Aprecio o programa televisivo «Conversa em Dia» conduzido pela Jornalista Margarida Fontes. Regra geral, quando o tema me interessa e a ocasião propicia, vejo-o e escuto-o.
Aqui há dias foi uma dessas ocasiões. O tema versava “Língua Materna” e bem intencional, pois que, se assinalava com o referido programa, o Dia Internacional da Língua Materna.
Dos três convidados, dois são conhecidos especialistas do nosso Crioulo cabo-verdiano e o outro convidado, embora do ramo das ciências ditas exactas e que se apresentou nessa qualidade em que a transversalidade linguística e outras, também faculta. Aliás, no dizer de Georges Mounin, a Linguística é: «a ciência – piloto das ciências humanas» e que interpela etnólogos, filósofos, sociólogos, psicanalistas, estetas, críticos, entre outros cientistas.
De qualquer forma, e em relação a este último participante do painel do programa em apreço, é na minha perspectiva, igualmente, um estudioso e um atento observador dos fenómenos por que passam as Línguas cabo-verdianas.
Apraz-me registar que qualquer deles esteve bem nas posições expendidas. Destas, algumas, já expectáveis, outras, interessantemente em mudança de paradigma conceptual, o que só abona o estudioso das questões complexas, diversas e mutáveis que desafiam as nossas duas línguas vivas, faladas e escritas entre nós.
Em jeito de resumo, diria que cada um dos intervenientes defendeu posições a sua opinião (ideia, pensamento) com a lógica e o conhecimento respeitáveis de quem sabe e se debruça sobre a matéria.
Mas eis que o meu interesse de ouvinte, acabou por se centrar, surpreendentemente, no modo como se expressaram – falaram em Crioulo – os dois especialistas do Crioulo, já que o outro convidado do programa, aludindo ao bilinguismo de que se compõe estas ilhas, fez questão em se expressar nos dois veículos linguísticos, (o português e o crioulo).
Efectivamente, pude degustar algumas passagens fabulosas, saborosas, em que o já considerado “pecado” da descrioulização ou, o que jocosamente, chamamos de “crioulês,” estiveram bem presentes e fizeram-se ouvir com intensidade em toda a sua extensão.
Digo, “considerado pecado” de descrioulização, pois que para mim, se trata tão-somente de um fenómeno natural no processo diacrónico da prática alargada, sobretudo, da oralidade do crioulo cabo-verdiano deste tempo de globalização. Resultado natural também do seu enriquecimento e do seu apetrechamento vocabulares, de rápida e constante troca, de contaminação e influência comunicativas, de maior alfabetização e literacia do próprio falante do crioulo. Tudo isto vem fazendo com que a aproximação à matriz da língua portuguesa do século XX/XXI seja notável!
Para encurtar caminho, tomo a liberdade de aqui transcrever, com a devida vénia aos seus autores, procurando enquadrá-las contextualmente, algumas dessas passagens escutadas e absorvidas, durante a exposição oral dos dois Linguistas do Crioulo cabo-verdiano, em defesa da oficialização do mesmo e da pertinência do ALUPEC em se constituir seu representante gráfico, entre outras matérias afins.
A determinada altura, um dos participantes, questionado sobre os focos de resistência e de alguma rejeição que existem sobre a aceitação do ALUPEC, respondeu em crioulo, da forma que a seguir transcrevo:
« (…) Em trinta anos de independência é o único projecto de escrita de incidência etimológica e de base fonológica, sistemático, consistente e abrangente…Tudo estudo académico qui fazedo utiliza Alupec, o que ta demonstra que é reconhecido o valor e a funcionalidade de alupec enquanto consistente e sistemático pa aprende todas as regras de escrita (…)» (Fim de transcrição).
Mais à frente, interrogado sobre as causas de tão pouca produção literária em crioulo, o mesmo inquirido, sempre em crioulo, explicou-se:
«(…) ‘m ta tomá palavra apenas pa fazê um ponte sobre o porquê que tem tão pouca produção literária em cabo-verdiano. Se o português e crioulo desenvolvessem harmoniosamente ca tinha esse problema (…)» (Fim de transcrição).
Mantendo este registo de oralidade em crioulo, uma outra intervenção a propósito de como a UNI-CV, vem praticando a didáctica do ensino do cabo-verdiano, e também como celebrou a efeméride, (Dia da Língua Materna) eis o que se ouviu da outra participante:
«Em termos de proposta, nu tem um programa amplo com um metodologia adequada (…) É claro que o processo bilingue é transitivo, no caso de Cabo Verde até que não seria errado (…) Nesta fase é mais a nível académico qui tem que ser feito um experimentação pa sabê se ALUPEC é eficaz ou não. (…)«…» A UNI-CV tem um vasto programa e teve a iniciativa de convida outras universidades para diversas actividades, durante o dia. Para além disso, à tarde nu ta retôma com uma conferência linguística, e em S. Vicente nu tem previsto um Mesa-Redonda. (…)” «Nu tem como projecto mais recente, um projecto de Língua gestual, aliás é compreensível, digamos, nu tem já um comunidade razoável de jovens com necessidade de língua gestual, pa integra na mundo de trabalho (…)» (Fim de transcrição).
Voltando ao primeiro inquirido crioulista, a propósito das questões que se levantam a esta problemática, ele avançou:
(…) O próprio Ministério da Educação mestê faze uma reflexão profunda. O problema fundamental é os professores. (…) Há necessidade de efectivamente se fazer um estudo a curto, a médio e a longo prazo» (…) (Fim de transcrição)
Creio que as falas escutadas, e aqui transcritas, não carecem, no meu entender, de qualquer tradução para um falante da língua portuguesa.
Acresce que a oralidade do Crioulo de Cabo Verde, na boca do cabo-verdiano com significativa escolaridade, apresenta-se por vezes, como que “decalcado” da língua portuguesa actual – quando se trata de matéria técnica ou científica – em que apenas a entoação, o “sotaque,” alguns eventuais elementos de ligação frásica, de conectores conjuncionais, preposicionais e enfáticos nos remetem para o crioulo.
É um fenómeno deveras interessante!
Mas atenção: Trata-se aqui neste escrito, apenas – volto a repetir – ressaltar um fenómeno há muito previsto e esperado na evolução da língua viva e materna dos cabo-verdianos.
E mesmo, mesmo a fechar coloco a seguinte questão: Será que a representação gráfica, isto é, a escrita do nosso Crioulo, pretendida com o ALUPEC estabeleceria a fronteira diferenciadora entre as duas Línguas da mesma família e poria termo à “malfadada” descrioulização?
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