Mulheres em tempo de guerra...

segunda-feira, 7 de junho de 2010
Com este título é natural que vários intertextos de outros escritos nos acudam à memória. Mas este particularmente foi-me sugerido pela recente leitura do livro: “ A África no feminino – As Mulheres Portuguesas e a Guerra Colonial” de autoria de Margarida Calafate Ribeiro, investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Um ensaio interessante pois que acaba por ser ao mesmo tempo um testemunho em directo de mulheres, que no período compreendido entre 1961 e 1974 – quase todas então nos vinte anos, bem jovens – acompanharam os maridos que então prestavam serviço militar nas três frentes de guerra, Angola, Guiné e Moçambique.
A autora conseguiu reunir um punhado de depoimentos, que parecerão reais e sinceros ao leitor, pois que despidos de qualquer veleidade ou de pose de heroicidade ou similar, mas também sem grandes lamentos. Antes, muito lucidamente, algumas delas lançam um olhar sem preconceito e sem diabolismos sobre esse fenómeno chamado “guerra colonial” que marcou toda uma geração que foi também a minha.
As entrevistadas ou depoentes, falam dos seus medos, dos medos que sentiram pela iminência de perderem os maridos, os irmãos, os amigos, todos militares. Uns de carreira, outros cumprindo o serviço militar obrigatório. Tudo isso numa guerra a que muitos foram forçados a ir e que quase todas afirmam podia ter sido evitada. Jovens mulheres, alegres e confiantes que deixaram o conforto das suas vidas em Lisboa, Porto, Coimbra e outras cidades e terras portuguesas para estarem ao lado dos maridos em locais inóspitos as mais das vezes, pois que nem sempre ficavam em Luanda, Bissau, ou Lourenço Marques. Mas nenhuma, das depoentes, se sentiu automaticamente heroína ou diferente. Embora muitas tivessem ficado marcadas pelo drama da situação, pelo que viveram, ouviram e assistiram do horrendo de uma guerra. E algumas, por causa dela, a guerra, interrogam-se e questionam se hoje seriam as mulheres que são se não tivessem tido este período anormal, numa fase de vida tão bela como é a da juventude.
Possivelmente a autora fez uma selecção para o livro, dos depoimentos ouvidos. Nisso foi muito feliz, pela excelência de alguns deles e que dão ao leitor testemunhos maduros e inteligentes de uma época histórica das mais importantes, se não a mais importante da história recente de Portugal e das suas ex-colónias no século XX.
Como alguém, que me é muito caro, costuma dizer: só quem não fez a guerra é capaz de lhe entoar loas e remata que a guerra não é nenhum passeio romântico. Cometem-se atrocidades e por vezes algum humanismo dos dois lados dos contendores.
Voltando ao livro, a autora, na introdução fala do silêncio que pairou sobre a guerra colonial, uma guerra sobre a qual mal se falava ou então não se falava, pois que era assunto tabu enquadrado num ambiente sem liberdade de expressão. Diz ela que “o silêncio sobre a guerra seria assim uma forma equivalente ao discurso sobre a guerra, ou seja, numa forma de resposta ao trauma um sentido individual e colectivo” e remete o leitor a uma perspectiva metafórica da guerra nas palavras de uma personagem do romance de Lídia Jorge, A Costa dos Murmúrios: “Se ninguém fotografou, nem escreveu, o que aconteceu durante a noite acabou a madrugada – não chegou a existir.”
Interessante e coincidente para mim, ao ler o livro, “África no feminino – As mulheres portuguesas na Guerra Colonial,” veio-me à memória que aqui há algum tempo iniciei um texto, a que dei o título: “Conacry no feminino – Um tempo e várias Histórias.” O texto andou esquecido um ror de tempo. Felizmente que o computador o guardou. Fui relê-lo.
Afinal, também tivemos as nossas mulheres na guerra da independência na Guiné. Muitas não foram só acompanhar os maridos, também muitas delas participaram quase em directo no teatro de guerra.
E se essas mulheres começassem realmente a falar? Sim, as que lutaram também. E se elas começassem a escrever, a (des)confidencializar, a registar as memórias. Enfim, a fazer um pouco da catarses, do muito-dito e do não-dito que lhes carregam as lembranças de um tempo muito marcante, muito complexo e com o seu quê de glorioso e de traumatizante ao mesmo tempo. Seria bem interessante, para a nossa geração e descendentes, conhecer – com verdade e sem “pinças” – tudo aquilo por que algumas delas, passaram durante o tempo vivido em Conacry ao serviço do Paigc, perseguindo um ideal, que na altura era a independência de Cabo Verde, acoplada à da Guiné? Sim, já imaginaram o que seria? Se elas pegassem na pena? …
Alguma estará a fazê-lo? Seria óptimo!

Elas, as tais mulheres, jovens na altura, no meio de muitos outros homens igualmente jovens, num ambiente de guerra, de permanente desconfiança, de muito medo e, quiçá, de algum assédio. Numa proporcionalidade desequilibrada e desconfortável. O que não terão passado? Elas e alguns dos “seus” homens.

E se nos contassem essas memórias? Com verdade e sem preocupações louvaminhas ou de agradar, ou mesmo ainda do “parecer bem” ou do “parecer mal”. Que nos deixassem saber da perspectiva delas face a uma guerra em que foram por ela apanhadas numa determinada conjuntura histórica. Talvez surgisse uma outra face da mesma moeda…
E se de facto alguma decidisse narrar, cronicar e até mesmo historiar o que por lá passou? Alguma coisa mudaria o nosso entendimento da História recente de Cabo Verde? Do seu processo de independência? Dos seus homens? Dos que lá andaram. Alguns, bem formados moralmente, outros, nem tanto…
Todos heróis? Todos santos? Todos imorais? Claro que não!
E se nos falassem dos seus medos, dos seus terrores, de que como era viver entre muitos homens, cada um com a sua virilidade por desfrutar e em tempo de guerra? Se nos contassem também como era viver no meio do mato ou acantonadas, nos arredores de Conacry, no espaço que Sekou Touré permitiu?
De alguns domingos na capital do país que as acolheu, em que não raro aconteciam espectáculos públicos macabros de enforcamentos de intelectuais, de artistas, de políticos cuja única culpa era a de pensarem diferente do Ditador?
Como imaginar, o dia-a-dia desse punhado de mulheres, dos seus trabalhos, dos seus silêncios e das suas dores. Algumas que para lá foram de “motu próprio” por sua vontade e outras – se calhar a maior parte – apenas por terem de acompanhar os maridos, os companheiros? Sim, e se alguma resolvesse escrever sobre isso? Dos temores sentidos quando pairava a eventualidade do seu homem (porque era sobretudo sobre eles que caía o machado directo da guerra) cair em “desgraça” face à estrutura militar e de comando da luta? Como viver o dilema da solidariedade ou do isolamento?
Enfim, seriam sem dúvida histórias de um tempo de guerra e como tal deverão (ou deveriam?) também ser percebidas.
E se alguma a isso se abalançasse? Ora bem, são já passadas três décadas sobre os acontecimentos. As que participaram na guerra na Guiné são hoje, quase todas, respeitáveis avós, mas ainda lúcidas e em boa idade de pôr cá para fora essas memórias de forma mais pensada, mais interiorizada e melhor elaborada, sobretudo sem fingimentos porque hoje desnecessários e sem o afã de agradar ou de desagradar quem quer que seja, apenas com o belo intuito cívico de um depoimento histórico no mais amplo sentido do termo. Talvez tivéssemos belas surpresas… Quem sabe!
Digam-me lá, se não seria interessante termos a perspectiva feminina da luta na Guiné, pela independência da Guiné e de Cabo Verde? Sim, porque manda a verdade que se diga que até agora o que a contraparte masculina já escreveu, pelo menos no que me foi dado ler, não passa de uma história muito colorida, recheada do já esperado que fosse dito e substancialmente prenhe de heróis… Como se aquela guerra tivesse sido algum filme daqueles bem à maneira americana.
Tal como o realizado pelo livro de Margarida Calafate Ribeiro, também projectei em tempos idos, bater à porta de algumas das minhas patrícias que vivenciaram a guerra e pedir-lhes que nos contassem em depoimentos honestos – não estamos à procura de heroínas, com todo o respeito que disso se possa ter – como foi do ponto de vista delas…
Nunca é tarde!...

Nota actualizada – Este texto foi escrito e já publicado há algum tempo. É minha opinião que o assunto não perde actualidade. Daí voltar a editá-lo.

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