Sim, permitam-me esta homenagem, num tempo de muitas comemorações, muitas medalhas. Algumas sob reserva e interrogação, na minha modesta opinião e salvo opinião mais bem informada, do mérito do medalhado. Outras, ainda bem – há que dizê-lo – bem merecidas! Mas bom, adiante na matéria que aqui me traz, pois o dito atrás não é da minha alçada.
Pois bem, tem havido, dizia eu, muitas distinções para imensa coisa. Daí que pensei que era já chegada a altura de prestar também a minha homenagem – muito modesta e sem encomenda, apenas juntando a voz como cidadã comum – ao periódico que detém ainda o recorde, em termos de números publicados, cerca de duzentas edições Se ultrapassada já estiver esta estatística, o que permanece certo, é que em termos de qualidade dos textos nele inseridos, o antigo periódico detém palmarés.
Trata-se do “Cabo Verde – Boletim de Propaganda e Informação” que há 62 anos, em 1949, iniciava o seu primeiro número e que viria a terminar a sua actividade em 1964.
Teve como Director, (creio que único) Bento Levy, “Advogado e Publicista, natural e residente na cidade da Praia.” (Assim reza a sua biografia)
Sei que o periódico tinha subvenção estatal porque “afecto” à situação vigente e que, portanto, tinha “vida” garantida, ao contrário, por exemplo, da revista que lhe foi ainda coeva, “Claridade” (1936-1962) que fazia recolha de donativo financeiro e material entre os seus fundadores, os seus colaboradores e admiradores dos seus mentores, para se puder publicar, talvez para preservar também a sua liberdade criadora e inovadora! …Mas isto não retira o mérito e o apreço que nos devem merecer, nos dias de hoje, um periódico de cerca de 200 números e que registou, senão os melhores artigos, sem duvida dos melhores escritos explicativos sobre a nossa génese e subsequente evolução cultural enquanto comunidade humana que se tornou distinta e singular. Logo, pôde ainda assim, e dada a época de que falamos, preservar uma boa e bem aproveitada margem de liberdade de expressão e de escolha de temas para os seus colaboradores.
Durante a sua existência, teve colaboradores da mais alta craveira intelectual, deste Arquipélago. Referências, ainda hoje, incontornáveis no nosso universo literário e cultural. A exemplificar: José Lopes, Jorge Barbosa – nota curiosa, o facto deste poeta, para além de regular colaborador ter sido também o Correspondente do Boletim no Sal e em S. Vicente, enquanto chefe dos serviços aduaneiros nas ilhas mencionadas – Baltazar Lopes da Silva, João Lopes, Jaime Figueiredo, António Aurélio Gonçalves, Manuel Lopes, Manuel Ferreira, Félix Monteiro, Henrique Teixeira de Sousa, este último fez questão em afirmar, numa entrevista dada a Michel Laban, em 1987, que raro teria sido o número do «Cabo Verde» em que ele não tivesse escrito um artigo. Do mesmo modo, Maria Helena Spencer, colaboradora permanente, cronista/repórter/contista. Na mesma linha de colaboração, Guilherme Rocheteau, Nuno Miranda, quem, juntamente com Carlos Alberto Leite, coordenou uma página cultural. De Arnaldo Vasconcelos França, destaque-se de entre a sua valiosa colaboração para o Boletim, o extenso artigo, “Notas sobre poesia e ficção cabo-verdianas” que mereceu ser publicado como “separata” ao «Cabo Verde nº 1/57-1962 (nova fase)» e que ainda hoje constitui um ensaio sério para o estudo e para o conhecimento da trajectória da historiografia literária nacional. Na mesma sequência, distinguiria também a excelente análise «Apontamentos sobre a poesia cabo-verdiana» de Amílcar Lopes Cabral, inserida num dos números do Boletim, sobre Literatura cabo-verdiana na qual o autor elogia «Claridade» como sendo o que de melhor havia acontecido, até então, ao panorama literário das ilhas.
Foi no «Cabo Verde» que se estreou – tinha ele 17 anos – o grande poeta, ensaísta e contista, Gabriel Mariano, cujas primeiras colaborações datam do seu sexto ano do Liceu, em 1950, com o conto «O Roubo» primeiro prémio do concurso organizado pelo Boletim: “melhor Contista do ano” ao lado dos finalistas, Francisco de Sales Lopes da Silva e de José André Leitão da Graça, respectivamente segundo e terceiro classificados, igualmente alunos do sexto ano do velho Liceu de Gil Eanes. Do mesmo autor, Gabriel Lopes da Silva Mariano e igualmente publicado num dos números de 1950, o interessante ensaio: «O Amor na poesia de Eugénio Tavares».
A poetisa Yolanda Morazzo, os poetas Aguinaldo Fonseca, Terêncio Anahory, Ovídio Martins, Jorge Pedro Barbosa, Daniel Filipe, Pedro Duarte, e muitos mais deixaram os seus poemas inseridos neste periódico.
Foi ao “Cabo Verde,” em 1951, que o irmão do então malogrado poeta António Nunes – precocemente atingido pela doença que o levaria à morte em 1949 – confiou para publicação os manuscritos originais contendo poemas postumamente dados à estampa.
É igualmente neste mensário que encontrámos as transcrições em vários números, das sessões que constituíram a «Mesa Redonda sobre o Homem cabo-verdiano» (1957-58) em que se registaram intervenções dos nossos notáveis – escolho ao acaso: Daniel Tavares, Baltasar Lopes, Henrique Teixeira de Sousa, António Aurélio Gonçalves, entre outros, sob coordenação do Prof. Almerindo Lessa – sobre a idiossincrasia do Homem cabo-verdiano; ou, do mesmo modo, o registo escrito das afamadas crónicas de Baltasar Lopes da Silva, lidas aos microfones da Rádio Barlavento como repostas à celeuma levantada às conclusões a que terá chegado o estudo que o sociólogo brasileiro, Gilberto Freire elaborou após ter visitado, durante escassos dias, estas Ilhas. Um acrescento curioso sobre o mesmo caso foi a opinião contrária manifestada por Maria Helena Spencer, num dos seus artigos, pois que achava que Gilberto Freire era capaz de ter alguma razão naquilo que dissera sobre as ilhas. Fica o registo, pois demonstra a atenção que tal polémica despertou,
Continuando no «Cabo Verde», convinha igualmente destacar alguns ensaios científicos sobre o problema da seca e das estiagens cíclicas do Arquipélago. Neste campo registem-se as colaborações de Humberto Duarte Fonseca. Sobre a saúde, para além do já citado médico/escritor Teixeira de Sousa, temos textos de Sócrates Monteiro, João Meira, João Morais, José Duarte Fonseca, entre outros. E sobre a educação, destaco as colaborações de Guilherme Chantre, Edgar Santos, Maria Madalena Monteiro. Que não vá sem acrescentar as páginas desportivas com as assinaturas de Joaquim Ribeiro e de Evandro Matos.
Tem todo o mérito evocar que foi no Cabo Verde que se deu à estampa o «Suplemento Cultural» 1958 que pretendeu ser uma viragem ou uma novidade na poética nacional.
Mais tarde, na década de sessenta do século passado, o «Cabo Verde» viria a revelar-nos poetas como Mário Fonseca, Arménio Vieira – este último Prémio Camões, 2009 – e ambos em estreia absoluta, na publicação dos seus poemas; mas igualmente continuaram a revelar-se nas páginas deste Boletim, poetas como: Corsino Fortes, Onésimo Silveira, Teobaldo Virgínio. Foi também através das suas páginas que pudemos ler contistas, nas suas melhores narrativas, como: Virgílio Pires, Maria Margarida Mascarenhas e Maria Haydeia Avelino Pires.
E assim, ficaram patentes em quase todos os números desta revista/Boletim nas suas páginas, escritos reveladores da idiossincrasia, das alegrias, dos infortúnios e das vicissitudes do cabo-verdiano, na terra e no estrangeiro. Tudo caldeado em inúmeras análises lúcidas, históricas e sociologicamente profundas, que o «Cabo Verde» publicou ao longo dos seus quase duas centenas de números. Os artigos de estudo e de opinião aí registados foram e são ilustrativas de cuidadas elaborações de mentes atentas, estudiosas e sobretudo conhecedoras do que falavam; e mais, o leitor percebe que só escreviam depois de já dominados os temas com a segurança e a tranquilidade que só um aturado labor intelectual deixa depois escorrer na fala e na pena
Páginas bem escritas. Num português dulcíssimo. Como já quase não se usa nestas paragens. Para além de bem e escorreitamente escritas, os conteúdos, os assuntos saíram quase todos maduros e intelectualmente pensados, formulados e reformulados, num exercício sério dos seus autores, para ser lido e entendido pelos leitores, sobre a terra, as suas gentes e os seus problemas e que chegaram até aos nossos dias imbuídos de muita clarividência.
Deixem-me aqui expressar os dias, as horas, de belíssimas leituras e daquilo que apreendi e aprendi ao longo dos anos, sobre a cultura e a literatura do meu país, respigadas nas folhas deste antigo mensário do século XX.
É minha convicção que o «Cabo Verde» continua a ser uma excelente fonte de informação, de documentação, de pesquisa e, fundamentalmente, uma referência obrigatória para quem procure textos que melhor ilustraram e continuam a ilustrar a praxis cultural e literária cabo-verdianas.
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