sahara.
1957 – Nomeado médico-adjunto da Missão Permanente de Estudo e Combate de Endemias de Cabo Verde e Presidente da Comissão de Nutrição de Cabo Verde. Torna-se membro titular da Societé Scientifique d´higiene alimentaire de Paris. Chefia a Delegação Portuguesa à III Sessão da Conferência Inter-Africana de Nutrição reunida em Luanda. Ainda no mesmo ano é colocado no Hospital de S. Vicente.
 
1958 – Participa na cidade do Mindelo no Colóquio sobre o Homem cabo-verdiano, sob  coordenação do Professor Almerindo Lessa. Igualmente participa no Congresso de Paludismo e Medicina Tropical em Lisboa, onde apresentou o trabalho: «Cabo Verde e a sua gente». Publicado em separata, pelas Edições Propaganda, Praia, Imprensa Nacional de Cabo Verde, 1958.
 
1959 – Participa em Lwiro (antigo Congo Belga) no Seminário de Nutrição.
 
1960 –Publica o futuro Conto «Raiva» no Boletim «Cabo Verde» nº 124 de Julho, sob epígrafe: Episódios verídicos da minha vida clínica.
 
1961/64 – Presidente da Câmara Municipal de S. Vicente.
 
1965  e seguintes – Médico do Hospital de S. Vicente.
 
1972 – Publica a Colectânea de contos, Contra Mar e Vento.  Editora Europa/América.
 
1972/73 – Deslocações profissionais periódicas à Ilha de S. Nicolau, onde inicia os manuscritos do futuro romance, Ilhéu de Contenda.
1973 – Nomeado Adjunto do Chefe da Repartição de Saúde e Assistência de Barlavento.
1975 – Pertence ao grande número de cabo-verdianos que deixa Cabo Verde por motivos que se prenderam com os tumultuosos e conturbados momentos primeiros, vividos com os anúncios da Independência do Arquipélago. Discorda do projecto de unidade Guiné/Cabo Verde do PAIGC e parte para Portugal onde fixa residência no Concelho de Oeiras e retoma a vida profissional.
1978 – Publica o romance Ilhéu de Contenda, pela Editorial «O Século». Aposenta-se e continua muito ligado à sua terra natal à qual dedica toda a sua produção literária.
1980 – Inicia e mantém por largos anos, uma colaboração de índole cultural, com o mensário «Terra Nova».
1981 e seguintes -  Reconcilia-se, faz as pazes, com o então governo e o regime de Partido único, agora PAICV. A forçada Unidade Guiné/Cabo Verde havia erodido com o Golpe militar na Guiné-Bissau(1980). São-lhe devolvidos os bens  então confiscados e nacionalizados no Fogo e em S. Vicente.
É também altura em que é frequentemente convidado pelo Governo de Cabo Verde, Ministério da Cultura e pela Associação de Escritores Cabo-verdianos. Desloca-se ao país amiudadamente. A última visita a Cabo Verde verificou-se nos finais de 2005). Iniciam-se em Cabo Verde, a partir de então, os prémios literários, as condecorações e as homenagens ao escritor que é Teixeira de Sousa.
1984 – Publica Capitão de Mar e Terra, romance – Publicações Europa – América.
1986 - Recebe o prémio «Claridade» pela sua obra, Ilhéu de Contenda, outorgada pelo Ministério da Cultura e Informação de Cabo Verde.
1987 – Publica Xaguate, romance, Publicações Europa – América.
1988 – Prémio «Jorge Barbosa» da Associação de Escritores Cabo-verdianos para o romance Capitão de Mar e Terra.
1990 – Publica Djunga, romance, Publicações Europa – América.
1992 – Prémio «Fialho de Almeida» da Sociedade Portuguesa de Escritores Médicos, para o romance Djunga.
1994 – Publica Entre Duas Bandeiras, romance, Publicações Europa – América.
1998 – Publica Na Ribeira de Deus, romance.
2005 – Publica Oh Mar de Túrbidas Vagas, romance.
2006 – Faleceu em Portugal, (onde residia desde 1975) a 3 de Março, vítima de atropelamento.
 

 

 

A DESCOLONIZAÇÃO E O VERÃO QUENTE *

sexta-feira, 17 de junho de 2016

 
Junho e Julho são os meses das independências das antigas colónias portuguesas de África, com excepção de Angola e Guiné-Bissau por razões que bem se conhecem. A de Moçambique é já a 25 de Junho, a de Cabo Verde a 5 de Julho e a de São Tomé e Príncipe a 12 do mesmo mês. O período que antecedeu a estas independências foi vivido com grande intensidade em Portugal sob o lema da “descolonização”. Não foi fácil, nem simples, nem isento, nem linear, nem transparente. Bem ao contrário, foi um período muito conturbado, truculento, nebuloso, doloroso  ̶  para centenas de milhares ou mesmo milhões de portugueses  ̶  e de festa (para outros tantos) da História de Portugal com as suas colónias de África. Este período, em que quase tudo se decidiu para as então colónias foi apelidado, no seu auge, de “Verão Quente” que depois deu lugar ao PREC (Processo Revolucionário Em Curso), que só terminaria a 25 de Novembro de 1975. É sobre ele que recuperamos, por nos parecer oportuno ̶ estamos a celebrar as independências ̶ recordar esse tempo da nossa História comum, um pequeno artigo de autoria de Helena  Matos, publicado no “Público” em 2004 que, com a devida vénia, a seguir transcrevemos:

A descolonização é o principal e quase exclusivo tópico da agenda política de Portugal nesse Verão de 1974, em que, recorde-se, o país está ainda muito longe do clima revolucionário das ocupações e nacionalizações que o há-de caracterizar meses depois. Antes pelo contrário, as greves são frequentemente apresentadas como reaccionárias pelo PCP e pelo MFA, sublinha-se mesmo que os trabalhadores portugueses são, na Europa, dos que usufruem horários mais reduzidos e mobilizam-se os trabalhadores para trabalharem um domingo, oferecendo o salário desse dia “à Nação”. A revolução podia esperar. A descolonização não. A expressão “acelerar o processo de descolonização” torna-se recorrente, após o 28 de Setembro, nas páginas dos jornais, na boca dos responsáveis, e alinhava-se, numa desconcertante harmonia, ao longo das colunas dos mesmos periódicos que garantiam semanas antes que Angola teria direito a três deputados na futura Assembleia Constituinte. Pura esquizofrenia é talvez a expressão que melhor define a forma como nesse Verão de 1974 os jornais portugueses acompanham o que acontece nas então colónias portuguesas: celebra-se a sua libertação do colonialismo português e simultaneamente apresenta-se como positivo entregar os destinos desses povos e territórios a líderes não só fortemente antidemocráticos como até, em alguns casos, a movimentos recompostos na urgência da anunciada independência. A este título é exemplar o caso do MPLA que em Agosto de 1974, se reunia em Lusaca para “in extremis” conseguir apresentar um líder e sanar as profundas divergências entre Agostinho Neto, Mário de Andrade e Daniel Chipenda.

Com a mesma reverência com que durante décadas reproduziram as declarações de Salazar, os jornais portugueses enchem, nesse Verão de 1974, páginas e páginas com declarações oficiais. Mas com a diferença substancial de que já não existia censura. Nesse Verão de 1974, sem sombra de lápis azul a cortar-lhes alguma observação menos adequada, os jornais portugueses transformaram-se numa espécie de imenso “Diário da Manhã” (jornal de propaganda do salazarismo). Uma das traves mestras desta imprensa de propaganda é a tese de que África estava a ser libertada e quando alguma notícia sai desta versão oficial é evidente a dificuldade da nova classe política portuguesa em lidar com jornalistas que se assumam como jornalistas e não como amigos, companheiros ou camaradas.

Recorde-se, por exemplo, a entrevista que Vasco Gonçalves dá à BBC em Setembro de 1974, e em que é patente o seu desconforto pela cobertura que a BBC fizera da revolta de Lourenço Marques: “A BBC era uma fonte de informação séria no regime anterior ao 25 de Abril. (…) Ora, aquando da rebelião em Lourenço Marques, a BBC deu guarida às afirmações, mentiras e calúnias que esse grupo de mercenários e criminosos atirava para o ar através do Rádio Clube de Moçambique, que tinha ocupado.”

Antes pelo contrário, da imprensa portuguesa pouco tinha Vasco Gonçalves para se queixar. De facto, fora como “mercenários e criminosos” que sumariamente foram rotulados por boa parte da imprensa portuguesa aqueles que contestaram quer os acordos de Lusaca quer todos os outros acordos que definiram as condições da independência das colónias. Nesta linha mais de propaganda do que de informação, os jornais portugueses, ao mesmo tempo que faziam títulos como “Libertar o povo de Cabo Verde das grilhetas colonialistas”, atiravam, para o final destas empolgadas notícias, umas breves e veladas referências à contestação pelos cabo-verdianos desta independência que os amarrava à Guiné. Mesmo questões simbolicamente tão importantes quanto a reabertura do campo de concentração do Tarrafal são votadas ao silêncio. Aliás, não deixa de ser significativo que ainda hoje raramente se refira que o Campo do Tarrafal foi reaberto pelas autoridades portuguesas após o 25 de Abril, para aí serem internados vários cabo-verdianos que se opunham ao PAIGC. Note-se, contudo, que o destino destes presos foi apesar de tudo melhor que aquele que foi reservado aos comandos guineenses que haviam integrado o exército português: enquanto estes presos cabo-verdianos do Tarrafal vieram para Portugal, em 1975, com as últimas tropas portuguesas, o fuzilamento foi o destino de muitos dos comandos guineenses.

Os portugueses não queriam ver estragada a sua festa e estavam dispostos a fechar os olhos àquilo que a conspurcasse. Inicialmente Portugal não quer ouvir falar de ponte aérea entre as antigas colónias e Lisboa. A própria ajuda internacional para os refugiados começa por ser recusada com receio de que imagem de Portugal seja prejudicada.

Enquanto eles não se deitaram à espera de nada no aeroporto da Portela, enquanto não se lhes viram os filhos brancos, pretos e mulatos, enquanto não se lhes viram as mãos e o rosto marcados pelo sol de África, foi fácil estigmatizá-los na figura do grande explorador racista, de chicote na mão. E uma vez chegados a Portugal, muitos deles vão conseguir mais facilmente um subsídio ou alojamento pago pelo Estado português em hotéis de luxo do que inscrever-se num sindicato ou ter acesso a um emprego nas empresas nacionalizadas. Eles não podiam ter sido simples trabalhadores. Eles tinham tido de ser capitalistas. Há escolas em que se aprovam moções contra a admissão de professores vindos das ex-colónias dado o seu reaccionarismo. Como claramente intuiu Gabriel García Márquez nas reportagens que, em 1975, faz em Portugal: “Uma má solução em Angola obrigará ao regresso a Portugal de 600 mil colonos ressentidos, que irão reforçar as fileiras da reacção e criar conflitos económicos.” Empenhado e militante, Gabriel García Márquez sabia que esses refugiados, a que ele chama “colonos ressentidos”, serão um forte borrão de dor nesse universo festivo que ele e tantos outros jornalistas desenhavam da revolução dos cravos. Dessa revolução em que se usaram flores em vez de balas. Em que não houve vítimas… Quando eles chegaram, estragaram a festa. No desespero que traziam estampado nos olhos, os portugueses viram o reverso das utopias libertadoras. Desconheço se a imagem dos seus caixotes arrumados ao longo do Tejo terá contribuído para que algumas chefias militares e políticas que tinham fechado os olhos à catástrofe da descolonização resolvessem dar por encerrado o PREC. Mas independentemente dos motivos que tenham detonado as acções de cada um dos protagonistas, encontramos um bizarro fio teimando em ligar a agonia de Angola ao destino de Portugal: catorze dias depois de o alto-comissário português em Angola ter entregue simbolicamente o poder ao povo angolano tinha lugar, em Portugal, o 25 de Novembro. A festa acabara em Portugal. Em África, a farsa podia continuar. (Fim de transcrição)

*Título da nossa responsabilidade

A propósito do Afro-pessimismo…

domingo, 12 de junho de 2016

Vem isto à baila ou ao terreiro, como popularmente se dizia, por ter ouvido, ou lido, há já algum tempo decorrido, uma entrevista, creio que do então presidente do CA do BAD, (Banco Africano do Desenvolvimento) afirmando que a instituição havia ultrapassado o já proverbial: “afro pessimismo.” Acredito que sim. Pois que se trata de uma instituição financeira com e de capital. Claro que está próspera. Não duvido.

O problema em termos de afro-pessimismo que muitos de nós reconhece e que vem aumentando na nova geração, não é tanto sobre a capacidade financeira, económica do Continente africano. Tem muito petróleo, tem muita riqueza no subsolo, etc, etc...Só que a gestão, a distribuição de riqueza, a cidadania, o respeito pelos direitos do cidadão, a educação, a saúde, o desenvolvimento e o bem-estar da população, andam na maior dos países ricos de Africa, pelas "ruas da amargura". Isto é que dói, envergonha e faz aumentar o tal afro-pessimismo.

Eu sou afro-pessimista, quando vejo que a preocupação da maior parte dos altos dirigentes dos países do Continente negro é o de se manter a todo o custo na cadeira do poder – através de guerras civis, (os Golpes de Estado, parece que vêm diminuindo de frequência) da eliminação da população, de adversários, de alteração a bel-prazer da Lei fundamental; a não acatar o veredicto das urnas, entre outras ilegalidades e barbáries, à luz do nosso entendimento.

Sou afro-pessimista quando leio que na Nigéria, o país mais rico desta banda de Àfrica, 60% da sua população vive abaixo do limiar da pobreza. O meu afro-pessimismo advém também do triste espectáculo, que se acaba por saber, do desenfreado amealhar de riqueza por parte de altos dirigentes. Algumas dessas riquezas conseguidas, com menção quase que expressa de que ninguém, num determinado país, poderá ser mais rico do que o Presidente da República. Logo, o mais alto dignitário da Nação com direitos pessoalizados sobre toda os ricos recursos do país, como se de herança paterna se tratasse. Reparem agora no povo, é vê-lo ou, grande parte dele, mal nutrido, com curta esperança de vida, com pouca escolaridade, sem acesso aos cuidados básicos de saúde e a demonstrar patamares bem grandes de retrocesso civilizacional.

O meu afro-pessimismo aumenta quando hoje vejo as mortes - de senegaleses e de muitos outros países africanos - no mar, em demanda do “eldorado” da Europa (com testemunhos, ouvidos e vistos, em documentários televisivos) e os responsáveis dos países de origem, fingem nada ter que ver com esta tremenda tragédia! Num completo desprezo (assim parece) pela vida desses seres humanos, patrícios fugidos da miséria da terra natal, à procura de sobrevivência que não chegaram a ter..

Esta é a minha dor de Africa do século XXI!

Por favor, não intentem trazer para estas ilhas, com bastos problemas estruturais, os péssimos exemplos do Continente vizinho! De forma alguma. Já nos bastam os empecilhos endógenos que nos atrasam o desenvolvimento. Também tivemos e continuamos a ter a nossa emigração, mais do que secular, em busca de vida melhor noutras paragens do mundo.

Admiro imenso os artistas que cantam a Àfrica,  louvando-a. Eu creio que os que assim procedem, louvam-na ou a pensar num futuro melhor do que o que os tempos hodiernos auguram ou, assim a cantam possuídos de alguma nostalgia sobre algo em que acreditaram anteriormente… Só desta forma, logro perceber algumas das canções e os seus poemas nos tempos actuais. Outros, cantam-na “chorando.” Escutem-se para exemplo - grande e significativa parte - as letras das canções guineenses actuais (desde a independência a esta parte).  Quando cantam a terra amada, são lamentos e mais lamentos, num autêntico choro.

Querem mais afro-pessimismo do que isto? Vindo dos seus próprios artistas, poetas e compositores? Creio que a certificação do mal assim espelhado, ratifica infelizmente, o que o meu escrito quis dizer.

A NOSSA CIVILIZAÇÃO CAMINHA PARA A ENTROPIA?

quarta-feira, 8 de junho de 2016

 
 No dia 12 do passado mês de Maio, assisti no Convento de Cristo, de Tomar, a uma conferência proferida pelo coronel Nuno Lemos Pires sobre geopolítica − “Ameaças e riscos tangíveis e intangíveis, do global ao nacional”. O conferencista, fazendo uso de uma linguagem clara e elucidativa, e servindo-se de ilustrações convincentes, descreveu e analisou o cenário das múltiplas ameaças que impendem actualmente sobre o homem e o planeta: a degradação ambiental; a exploração económica irracional dos bens naturais; o esgotamento das reservas de água doce; a explosão demográfica nas regiões mais carenciadas; o terrorismo internacional e os conflitos regionais incontroláveis; o êxodo das populações em direcção às regiões mais ricas, etc.

     Confirmou-se-me a impressão pessimista de que o geossistema (conjunto formado pelo sistema ecológico e o sistema social) é neste momento um compósito perigoso e pouco recomendável para o futuro da humanidade.

     Recentemente, li um artigo de José António Saraiva intitulado “INTERCÂMBIO TÊXTIL”, publicado no jornal Sol. Nele afirma que “há diversas provas de que a nossa civilização está a chegar ao fim. Uma delas consiste na perda de referências que durante séculos permitiram organizar o pensamento”. E fundamenta o seu diagnóstico apontando a arte e as suas tendências actuais, desde a pintura e a música ao cinema e à literatura, como a maior evidência desse fenómeno. Mas não chega a insinuar se essa perda de referências exprime ou não em si mesma uma intenção de arte.

     Depois adianta que “não só nas artes se perderam as referências”. E então cita comportamentos sociais aberrantes que denotam falta de nexo: cabelos cuidadosamente despenteados; fralda da camisa por fora das calças; sapatos a que se retiram os atacadores. Tudo sinais a aparentar desprezo pelas convenções, “mas que no fundo representam exactamente o contrário: um seguidismo cego em relação à moda”. E remata assim: “As calças compradas na loja já rotas constituem o exemplo máximo de uma civilização que chegou ao fim da linha e já não consegue inventar mais nada. Então põe-se a rasgar deliberadamente a roupa nova. É o nonsense no seu máximo esplendor!”.

     Mas esse olhar de José António Saraiva abarca apenas a espuma da realidade, e é por isso que lhe basta a arte para fundamentar os seus juízos. De outro modo, teria de descer ao terreno da antropologia e da ciência política. Sim, a arte permite toda a metáfora possível, porque os nossos preconceitos culturais são incapazes de lhe impor limites, quer ao seu abstraccionismo quer à sua ânsia de transgressão. O fenómeno das “calças rotas” e outros comportamentos similares são indícios do esgotamento dos nossos padrões de satisfação, de ruptura com as convenções, e de algum modo enquadram-se numa prosaica intenção de arte ou filosofia de vida, talvez reivindicando um qualquer “neo-existencialismo”. É como se a História e a Cultura nos tenham colocado num beco sem saída.

     No entanto, só o homem ocidental se pode dar ao luxo de querer subverter as referências do real, trocando as voltas ao mapeamento da sua caminhada. Resolvidos quase todos os seus problemas, incapaz já de se surpreender com o que a sociedade de consumo lhe oferece, sobra-lhe disponibilidade mental para a alienação e até para a mistificação de si próprio. Isto porque subjaz ao mundo das futilidades a espessura de uma realidade outra, bem crua e tenebrosa, onde é inútil usar subterfúgios para iludir o que quer que seja. É, com efeito, a realidade dos lugares do mundo onde o viver custa e dói imenso, onde escasseia a comida, a água e os medicamentos, onde, enfim, a vida se prende por um fio. Aí não sobra tempo para interpelar o sentido da existência, a razão de se estar vivo ou morto, quanto mais para subir a proscénios do ilusório.

     Nada mais ilustrativo que esta tirada final do discurso do José António Saraiva: “Entretanto, para dar algum sentido útil a uma moda sem sentido nenhum, arrisco-me a fazer uma sugestão. Sugiro às empresas de confecção têxtil que façam convénios com ONGs actuando em países do terceiro mundo para enviarem para lá jeans novos – recebendo em troca jeans velhos e usados. Que têm mais valor do que os que se vendem nas lojas, porque foram envelhecidos pelo uso e não de modo artificial. E que podem inclusive ter andado na guerra, exibindo rasgões feitos em combate ou mesmo buracos de balas.”

     Eis, pois, a verdade dura e crua sobre a realidade de um mundo assimétrico, esquisito e cada vez mais instável e perigoso. No conforto das nossas latitudes “primeiro-mundistas” podemos ter dificuldade em lobrigar que tudo se agravou nas últimas décadas e que a ameaça generalizada não é uma ficção: em breve faltará água no planeta para matar a sede da totalidade dos seus habitantes; a produção alimentar não acompanhará o desmesurado crescimento populacional, enquanto os ecossistemas vão destruir-se sem remissão; hordas de milhares e milhares de seres humanos demandarão os territórios onde supõem encontrar a segurança e a sobrevivência, como aliás já está a acontecer; de permeio, os conflitos regionais e de expansão imprevisível poderão ser a pólvora para acelerar a derrocada.

     Todo este cenário resulta da acumulação de sucessivas transgressões que o homem vem cometendo no ecossistema planetário, para satisfazer os seus modelos económicos e sociais. Existem neste momento mais de 7 bilhões de seres humanos no mundo, em que 25% estão abaixo da linha da pobreza e 75% consomem mais recursos do que permite a capacidade de recuperação do planeta. É inimaginável a dimensão que pode vir a atingir a disputa dos espaços vitais. Há quem preveja que o cenário para as próximas décadas é de caos ambiental e humano. Já em 1972, a equipa londrina de The Ecologist publicava um documento cuja conclusão não deixava de ser inquietante: “É lógico recear que, num futuro próximo, ultrapassaremos o limite, na brutalidade dos nossos empreendimentos sobre o meio, e que, por uma série de efeitos acumulados, provoquemos a derrocada da nossa civilização”.

     Ora, quarenta e quatro anos decorridos, quem pode desmentir a severidade angustiante daquela previsão? O homem aperfeiçoou as ferramentas da ciência e da técnica e no entanto paradoxalmente parece mais longe de si próprio, como o demonstram as aberrações do seu comportamento cultural, de que o fenómeno das “calças rotas” é apenas um exemplo menor. Invocando Jeremy Rifkin, cabe perguntar se não estamos já às portas da entropia, ou seja, da desordem irreversível.

 

Tomar, 6 de Junho de 2016

Adriano Miranda Lima

 

As autárquicas: Sondagens ou Primárias?

terça-feira, 7 de junho de 2016

 
Vêm aí as autárquicas. Os candidatos perfilaram primeiro nos bastidores e agora abertamente. As opções são muitas. Mas a qualidade, esta é muito questionável quando são os próprios candidatos que se autoavaliam e se oferecem de forma “despudorada” para exercer as funções electivas. Na verdade o político – regra geral – é um convencido! A menos que a candidatura seja mais para obtenção de um bom emprego (compreender-se-á a imodéstia!) do que vocação para o exercício de um acto cívico.

Surgem, no panorama político, como meio de decisão, de qualificar os candidatos a candidato do partido, as sondagens. Embora discorde do método, tolerá-lo-ia se fosse executado com transparência precedido de esclarecimentos quanto às exigências do cargo e o perfil traçado pelo partido para a concorrência e feitas neste quadro por empresas do ramo, idóneas, recrutadas através de concursos públicos e os resultados tornados públicos com todos os ingredientes que obrigatoriamente acompanham os resultados das sondagens.

Os partidos políticos são associações “privadas” mas o facto de terem responsabilidades públicas, leva-os a assumir determinados actos públicos com a lógica de instituições públicas sob pena destes configurarem um embuste, uma falsificação, uma grosseira manipulação.

Ao contrário do que pretendem os dirigentes políticos de topo, as sondagens para estas situações demonstram a sua incapacidade de decidir e de assumir as suas próprias responsabilidades. A apetência para a manipulação é óbvia, sobretudo numa época em que as redes sociais dominam o marketing do perfil dos concorrentes e os interesses privados e empresariais sempre presentes quando o recrutamento não segue as regras públicas.

De uma forma muito grosseira podem fazer lembrar aqueles programas de radio ou televisão em que facilmente são assumidas as intervenções telefónicas – normalmente feitas por um grupo de pessoas com interesses afins – como uma “amostragem significativa” da vontade popular.

Daqui se pode perguntar, que dados têm os militantes de base – alvo das sondagens para a escolha de um candidato – acerca da capacidade de cada concorrente para o exercício da função? Decidirão apenas pela simpatia? Pelos seus lindos olhos? Sobre nomes dos quais nunca ouviram falar? Não estarão os dirigentes de topo (comissão política, conselho/convenção nacional do partido) mais aptos a decidir quem melhor perfil tem para exercer uma determinada função ou mesmo sob a lógica intrínseca partidária de perfil para vencer as eleições? O ideal é que as duas características se concentrassem na mesma pessoa.

Mas quando assim não é, há que decidir, com a necessária ponderação, qual é o mais importante num determinado momento. E não são as sondagens que o vão decidir. A dimensão dos círculos eleitorais em que toda a gente sabe quem está por trás do telefone de toda a gente – método mais utilizado – as sondagens poderão ser muito facilmente manipuladas, torcidas e conduzidas “tecnicamente” aos resultados que se “pretendem”. Exemplos destes não nos faltaram na política, ao longo destes quinze últimos anos. Eram sempre os mesmos os melhores, os mais simpáticos, os mais benquistos e depois viu-se que não era bem assim!

Não seria preferível realizar-se uma espécie de “primárias” nos respectivos círculos” em que os candidatos apresentariam os seus projectos, os seus programas, os caminhos e meios para os incrementar? Que cada candidato fosse conhecido e escolhido pelo conteúdo da sua mensagem, pela sua capacidade técnica e política e não por maior marketing e meios de divulgação pública. As primárias teriam regras claras como, por exemplo, restritas ao universo dos militantes da área objecto de escrutínio e/ou outras que fossem, também elas, alvo de estudo dos Gabinetes de Estudo dos partidos políticos. Os critérios teriam que ser definidos com clareza, transparência, rigor e universalidade.

Estamos a falar de candidatos a candidato a presidente de câmara.

É que as sondagens, como vêm sendo conduzidas, não configuram outra coisa que um populismo (consultar bases sem informação adequada) primário com pretensões “democráticas” ao considerar todos os candidatos em pé de igualdade – quando o não estão – com capa de uma isenção que não existe. Representam na realidade falta de coragem para tomar decisão e uma fuga às responsabilidades.

As sondagens não são em si um fim senão para as empresas de sondagens. Quando feitas com honestidade e rigor científico são apenas um auxiliar interno de tomadas de decisão com vista a acautelar os seus riscos e não a decisão em si mesma. Deixar que as sondagens decidam é irresponsabilizar-se; é delegar responsabilidade a quem a não deve ter. As sondagens quando bem-feitas são uma probabilidade condicional e não uma certeza.

 

A.   Ferreira