«BALTASAR LOPES, Um homem arquipélago na linha de todas as batalhas»

quarta-feira, 29 de junho de 2011
APRESENTAÇÃO DO LIVRO DE LEÃO LOPES
Por Rui Figueiredo Soares

Senhor Presidente do Instituto da Biblioteca e do Livro,
Distintos Convidados e Amigos,
Caro Leão,

Há vozes que não se calam.

Há pessoas que fazem morada eterna na nossa memória colectiva.

Nhô Baltas é uma delas.

E, no SOLILÓQUIO que nos legou Osvaldo Alcântara, continua a baralhar a água lenta em que desagua a nossa Sabedoria…

É do pedacinho de memória colectiva em mim ancorada que vos falarei hoje, por ocasião do lançamento, na Praia, da obra-prima de Leão Lopes, sugestivamente intitulada BALTASAR LOPES, Um homem arquipélago na linha de todas as batalhas.

Uma homenagem conjunta ao Amigo e Mestre Baltasar Lopes, enquadrada nas Edições Ponto & Vírgula, numa evocação mista de saudade e alegria dos anos riquíssimos da Revista, entusiasticamente aplaudida e assumida por Nhô Baltas, desde a primeira hora.

Faltar-me-á certamente engenho e arte para a ousada tarefa de vos falar do conhecido Mestre Baltasar Lopes (mormente depois da cuidada apresentação feita por Leão), mas tentarei compensar essa ausência de atributos com notas da emoção de quem lembra uma velha melodia, não triste como a de Chiquinho, mas sempre alegre, como um diapasão persistente no roteiro da minha vida.

Falar-vos-ei hoje do meu amigo Nhô Baltas, o meu professor desde o primeiro ano no Liceu Gil Eanes e o meu Mestre inesquecível, na linha de todas as batalhas.

Trago apenas um testemunho, povoado de notas esparsas, que gostaria de alçar em público agradecimento, pelo raro privilégio de aprender da vida com um Homem da estatura de Baltasar Lopes.

Porém, não sem antes vos dizer que li de uma assentada a excelente obra de Leão, que constitui um importantíssimo contributo para o engrandecimento da cabo-verdianidade, revelando uma parte do itinerário biográfico de um dos seus, se não o seu, mais importante construtor, Baltasar Lopes.

Leão Lopes fez um trabalho de grande rigor científico, no qual pôs também, à imagem do biografado, todo o seu coração, e oferece-nos uma oportunidade ímpar de entender o homem Baltasar Lopes, no seu tempo, dentro e fora das fronteiras das Ilhas.

Toda a reconhecida arte do autor está no livro, que em mim evocou o resultado da sábia paciência do savoir-faire de um artista plástico: um monumento àquele esteve na linha de todas as batalhas, com os pés bem fincados nesta terra que o deslumbrou.

Leão mostra-nos o poeta, o professor, o filólogo, o ensaísta, o romancista, o advogado, o homem do povo, o político, facetas mais conhecidas de Baltasar Lopes.
Mas revela-nos igualmente:

• O amante do desporto, praticante de futebol e atletismo, nos tempos de Universidade, em Lisboa;

• O executante de vários instrumentos musicais, que participa na génese da morna Eclipse de B. Leza, faz serenatas prometidas à amada em Lajedos e incentiva o estudo da música, com um projecto de Conservatório em Mindelo, antevendo a dimensão que Cabo Verde devia ganhar através dos sues músicos;

• O contestatário político, no centro das operações da revolta encabeçada pelo Capitão Ambrósio;

• A religiosidade de Osvaldo Alcântara, não pseudónimo, nem heterónimo, simplesmente o “outro” com Baltasar dentro. O mais um do Grupo Claridoso, o pen-man, no dizer do próprio Baltasar Lopes, que viveu na mais absoluta clandestinidade durante 23 anos, aos olhos da PIDE, que, entretanto avoluma o dossier desse misterioso personagem;

• O aluno adolescente do Liceu Camões em Lisboa, que sentia muita vocação para Medicina e gostaria de fazer esse curso, mas acabou por fazer Direito e Filologia Românica, depois de se ter matriculado em Germânicas, com um segredo na manga: estudar sempre, todos os dias, que lhe valeu a elevada classificação de dezassete valores nas duas licenciaturas;

• A formação do “adjectivamente” advogado, que, a meio do curso se pergunta “…diabo, para que me serve este curso de Direito?” e torna-se substancialmente professor, para gáudio de inúmeras gerações de cabo-verdianos, exercendo de forma única o magistério no Liceu de S. Vicente;

• O professor da boina basca comprada na Loja de Toi Pombinha, rapidamente imitado por alunos do Liceu e por populares;

• A circunspecção dos amores dos tempos universitários e dos de professorado, até à paixão da sua vida, marcada por travessias do canal, compasso de morna e notas de serenatas.

Leão vai às raízes da existência de Baltasar Lopes, observa atentamente a evolução da sua personalidade, conduz-nos de forma magistral à sua maturidade intelectual, política e social e à consequente entrada na vida pública do homem pronto para actuar, aos trinta e três anos de idade, desvendando-nos facetas do grande Mestre, até hoje desconhecidas do grande público.

Leão quer surpreender e registar todas as dimensões do homem Baltasar Lopes, e, na sua qualidade de artista multifacetado, lega-nos uma obra inesquecível sobre um génio incontornável da Nação Cabo-verdiana.

Se cada coisa tem o seu tempo, este já era o do início do grande empreendimento que é o estudo sistemático da obra de Baltasar Lopes, e Leão deixa o seu contributo inegável, acenando, no Epílogo, novas pistas que devem ser prosseguidas.

A apresentação cuidada e minuciosa feita por Leão guia-nos de forma perfeita na viagem que ele empreendeu no rico universo “baltasariano”.

Depois da apresentação, é fácil adivinhar o tesouro talhado na lavra de Leão.
Não resisto, contudo, a aguçar mais a vossa curiosidade para a descoberta de muitas batalhas que, com o coração sempre na mão, o homem arquipélago Baltasar Lopes enfrentou e venceu.

O livro de Leão trouxe-me muitas revelações sobre o percurso inicial de Nhô Baltas (nos primeiros trinta e três anos), mas podem crer que nele encontrei as raízes do mesmo homem íntegro, determinado, inteligente, perspicaz, amigo e profundo conhecedor das pessoas e das coisas, o mesmo arauto indefectível da cabo-verdianidade.

Reencontrei a essência do excelente professor, atento a cada pessoa entregue à sua missão de educador, com um capital de milhares de alunos e todos amigos, para os quais era evidente a paixão do Mestre por ensinar e partilhar o saber, com inegável espírito de rigor, com o sentimento de euforia e de exaltação que tive o prazer de constatar no dia da sua última lição no Gil Eanes.

Reencontrei o mesmo ímpeto e a mesma coragem do defensor intransigente da liberdade, a que me habituou como conselheiro em várias iniciativas literárias e políticas, em que tive a honra de participar:

• No programa radiofónico Nôs Terra, de clara contestação ao colonialismo português, entre 1973 e 1974, que lhe valeu uma anotação da PIDE-DGS: Cuidado, estes jovens são dirigidos pelo Dr. Baltasar Lopes!

• Na Festa de Finalistas do meu ano, a 27 de Abril de 1974 (dois dias depois da Revolução dos Cravos), em que o Reitor do Liceu mandou apagar os títulos dos poemas contestatários (entre outros, Flagelados do Vento Leste e Poema diferente) que tínhamos escrito nas paredes do Salão, perante a indefinição ainda em Cabo Verde: o comentário do Dr. Baltasar foi: Ó homens, é como apresentar um prato de comida a um faminto e tirar-lhe o garfo; ele come com mãos ou com a boca.

• No Ponto & Vírgula, em que participou de corpo e alma, com a mesma combatividade e produtividade, brindando-nos com as crónicas intituladas VARIA QUAEDAM, revigorado por aquilo que, afinal, foi um compromisso de combate pela resistência cultural: investigar e dar a conhecer sobre a cabo-verdianidade.

Obrigado, Leão, pelos anos de intenso labor que, em mim e nos inúmeros discípulos do Mestre, confirmam a grandeza do Homem com o qual tivemos o privilégio de conviver.

Estou seguro de que Nhô Baltas colheu o fruto que Osvaldo Alcântara vaticinou no Deslumbramento da paisagem árida: o fruto da vitória lenta que sempre marchou para ele com passos silenciosos.

Para terminar, uma confissão, envolta no véu invisível das coisas que saem do fundo do coração: estou aqui hoje também porque, como o caçador de heranças do Capitão das Ilhas, queria confessar publicamente a minha gratidão pela riqueza que Nhô Baltas me deixou e pela sua dimensão desmesurada do mundo.

Muito obrigado pela vossa atenção.

Rui Figueiredo Soares

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