Grinhassim, não

domingo, 9 de junho de 2013
A empresa de sistematização, formalização e modernização do Crioulo de Cabo Verde terá chegado a um momento crucial, suscitando discursos veementes, umas vezes, com um certo lirismo, distante da realidade, outras, com manifesta agressividade verbal e ideológica, incompatível com essa mesma realidade.

Mas uns e outros − quase sempre fundamentados mais em aspectos psicológicos, afectivos e políticos do que meramente linguísticos − convocam uma comunicação de maior qualidade por parte do Poder Político.

Nesse contexto, e perante o risco de a língua se transformar num palco de mudanças inconsequentes e de fracturas sociais a prazo, cabe às entidades públicas dar os esclarecimentos que possam alimentar correctamente o debate.

Para tal, conviria identificar as verdadeiras questões que incidem, fundamentalmente, sobre três etapas do processo de definição de uma política linguística.
 
Literalização  − um imperativo presente
 
Mostra-nos a História que a passagem à escrita de uma língua, tradicionalmente, oral é o primeiro passo rumo à sua própria perenidade.
Assim, no caso do Crioulo de Cabo Verde, foi instituído um alfabeto que resultará no sistema de escrita da língua, depois de normalizado e de terem sido estabelecidas as regras ortográficas.

Se esse trabalho de grande qualidade técnica marca o ponto de partida do percurso para o Caboverdiano aceder ao estatuto de língua escrita, a sua socialização foi reveladora de uma comunicação deficiente. De facto, a opção de trazer a público todo um trabalho de laboratório, a começar pelo próprio nome − o famigerado acrónimo ALUPEK − funcionou como um espantalho.

O carácter inovador terá sido interpretado por uma faixa da população alfabetizada noutros sistemas como uma desconsideração pela dimensão histórico-etimológica da Língua Caboverdiana, na sua relação genética com o Português.

Por outro lado, soluções dificilmente compreensíveis pelo senso comum, como a heterografia − que teria exigido maior informação e uma formação mais aturada − traduziram-se num mal-estar de uma parte significativa da população.

A temática que viria, finalmente, a transformar-se em catarse colectiva, deu origem mesmo à criação caricatural de dois campos antagónicos – os Prokapa e os Anticapa, tendo estes sacrificado o K, o elemento mais marcadamente diferente.

Acresce a isso o sentimento de que, na realidade, o alfabeto seria a alavanca para levantar outro problema, o da língua-padrão.

Perante esse estado de tensão, é recomendável que seja, agora, avaliada a disponibilidade da colectividade para utilizar o sistema gráfico, o que, a não se verificar, poderá perigar a fase de difusão do mesmo, assim como a sua introdução no ensino.

Padronização – um pretérito imperfeito
 
Talvez seja esta a questão que mais divide a opinião pública. Creio que por duas ordens de razão.
A primeira terá a ver com uma abordagem que, baseada em generalidades teóricas, na realidade, cria argumentos que prejudicam a causa que se pretende defender. Um exemplo é a opção pela variante de Santiago, implicitamente, tomada como referência, o que terá sido uma escolha metodológica, mas apresentada como um axioma.

Na verdade, o facto de ser a variante, talvez, mais estudada e descrita não lhe confere por si só qualquer forma de primazia. Antes, obriga as autoridades a apoiar as comunidades científica e universitária na descrição das outras variantes e na realização de estudos, nomeadamente, comparativos.

O único primado deverá ser o da prudência na tomada de decisões que não se querem simplistas, nem precipitadas.

A segunda tem a ver com a escolha de um discurso de substituição que se organiza em torno do eixo da reivindicação identitária, um autêntico discurso do tempo da outra senhora. A reacção popular foi à medida do apelo, em que cada um se terá sentido atingido na sua singularidade e identidade.

Quando, inicialmente, se faz depender a unificação gráfica da opção por um dos dialectos como padrão, uma larga faixa da população, da inteligentsia ao cidadão comum, reage com desconfiança e vê um objectivo dissimulado que seria o de diferenciar uma variante (a de Santiago) para a transformar em língua nacional.

Para agravar o já delicado estado de coisas, o Poder Político, agora, canta a palinódia − afinal, a opção por um dialecto como padrão não é primordial e poderá ser feita mais tarde, após a oficialização − o que suscita perplexidade, no mínimo.

A padronização é uma construção, não é natural nem será espontânea – donde a necessidade de critérios objectivos e explícitos.

O critério histórico-linguístico, por exemplo, levantará questões como: − qual o dialecto mais representativo, desse ponto de vista? O de Santiago, onde o Crioulo terá tido origem, a partir de línguas africanas em contacto com o Português, pelo que essa primeira versão será a matriz que se desdobrou em módulos periféricos? Ou o de São Vicente que, na sua qualidade histórica de Crioulo Caboverdiano de segunda geração, se elaborou a partir da activação de ocorrências inovadoras as quais contribuíram para a emergência de uma estrutura com maior autonomia relativamente às línguas-base?

Quanto à escolha de um critério demográfico, deverá ser demonstrado como tal opção se enquadra na lógica da construção do país moderno, respeita os ideais da Nação e corresponde a uma opção colectiva e não a um princípio autista e redutor.

Finalmente, o Estado terá que dizer que língua-padrão vai usar na sua relação com os cidadãos. Trata-se neste caso, também, de bonne gouvernance.
Conclui-se, pois, da necessidade de recentrar o debate e de privilegiar uma lógica inclusiva e legítima.
Oficialização – um condicional futuro
 
O Estado tem o compromisso constitucional de adoptar o Caboverdiano como língua co-oficial.
O Poder Politico, ao asserir da imperatividade de tal medida, dá indícios de que a oficialização deverá concretizar-se num horizonte temporal próximo.

Ou seja, foi anunciado o problema − a necessidade de uma oficialização acelerada da Língua Caboverdiana, − mas não o essencial, na medida em que não se respondeu à questão política que é a de saber como proceder.

Ao Estado incumbe a responsabilidade de ponderar a viabilidade de tal opção. Para o que deve abandonar a representação dogmática da oficialização, em benefício de uma politica linguística coerente. Porque, se a aspiração é legítima, a reivindicação romântica não nos protege da possibilidade do seguinte paradoxo.

A revisão da Constituição da República de 1999 foi um momento de grande carga simbólica para a Língua Caboverdiana, em que, pela primeira vez na história do país, ela foi reconhecida, a esse nível, como uma entidade social e cultural. Apesar de confirmar, explicitamente, o seu monolinguismo − a língua oficial é o Português − o Estado comprometia-se a defender e a preservar o património linguístico na sua integralidade.

No momento actual, em que nos encontramos ainda num estádio caracterizado por uma escrita incipiente e pela ausência de língua-padrão a ser utilizada pelo Estado na sua relação com cidadãos, a oficialização teria, a meu ver, o efeito perverso de atribuir à Língua Caboverdiana uma função acessória e um lugar secundário no ambiente linguístico nacional.

Tendo em conta o carácter, originalmente, burocrático da escrita e porque uma “língua oficial” é a dos actos e das intervenções públicas, a questão que ocorre é: − como abstrair-se de o Caboverdiano ser uma língua não escrita?

Aduzir o argumento de que não se pode aguardar pela prévia fixação da escrita e pela padronização é invalidar o argumento enquanto tal. Se não se sabe quando é que o Caboverdiano poderá ser língua oficial, isto é, vector de comunicação do Estado com os cidadãos, por que decidir por uma oficialização condicional?

É certo que o Estado poderá arrogar-se de um adiamento para a efectiva utilização da Língua Caboverdiana, nomeadamente, no ensino e na administração pública. O que significará que, durante esse tempo, obrigatoriamente indefinido, o Português será a língua do ensino, do trabalho, do poder, da lei... O Caboverdiano, em contrapartida, terá uma função de língua prosaica, do quotidiano, do coração. Afinal, a que tem hoje, com a diferença de isso não estar na lei.

Corremos, pois, o risco, muito provável, de oficializar mas manter o status quo, com a circunstância agravante de pronunciar um anátema contra a Língua Caboverdiana, cuja representação, sobretudo na mente dos mais novos, será a de um sistema linguístico que não está ao mesmo nível da outra língua co-oficial.

De acordo com a teoria linguística, a realidade sociolinguística em Cabo Verde caracteriza-se por uma situação de diglossia. Uma faixa da população é, estruturalmente, crioulófona enquanto que o conhecimento e a prática do Português não são universais, nem uniformes.

Quanto aos apologistas da oficialização acelerada, para justificar a urgência, avançam diversos argumentos: liberdade de expressão, direitos humanos, afirmação da identidade, salvaguarda do património, justiça social, entre outros.

Dois deles – 1. Uma faixa da população não é, efectivamente, lusófona. 2. A Constituição da Republica torna imperativa a oficialização do Caboverdiano – baseiam-se em dados verificáveis e autorizam uma leitura cruzada.

Se isolarmos os possíveis encadeamentos causais, que ilações válidas podem ser retiradas, à luz do que prevê a Constituição da República?

Que o acesso ao Português, através, nomeadamente, do seu estudo e aprendizagem,  deve ser garantido a toda a população, logo à faixa exclusivamente, crioulófona também, de modo a que cada cidadão possa cumprir o dever constitucional de conhecer as línguas oficiais – apenas o Português, por ora, mas também o Caboverdiano, posteriormente.

A condição é que esse dever seja  exercido sem prejuízo para o direito, igualmente constitucional, de usar o Caboverdiano nas situações previstas, isto é, em contextos que não exijam o uso da,  ainda única, língua oficial - o Português.

Pelo que, se há urgência, esta é a de adiar a oficialização do Caboverdiano. É o futuro linguístico que está em causa.

Do alto dos seus mais de quinhentos anos, a Língua Caboverdiana obriga-nos a adoptar uma abordagem liberta de imediatismos e de triunfalismos.

E as gerações vindouras agradecerão, certamente.

Kinshasa, Junho de 2013
Dulce Lush Ferreira Lima
 
 
 
 
 
 
 

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