Família monoparental, numerosa e pobre…

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013


Título longo, que mais parece um parágrafo do que o seu epígrafe. Mas vai assim mesmo, explicativo e pormenorizado para me situar e situar o leitor sobre o objecto deste escrito.

Sei que o tema é de uma delicadeza e de uma complexidade muito grande. Estou igualmente ciente de que tal matéria deve ser abordada com imenso cuidado, sensibilidade e algumas vezes até com muitos rodeios.

Mas de uma coisa estou também crente de que se tem de falar dela, analisá-la com a verdade possível e sempre numa tentativa de diminuir a dramática pobreza material e de comportamento, a ausência de cidadania e o subdesenvolvimento, normalmente associados a este fenómeno, no meu entender muito preocupante e infelizmente, muito comum nestas ilhas.

O tema e as memórias de que a seguir irei falar, surgiram-me a propósito do caso muito badalado ultimamente por alguns media (não “mídia”) sobre a jovem cidadã cabo-verdiana, com dez filhos e que vive em Portugal do subsídio dos serviços sociais portugueses, em função da prole numerosa e que os tem mesmo assim, (segundo os mesmos media) ao abandono e em risco. Daí os serviços sociais terem-lhe retirado os sete mais novos.

De qualquer modo o assunto é complexo e dada a magnitude que já ganhou, subiu às mais altas instâncias sociais e de justiça portuguesas que lidam com a problemática da família numerosa, pobre, com questões éticas e os direitos individuais correlatos

Mas não era especificamente sobre isto que queria falar neste escrito. O assunto serviu apenas de pretexto para recordar o que se passou, há já duas décadas, quando então exercia funções governativas, na área social, mais propriamente no então denominado sector da Promoção Social.

Trabalhava eu com Técnicas Sociais, muitas delas já experientes e abalizadas neste mister das famílias, monoparentais a cargo da mulher, pobres e disfuncionais que infelizmente constituem uma parcela significativa da sociedade cabo-verdiana.

O que é certo que os casos em mão e a cargo da Secretaria de Estado da Promoção Social eram muitos e qual deles o mais complexo. Mas havia uma forte vontade, empenho de todos, no caso de todas – uma vez que o pessoal técnico, constituído por Assistentes Sociais e Auxiliares Sociais, era quase todas mulheres – em se encontrar soluções mais duradouras para alguns casos ou mesmo pontuais para outros casos, mais urgentes e que como tal pediam. Recordo-me de como aprendi com o pessoal técnico – a parte substantiva de facto, deste sector do governo – sobre o lidar com a dimensão social e humana que enformam o quotidiano da família numerosa e geralmente pobre destas ilhas.

Com elas aprendi também a analisar os casos da chamada pobreza material e de atitude que se nos apresentavam com a razão, mais do que com o coração, porque deste modo, conseguia abarcar objectivamente os diversos parâmetros que os envolviam

Hoje, passados muitos anos, ainda presto atenção a este tipo de situações, pois foi das funções (tutela do sector Social) que mais me marcaram naquela que foi a minha passagem na vida política/governativa.

É certo que se trabalhava igualmente, para além da problemática da família numerosa, com a das crianças em risco, dos portadores de deficiências, com os idosos vulneráveis, entre outras situações humanas que configuravam então a faixa populacional mais pobre e indefesa da nossa sociedade.

Recordo-me de um caso passado com a visita do então Presidente da República – na altura, década de 90 do século XX, o primeiro PR democraticamente eleito – a um Bairro pobre dos arrabaldes da Vila de Pedra Badejo, concelho de Santa Cruz. Eu fora o membro do governo, destacado para acompanhar a visita presidencial à região.

A determinada altura da visita e em contacto com a população, estava o PR. a escutar uma mãe de onze filhos, de que ela era a única responsável e dizia esta “…pamodi a mim tem ês onze fidjos … é pa nhôs bem criam ês.”: tradução aproximada:“…porque eu tenho estes onze filhos e vocês (entenda-se Estado) -exibia ela a prole numerosa, olhando e abarcando o Presidente da república e a comitiva – devem-me criá-los!” De pronto veio a resposta de Mascarenhas Monteiro, com aquela ausência de demagogia e prenhe de frontalidade que o caracterizavam: “… Não! Não! nha ca tem fidjo pa stado bem cri nha el. Primero responsável pa es mininos é a nhâ cu pai de fidju qui trazês pa mundo..nha disculpam, ma cusa é assim mesmo! Sim, caso di nha pode ser djobedo pa stado. Ês é oto cusa!…”

Tradução aproximada: “Não, não, a senhora não tem os onze filhos que teve, para o Estado os vir criar. Não, Os primeiros responsáveis, pela vinda ao mundo destas crianças são a senhora e o pai delas. Sim, o seu caso poderá ser analisado pelo Estado. Isto já é diferente! (…)”

Posteriormente, e já em sede própria, dei conta deste e de outros casos apontados durante a visita, às nossas Assistentes Sociais, com era minha obrigação e lá foram fazer o inquérito que competia com a delegação regional. O que descobriram tornou o caso mais trabalhoso. Afinal, dos tais onze crianças de que a dita cidadã, dizia serem filhos delas, descobriu-se que cinco delas eram netos, isto é, eram filhos da filha mais velha. Infelizmente, naquela disfuncionalidade em que se encontravam mãe e filha em idade fértil as duas, e a ter filhos quase em simultâneo e, ainda por cima, sem a co-partilha de responsabilidade com os respectivos pais das crianças.

Logo, e pior um pouco, uma avó precoce e que cuidava de onze meninos, sem um mínimo de condições e de recursos.

Casos com este não eram tão raros e eram problemas com que se defrontava a acção social no seu trabalho, diria, diário.

Outra memória que guardei, de entre as Assistentes Social mais velhas, havia uma se destacava pela forma directa e sem subterfúgios linguísticos com que tratava – ao vivo com os interessados e sem se preocupar com o chamado “politicamente correcto” – este tipo de situações e que nos fazia rir por vezes. Dizia ela, “sem papas na língua” e chamando as coisas pelo nome, com sói dizer-se, não se coibindo: “… a nhôs, é pa capado tudo, home cu mudjer…nhos ca podê sta nesta paridura de bidju…trazê mininu pa mundo , sima cria e sem condiçom pa sustentás..” (Desta feita não vou traduzir…) As mais novas que a respeitavam muito, não só pela antiguidade, como também pela experiência do seu valioso trabalho, trocavam risos abafados entre si com saídas destas e de outros de semelhante teor, sempre pautados por um discurso, em tudo directo e frontal.

De uma coisa estavam elas em unanimidade de opinião, muita da pobreza existente era também comportamental, de atitude. Não era só material, visível. Era igualmente uma espécie de postura social, mental dependente.

Trata-se ou tratava-se de um grupo populacional sem informação, sem alfabetização, sem hábitos de organização familiar tradicional nuclear responsável e que precisaria e precisa de respostas mais abrangentes e transversais ao seu complexo problema. Sob pena desse fenómeno redundar numa depauperação e numa degradação, capazes de penhorar o presente e o futuro da nossa sociedade.


Termino evocando, em jeito de saudação, ainda que já passados alguns anos, o trabalho dedicado e sempre empenhado das Assistentes e das Técnicas Sociais com quem tive o privilégio de trabalhar na antiga Secretaria de Estado da Promoção Social.


P.S. – Fica também em jeito de registo e “en passant,” esta memória: não foram poucas as vezes que levei o assunto ao Conselho de Ministros da necessidade de se elaborar uma política de população séria, concertada e adequada a Cabo Verde. Enfim, algumas vozes com responsabilidade nessa época acharam-no um falso problema. (?)! E sobre ele infelizmente, não se debruçou-se…

É que já havia indícios do fenómeno nefasto dos meninos de rua e do sequencial de delinquência jovem, que veio a ganhar as proporções que hoje infelizmente, conhecemos.



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