Confirmou-se-me a impressão pessimista de
que o geossistema (conjunto formado pelo sistema ecológico e o sistema social)
é neste momento um compósito perigoso e pouco recomendável para o futuro da
humanidade.
Recentemente, li um artigo de José António
Saraiva intitulado “INTERCÂMBIO TÊXTIL”, publicado no jornal Sol. Nele afirma
que “há diversas provas de que a nossa civilização está a chegar ao fim. Uma
delas consiste na perda de referências que durante séculos permitiram organizar
o pensamento”. E fundamenta o seu diagnóstico apontando a arte e as suas
tendências actuais, desde a pintura e a música ao cinema e à literatura, como a
maior evidência desse fenómeno. Mas não chega a insinuar se essa perda de
referências exprime ou não em si mesma uma intenção de arte.
Depois adianta que “não só nas artes se
perderam as referências”. E então cita comportamentos sociais aberrantes que
denotam falta de nexo: cabelos cuidadosamente despenteados; fralda da camisa
por fora das calças; sapatos a que se retiram os atacadores. Tudo sinais a
aparentar desprezo pelas convenções, “mas que no fundo representam exactamente
o contrário: um seguidismo cego em relação à moda”. E remata assim: “As calças
compradas na loja já rotas constituem o exemplo máximo de uma civilização que
chegou ao fim da linha e já não consegue inventar mais nada. Então põe-se a
rasgar deliberadamente a roupa nova. É o nonsense no seu máximo esplendor!”.
Mas esse olhar de José António Saraiva abarca
apenas a espuma da realidade, e é por isso que lhe basta a arte para
fundamentar os seus juízos. De outro modo, teria de descer ao terreno da
antropologia e da ciência política. Sim, a arte permite toda a metáfora
possível, porque os nossos preconceitos culturais são incapazes de lhe impor
limites, quer ao seu abstraccionismo quer à sua ânsia de transgressão. O
fenómeno das “calças rotas” e outros comportamentos similares são indícios do
esgotamento dos nossos padrões de satisfação, de ruptura com as convenções, e
de algum modo enquadram-se numa prosaica intenção de arte ou filosofia de vida,
talvez reivindicando um qualquer “neo-existencialismo”. É como se a História e
a Cultura nos tenham colocado num beco sem saída.
No entanto, só o homem ocidental se pode
dar ao luxo de querer subverter as referências do real, trocando as voltas ao
mapeamento da sua caminhada. Resolvidos quase todos os seus problemas, incapaz
já de se surpreender com o que a sociedade de consumo lhe oferece, sobra-lhe
disponibilidade mental para a alienação e até para a mistificação de si
próprio. Isto porque subjaz ao mundo das futilidades a espessura de uma
realidade outra, bem crua e tenebrosa, onde é inútil usar subterfúgios para
iludir o que quer que seja. É, com efeito, a realidade dos lugares do mundo
onde o viver custa e dói imenso, onde escasseia a comida, a água e os medicamentos,
onde, enfim, a vida se prende por um fio. Aí não sobra tempo para interpelar o
sentido da existência, a razão de se estar vivo ou morto, quanto mais para
subir a proscénios do ilusório.
Nada mais ilustrativo que esta tirada final
do discurso do José António Saraiva: “Entretanto, para dar algum sentido útil a
uma moda sem sentido nenhum, arrisco-me a fazer uma sugestão. Sugiro às
empresas de confecção têxtil que façam convénios com ONGs actuando em países do
terceiro mundo para enviarem para lá jeans novos – recebendo em troca jeans
velhos e usados. Que têm mais valor do que os que se vendem nas lojas, porque
foram envelhecidos pelo uso e não de modo artificial. E que podem inclusive ter
andado na guerra, exibindo rasgões feitos em combate ou mesmo buracos de balas.”
Eis, pois, a verdade dura e crua sobre a
realidade de um mundo assimétrico, esquisito e cada vez mais instável e
perigoso. No conforto das nossas latitudes “primeiro-mundistas” podemos ter
dificuldade em lobrigar que tudo se agravou nas últimas décadas e que a ameaça
generalizada não é uma ficção: em breve faltará água no planeta para matar a
sede da totalidade dos seus habitantes; a produção alimentar não acompanhará o
desmesurado crescimento populacional, enquanto os ecossistemas vão destruir-se
sem remissão; hordas de milhares e milhares de seres humanos demandarão os
territórios onde supõem encontrar a segurança e a sobrevivência, como aliás já
está a acontecer; de permeio, os conflitos regionais e de expansão imprevisível
poderão ser a pólvora para acelerar a derrocada.
Todo este cenário resulta da acumulação de
sucessivas transgressões que o homem vem cometendo no ecossistema planetário, para
satisfazer os seus modelos económicos e sociais. Existem neste momento mais de
7 bilhões de seres humanos no mundo, em que 25% estão abaixo da linha da
pobreza e 75% consomem mais recursos do que permite a capacidade de recuperação
do planeta. É inimaginável a dimensão que pode vir a atingir a disputa dos
espaços vitais. Há quem preveja que o cenário para as próximas décadas é de
caos ambiental e humano. Já em 1972, a equipa londrina de The Ecologist publicava um documento cuja conclusão não deixava de
ser inquietante: “É lógico recear que, num futuro próximo, ultrapassaremos o
limite, na brutalidade dos nossos empreendimentos sobre o meio, e que, por uma
série de efeitos acumulados, provoquemos a derrocada da nossa civilização”.
Ora, quarenta e quatro anos decorridos,
quem pode desmentir a severidade angustiante daquela previsão? O homem
aperfeiçoou as ferramentas da ciência e da técnica e no entanto paradoxalmente parece
mais longe de si próprio, como o demonstram as aberrações do seu comportamento
cultural, de que o fenómeno das “calças rotas” é apenas um exemplo menor. Invocando
Jeremy Rifkin, cabe perguntar se não estamos já às portas da entropia, ou seja,
da desordem irreversível.
Tomar, 6 de Junho de 2016
Adriano Miranda Lima
1 comentários:
A ganância e o desrespeito pelo prôximo e pela Natureza leva-nos irremediavelmente à catàstrofe
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