Por José Carlos Mucangana
Fragmento da carta ao Padre António Fernandes, Confessor do Príncipe D.
Teodósio escrita, em Santiago, a 25 de Dezembro de 1652
É o caso que nesta ilha de Santiago,
cabeça de Cabo Verde, há mais de sessenta mil almas, e nas outras ilhas, que
são oito ou dez, outras tantas, e todas elas estão em extrema necessidade
espiritual; porque não há religiosos de nenhuma religião que as cultivem, e os
párocos são mui poucos e mui pouco zelosos, sendo o natural da gente o mais
disposto que há, entre todas as nações das novas conquistas (*), para se
imprimir neles tudo o que lhes ensinarem.
São todos pretos, mas somente neste acidente se distinguem dos
Europeus. Têm grande juízo e habilidade,
e toda a política que cabe em gente sem fé e sem muitas riquezas, que vem a ser
o que ensina a natureza.
Há aqui clérigos e cónegos tão
negros como azeviche, mas tão compostos, tão autorizados, tão doutos, tão
grandes músicos, tão discretos e bem morigerados, que podem fazer inveja aos
que lá vemos nas nossas catedrais. Enfim
a disposição da gente é qual se pode desejar, e o número infinito; porque além das cento e vinte mil almas que
há nestas ilhas, a costa, que lhe corresponde em Guiné e pertence a este mesmo
bispado, e só dista daqui jornada de quatro ou cinco dias, é de mais de
quatrocentas léguas de comprido, nas quais se conta a gente não por milhares
senão por milhões de gentios. Os que ali
vivem ainda ficam aquém da verdade, por mais que pareça encarecimento: porque a gente é sem número, toda da mesma índole
e disposição dos das ilhas, porque vivem todos os que as habitam sem idolatria
nem ritos gentílicos, que façam dificultosa a conversão, antes com grande
desejo, em todos os que têm mais comércio com os Portugueses, de receberem
nossa santa fé e se baptizarem, como com efeito têm feito muitos; mas, por falta de quem os catequize e ensine,
não se vêem entre eles mais rastos de cristandade que algumas cruzes nas suas
povoações, e os nomes dos santos, e sobrenomes de Barreira, o qual se conserva
por grande honra entre os principais delas, por reverência e memória do padre
Baltazar Barreira, que foi aquele grande missionário da Serra Leoa, que, sendo
tanto para imitar, não teve nenhum que o seguisse, nem levasse adiante o que
ele começou. E assim estão indo ao
inferno todas as horas infinidade de almas de adultos, e deixando de ir ao Céu
infinitas de inocentes, todas por falta de doutrina e baptismo, sendo obrigados
a prover de ministros evangélicos todas estas costas e conquistas os príncipes
de um Reino, em que tanta parte de vassalos são eclesiásticos, e se ocupam nos
bandos e ambições, que tão esquecidos os traz de suas almas e das alheias; mas
tudo nasce dos mesmos princípios.
Padre António Vieira, Obras
Escolhidas, prefácio e notas de António Sérgio e Hernâni Cidade, Volume II,
Cartas II, segunda edição, 1997, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, p. 193-4
(*)
Cabo Verde não foi uma conquista.
O Padre António Vieira refere-se aos novos territórios conquistados ou
ocupados e administrados pelos portugueses, incluindo os portugueses caboverdeanos,
para comparação.
A 25 de Dezembro de 1652, há mais de trezentos e
cinquenta anos, na sua segunda viagem de Portugal para o Brasil, o Padre
António Vieira fez escala em Santiago, Cabo Verde, onde desembarcou na Ribeira
Grande com outros missionários e se demorou uma semana de 20 a 26 de Dezembro
de 1652 (Padre António Brásio, 1946, O Padre António Vieira e as Missões de
Cabo Verde, Portugal em África, Revista de Cultura Missionária, Segunda
Série, Ano III, Número 17, Set. – Out. p. 298 - 305). Além
de ter feito um sermão, deixou-nos este subsídio para a caboverdeanidade
extraído duma carta, que escreveu na Cidade Velha. Não achou diferença entre os portugueses
deste arquipélago do Atlântico tropical e os portugueses europeus, que não
fosse aparente. Para ele, já nesses
tempos distantes, os caboverdeanos eram europeus, mais concretamente
portugueses. Para ele, mesmo falando a
sua própria língua materna, os caboverdeanos não deixavam de ser portugueses e
não tinham necessidade de se lhes ensinar a língua portuguesa, porque “todos a
seu modo” a falavam já.
O Padre António Vieira da Companhia de Jesus, que estava
de regresso à sua missão no Brasil, falava correntemente e fazia sermões na
língua dos índios do Maranhão, que não considerava serem portugueses. O Maranhão e o Brasil eram uma conquista,
onde os jesuítas defenderam os direitos e a dignidade dos índios vencidos. Cabo Verde não era uma conquista, foi uma
colónia como a Madeira e os Açores, mas povoada, não só por colonos portugueses
da Europa e da Madeira, como também por uma maioria de colonos africanos de
variadíssimas etnias e nacionalidades.
Para desenvolver a ilha de Santiago e outras ilhas de
Sotavento, os habitantes de Santiago foram angariar mão de obra ao continente
africano vizinho, onde os potentados muçulmanos escravizavam os prisioneiros de
guerra e os povos pagãos e onde havia uma multisecular tradição de venda
regional e exportação de escravos fomentada pelos árabes, ou mesmo anterior a
estes. Traziam-nos do interior do
continente e vendiam-nos no litoral entre o rio Sanaga, que separava os mouros
brancos dos jalofos pretos, e a Serra Leoa, onde rugiam as trovoadas. O Rei de Portugal tinha concedido o monopólio
do comércio de todo esse litoral africano de mais de quatrocentas léguas de
comprido, ou cerca de 1.200 km de costa recortada por ansas, cabos, penínsulas,
estuários, canais, ilhas e numerosos rios, aos habitantes de Santiago, a
primeira ilha do Arquipélago a ser povoada e aquela que foi o berço da língua
crioula e da nação caboverdeana, um ramo da nação portuguesa.
Depois das guerras, separações das famílias, maus tratos,
falta de alimentação e longas caminhadas do interior até ao litoral amarrados
uns aos outros por correntes, cordas, cadeados e cangas, a chegada a Cabo Verde,
onde tinham trabalho, alojamento, roupa e alimentação, além de assistência
religiosa e onde podiam constituir família era certamente uma vida nova para
esses infelizes escravos africanos. Os
habitantes de Santiago e os proprietários, em Santiago e nas outras ilhas de
Sotavento, casaram-se, tiveram filhos com as escravas mais prendadas. A partir da primeira geração de crianças
nascidas em Santiago, os escravos e os não escravos foram todos integrados na
emergente nação caboverdeana. Os
escravos boçais, que iam chegando depois, foram sendo assimilados na nação
caboverdeana, tornando-se ladinos.
Em Cabo Verde não houve vencidos, nem vencedores, nasceu
e desenvolveu-se uma sociedade mestiça e uma nação nova, com a sua própria
língua materna e língua de trabalho, ao lado do português. Este era estudado e praticado pela minoria
escolarizada dos caboverdeanos, que foi aumentando ao longo dos séculos,
tornando-os bilingues. Nesta sociedade
homogénea e na sua diversidade de aparência, os movimentos verticais, pela
educação e pelo trabalho e iniciativas individuais e familiares, modificaram a
estratificação entre trabalhadores de origem africana e dirigentes de origem
europeia, mesmo muito antes da abolição da escravatura. Os proprietários e dirigentes, ficaram a ser
designados por “gente branca” independentemente da taxa de melanina dérmica,
que se modificou de geração em geração (Baltasar Lopes da Silva, Escritos Filológicos
e outros Ensaios, Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, Praia, 2010,
p. 135).
Segundo atesta o Padre António Vieira, parece que em
menos de dois séculos, estando ainda longe de ser abolida a escravatura, a
homogeneização vertical já tinha produzido notáveis efeitos, sobretudo graças à
acção da Igreja. Ele encontrou, nas
pequenas igrejas de Cabo Verde, clérigos de fazer inveja aos das catedrais de
Portugal e da Europa, que bem conhecia e acabava de percorrer, como agente
diplomático do Rei Dom João IV, o restaurador da independência de Portugal.
Torna-se difícil compreender como é que, dum dia para o
outro, a partir de 1975, tanto Cabo Verde, como os caboverdeanos, sem serem
consultados, passaram a ser África e africanos respectivamente. Tudo parece ter
sido obra duma agitação política feita à pressa, nas ilhas, sobre a “validade
de independência” (Aristides Pereira, 2011, p. 299, entrevistas a José Vicente
Lopes, Aristides Pereira, Minha Vida, Nossa História, Praia, Edições
Spleen, 492 p.).
Onde é que falhámos?
Falhámos na declaração precipitada
da independência. Tivemos pessoas não
preparadas que assumiram este país, sem pensar nos interesses reais da
população, assumindo de rompante um país que não estava preparado efectivamente
para ser independente. A independência
devia ter sido algo mais bem pensado, mais bem estruturado, daí uma parte de
erros que são apresentados como sendo grandes victórias.
António Pedro Silva, p. 143 - 153,
entrevista a José Vicente Lopes, 2014, Outubro, Vozes das Ilhas, Revista da
Reforma do Estado, edição especial, Cidade da Praia, 240 p.)
Na luta pela
independência, com a ideia de puxar Cabo Verde para a África, tentaram como que
manipular o cabo-verdiano. Isso decorre
da tal africanização dos espíritos, defendida por Amílcar Cabral. Nisso procurou-se convencer o cabo-verdiano
que ele não era aquilo que ele devia ser.
Foi um erro tremendo. Quebrou-se o
tal orgulho que o povo cabo-verdiano tinha.
Tentou-se virar a roda da História para trás, quando nós nunca podemos
girar a roda da História para trás.
Cultura é aquilo que eu mamei no leite da minha mãe. Que ninguém me venha dizer que a minha
cultura é isto, é aquilo, ou aqueloutro.
A minha cultura é aquilo com que eu cresci, é o que eu sou hoje, é o que
eu trago desde a raiz.
Odette Pinheiro, p. 80 - 91,
entrevista a José Vicente Lopes, 2014, Outubro, Vozes das Ilhas, Revista da
Reforma do Estado, edição especial, Cidade da Praia, 240 p.)
Se este arquipélago marítimo do grande mar oceano está em
África ou não está, é assunto para discutirmos mais adiante. Para já, limitemo-nos aos caboverdeanos e à caboverdeanidade.
Mais recentemente, fez escala em Cabo Verde outra
autoridade, Gilberto Freyre, que não se demorou, nem aprofundou as suas
observações, mas ficou manifestamente desorientado com as aparências. Vinha estudar a universalidade da língua
portuguesa e da cultura luso-tropical e tropeçou com a primeira língua crioula
da globalização e do Atlântico, que, primeiro como língua materna, se tinha
tornado língua de trabalho riquíssima, depois língua franca no litoral da
África Ocidental, como já era antes do tempo do Padre António Vieira, desde o
Cabo Verde até à Serra Leoa, e finalmente numa língua nacional, com ambições de
se tornar literária. Sem vislumbrar como
poderia integrar a língua crioula naquela universalidade, só lhe restava rejeitar
este corpo estranho a essa universalidade, pelo que foi sabiamente criticado
por Mestre Baltazar Lopes da Silva,
… foi grande a minha surpresa ao
ver, que Gilberto Freyre emprega, em “Aventura e Rotina” e em “Um Brasileiro em
Terras Portuguesas” o verbo “repugnar” e o substantivo “repugnância” para
definir a sua atitude de sociólogo perante o crioulo. Mas, justos céus! Gilberto Freyre é um cientista. E a um cientista é reconhecido o direito de
sentir repugnância pela matéria observada?
A Ciência estaria bem arranjada se a um médico repugnasse examinar, para salvar uma vida humana, fezes e
escarros; se um sábio como o meu velho
mestre José Leite de Vasconcelos não aproveitasse todas as oportunidades para
surpreender a verdade, quaisquer que fossem as andanças a que tivesse de se
sujeitar e até a grosseria dos indivíduos observados. Confesso não compreender a alergia de
Gilberto em relação ao crioulo. Não
compreendo, porque é que Gilberto Freyre aceita e louva as expressões regionais
daquilo que chama o “Mundo que o Português criou” e ao mesmo lhe “repugna” o
crioulo de Cabo Verde. É claro que esta
realidade, o crioulo, apresenta na sua problemática muitas facetas. Embora.
Seja como for, o crioulo é a criação mais perene nestas ilhas. Tudo pode desaparecer ou modificar-se no Arquipélago: conduta, trajos, mobilidade das classes; se não ocorrer um cataclismo físico ou
social, que está fora das nossas previsões, podemos ter a certeza de que, para
me citar a mim mesmo, o crioulo está radicado no solo das ilhas como o próprio
indivíduo.
Baltazar Lopes da Silva, 1956, Cabo
Verde visto por Gilberto Freyre, apontamentos lidos ao microfone de Rádio
Barlavento, Praia, Imprensa Nacional, Divisão Propaganda, Separata do
Boletim Cabo Verde, Nº 84, 85 e 86, 52 p.)
Gilberto Freyre visitou Cabo Verde em Outubro de 1951,
trezentos anos depois do Padre António Vieira, e comparou Cabo Verde à
Martinica e à Trinidade das Pequenas Antilhas, às quais atribuía erradamente
uma “matriz africana salpicada de europeu”. Comparou a língua crioula de Cabo Verde de
léxico português à língua da Martinica de léxico francês predominante e à da Trinidade
também de léxico francês predominante.
Veremos mais adiante, que estas comparações não eram inapropriadas e que,
à luz da história, se justificam. Veremos
porque é que se diz, na Martinica e Pequenas Antilhas e também nas Mascarenhas
e outras ilhas do Oceano Índico, amarrer,
espérer, larguer, como, respectivamente, em português, amarrar, esperar e
largar, em vez de attacher, attendre, lâcher, respectivamente, em francês (Francisco Adolfo Coelho, 1880,
Os dialectos românicos ou neo-latinos na África, Ásia e América, I Boletim
da Sociedade de Geografia de Lisboa, 2ª Série, Nº 3, p. 129-196) e veremos
também de que maneira chegaram levadas pelos caboverdeanos da grande diáspora
as lagratish ou lagartixas à
Trinidade (Francisco Adolfo Coelho, 1886, Os dialectos românicos ou neo-latinos
na África, Ásia e América, III Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa,
6ª Série, Nº 12, p. 705-755).
Quanto à “matriz africana salpicada de europeu”, Gilberto
Freyre caiu no mesmo erro que Frantz Fanon, médico psiquiatra da Guadalupe obcecado
pela color bar (= linha divisória, barreira
da cor) americana, ou racismo e contra-racismo anglo-saxão, pela cor da pele. Nem um nem outro conheciam África. Gilberto Freyre iniciou a sua primeira visita
a África só depois de passar por Cabo Verde.
Depois de se formar em França, Frantz Fanon foi trabalhar para a Argélia,
no manicómio de Joinville, Blida, onde aderiu à Frente de Libertação Nacional argelina
e só veio ao mato do Norte de Angola em 1963 munido dum binóculo, para
encorajar Álvaro Holden Roberto a desencadear uma bárbara insurreição, na data
duma reunião do Conselho de Segurança da ONU, em Nova Iorque, a 15 de Março de
1961 (João Paulo Nganga, 2008, O Pai do Nacionalismo Angolano, As memórias
de Holden Roberto, I Volume, 1923 - 1974, Globalangola Lda, 296 p.).
O primeiro livro de Frantz Fanon, sobre a sociedade e
cultura das Antilhas Francesas teria o título de “Pele Preta Máscaras Brancas”,
se tivesse sido traduzido em português (Frantz Fanon, 1952, Peau Noire
Masques Blancs, Collection “Esprit” aux Editions du Seuil, Paris, 223 p.)*. Como diria o Padre António Vieira a pele
preta nas Antilhas é, na realidade, um “acidente” e naquelas culturas pode
verificar-se, que não há máscaras nenhumas, os sentimentos espelham-se nas
fisionomias, os antilheses, incluindo os de origem indiana oriental, não aprenderam
a usar a máscara oriental. Nas Pequenas Antilhas,
há sim pele preta e almas brancas, resultado do trabalho produtivo secular em
língua crioula e do trabalho de evangelização das igrejas. Como em Cabo Verde, a África “diluiu-se” nas
Pequenas Antilhas, as Pequenas Antilhas, como Cabo Verde, “fugiram” da África
(Baltasar Lopes da Silva, Rádio Mindelo, São Vicente, 19.5.1956). Também nos Estados Unidos da América a pele é
preta e a alma branca, como cantava Paul Robeson (“I am a little black boy but all my soul is white.”), inspirando-se
de um poema de William Blake, poeta inglês, 1757 - 1827.
Temos assim duas autoridades e duas conclusões
diametralmente opostas sobre a caboverdeanidade. Gilberto Freyre não aprofundou o “caso” de
Cabo Verde, estava em missão de estudo da língua portuguesa nos trópicos e a
língua crioula não era português, apesar do seu léxico, com mais de 95% de
palavras de etimologia portuguesa.
Descuidou-se ao tomar as aparências por realidades e ao pôr por escrito
as suas primeiras impressões, necessariamente superficiais, porque ficou pouco
tempo em Cabo Verde.
O Padre António Vieira, tão brasileiro como Gilberto
Freyre, estava e esteve quase toda a sua vida em missão de evangelização. Confiou-nos que gostaria de ter ficado na
diocese de Cabo Verde, onde se sentiu melhor do que no seu Maranhão e onde, com
a sua grande alma, antevia obra grandiosa, que não chegou a realizar-se, porque
os jesuítas portugueses se retiraram, em 1642 e não voltaram, depois de terem
trabalhado trinta e oito anos, pouco numerosos, na Grande Guiné e em Cabo Verde
e consagrado à Serra Leoa catorze anos de vida dos missionários Padres Baltazar
Barreira (1604 a 1608) e Manuel Álvares (1607 a 1617). O primeiro está sepultado na Igreja de Nossa
Senhora do Rosário da Cidade Velha desde 1612 e o segundo morreu em 1617 na
Serra Leoa, uma capitania portuguesa que não vingou ao contrário da capitania
de Cachéu fundada e fortificada em 1589 pelo caboverdeano Manuel Lopes Cardoso
(Nuno da Silva Gonçalves, 1996, Os Jesuítas e a Missão de Cabo Verde,
Brotéria, Lisboa, 449 p.).
Tampouco vingou, um projecto de futura colónia
caboverdeana. Os caboverdeanos não
tiveram uma terra prometida, “tão abundante de tudo, que nada lhe faltava” (André
Álvares de Almada, 1594, Tratado Breve dos Rios da Guiné do Cabo Verde,
publicado, anotado e comentado, em 1964, por António Brásio C. S. Sp., Lisboa,
Editorial LIAM, 156 p.), uma futura colónia melhor do que Canaã. Um grande caboverdeano André Álvares de
Almada, futuro cavaleiro da Ordem de Cristo, foi mandatado pelo povo da ilha de
Santiago, para ir ao Reino apresentar este projecto, à volta de 1581, e
requerer autorização de povoamento pelos caboverdeanos, requerimento indeferido
por almas tacanhas, “com receio que a ilha ficasse desamparada” (Avelino
Teixeira da Mota, 1970, Dois escritores quinhentistas de Cabo Verde, André
Álvares de Almada e André Dornelas, Conferência proferida no Museu de
Angola, Luanda em 23 Nov. 1970, Liga dos Amigos de Cabo Verde - Boletim
Cultural, Nov.1970, p. 40-44), como efectivamente ficou desamparado todo o Arquipélago,
durante perto de quatro séculos, sujeito a secas e fomes periódicas e sem
receber alimentos suficientes, nem do Rei Mandinga, nem do Rei Português. Quatro séculos mais tarde, o Cónego Marcelino
Marques de Barros (1844-1928), havendo fome em Cabo Verde, publicou a 31 de
Outubro de 1883, em 4 páginas e 10.000 exemplares, A Fraternidade, Guiné e
Cabo Verde, folha destinada a socorrer as vítimas da estiagem da província
caboverdiana, com artigos e comentários de simpatia de 41 guineenses, entre
eles 6 senhoras. A Guiné já se tinha
tornado independente do governador de Cabo Verde há quatro anos, mas não queria
poupar-se a esforços para suavizar os sofrimentos dos seus irmãos caboverdeanos
e dava um exemplo da solidariedade dos países lusófonos, talvez o primeiro.
Em Cabo Verde, os jesuítas residiam ao pé da fortaleza
real de São Filipe, onde ensinavam a ler e escrever às crianças. Depois de partirem, a população não cessou de
reclamar o regresso da missão e o Padre António Vieira apoiou essa reclamação, escrevendo,
nesse sentido, para Lisboa ao confessor do príncipe herdeiro, Dom Teodósio e ao
Padre Provincial do Brasil (Padre António Brásio, 1946, O Padre António Vieira
e as Missões de Cabo Verde, Portugal em África, Revista de Cultura
Missionária, Segunda Série, Ano III, Número 17, Set. – Out. p. 298 - 305). As causas da curta duração da missão dos
jesuítas estão ligadas à crise económica de Cabo Verde, anunciada na primeira
década do século XVI, com o cancelamento, por Dom Manuel I, da concessão da
carta de Dom Afonso V de 12 de Junho de 1466 e com a emigração para o Brasil duma
parte dos operadores económicos caboverdeanos acompanhados de suas famílias,
bens e haveres, incluindo trapiches e trabalhadores cativos e forros, crise que
começou na década de 1560 e se acelerou por outras causas ecológicas e políticas,
ficando Cabo Verde órfão, quando terminou o império português da Ásia, dois
séculos depois da colonização.
A visita do Padre António Vieira, coincidiu com o
declínio dos tratos e resgates nos rios da Grande Guiné dos moradores de
Santiago (António Carreira, 1983, Panaria Caboverdeana-Guineense, Alguns
Aspectos Históricos e Socio-Económicos, segunda edição, Instituto Caboverdeano
do Livro, 226 p.) e da própria Grande Guiné, que já estava reduzida à Pequena
Guiné de hoje mais a Casamansa. A esmola
concedida pelo Rei de Portugal Dom Filipe II para mantimento dos missionários jesuítas
praticamente não era paga em Cabo Verde, pela fazenda real minguada de recursos
financeiros, pois os navios negreiros espanhóis, primeiro, franceses, ingleses,
holandeses e outros, depois, passavam a abastecer-se na costa africana, sem
fazer escala em Cabo Verde, onde a alfândega ficou sem recursos financeiros.
Os jesuítas portugueses só deixaram obra grandiosa no
Brasil. Outro grande missionário
jesuíta, Dom Gonçalo da Silveira, chegou a pôr mãos à obra sòzinho, em
Moçambique, mas por pouco tempo. Estava,
ao Norte de Manica, a catequizar e ensinar a ler e a escrever às crianças com
autorização do Monomotapa ou Senhor da Mutapa, quando foi estrangulado e o seu
cadáver atirado aos crocodilos duma lagoa do rio Mossenguese. A decadência portuguesa já estava em marcha,
com os comerciantes, artífices, industriais e trabalhadores independentes das
cidades, que tinham feito, em Lisboa, a primeira revolução burguesa da Europa
em 1383-85 (Álvaro Cunhal, 1975, As Lutas de Classes em Portugal nos Fins da
Idade Média, Lisboa, Editorial Estampa, 132 p.), a serem discriminados,
presos e queimados pelo Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, depois de espoliados
de bens de raiz e cabedais. Além da paz
e reatamento das relações comerciais com os Países Baixos, um dos objectivos da
missão diplomática confiada pelo Rei de Portugal Dom João IV ao Padre António
Vieira, que este acabava de desempenhar na Europa, era, aliás, tentar reorientar
os cabedais ou capital dos portugueses judeus e cristãos novos refugiados na
França, Holanda, Inglaterra, Alemanha e Itália, em proveito da sua pátria e do
império português, missão que fracassou e acabou de vez, com a prisão pela
Inquisição Portuguesa, do grande Padre Missionário e Imperador da Língua Portuguesa,
assim apelidado por Fernando Pessoa (António Brandão, 1972, O Padre António
Vieira, 1663-67, A prisão dum Jesuita pelo Santo Ofício, um cárcere
insuportável, pedido de comutação desatendido, Volume I, Cap. XIV, Episódios
Dramáticos da Inquisição Portuguesa., Seara Nova, 3 vol., 280 + 353 + 205
p.).
Mas, nestes subsídios, vamos limitar-nos, tanto quanto
possível, a Cabo Verde e à sua grande diáspora.
A cultura caboverdeana é europeia, como sempre se provou, ou africana,
como se pretende desde que sopraram as lestadas marxistas-leninistas da
revolução africana sobre o Arquipélago?
Depois de sublinhar a impressionante “fuga” à África do Arquipélago e de
reconhecer a “diluição” da África na cultura e língua caboverdeanas, Mestre
Baltasar Lopes da Silva, resolveu este dilema, em 1985, da seguinte maneira:
Sim, porque nos dizem, a nós das
ilhas:
- Se vocês “não são de África”, o
que é que são? Europa?
Ou, inversamente, mas creio que
muito mais raramente:
- Se “não são Europa”, o que
são? África?
Claro que a mesa assim posta não
deixa liberdade nenhuma ao conviva, que possivelmente se retrairá de anunciar a
única verdade etnológica:
- Nem uma coisa, nem outra, somos caboverdeanos.
Baltazar Lopes da Silva, 1985, Prefácio
ao livro de Manuel Ferreira, A Aventura Crioula, Lisboa, Plátano,
republicado em Baltazar Lopes, 2010, Escritos Filológicos e outros Ensaios,
Praia, Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, 365 p.)
Queríamos só acrescentar, caboverdeanos há cinco séculos
e meio, fincados naquelas ilhas verdes só quando chove, pequenas e pobres em
recursos naturais, geralmente desamparadas pelos governos de Lisboa, levados e
retornados pelos ventos dos oceanos para participar, nas sete partidas do
mundo, ao trabalho da globalização do mercado, à revolução industrial e ao
sustento das famílias e educação dos filhos.
Porque, sem a sua diáspora, iniciada com a ida para o Brasil dos seus
operadores económicos mais dinâmicos, a que aludimos mais acima, a nação caboverdeana
fica mutilada e perdida no oceano, a sua língua reduzida a um “alfabeto”.
A defesa da caboverdeanidade por mestre Baltazar Lopes da
Silva surtiu efeitos ao mais alto nível do luso-tropicalismo. Outra autoridade unanimemente respeitada, o
Professor Adriano Moreira afirmou sem hesitações, nem dúvidas, que Cabo Verde
“é a expressão mais perfeita do luso-tropicalismo no mundo” e repetiu, por
outras palavras, que o caboverdeano constitui “o exemplo mais perfeito da
cultura luso-tropical” (1962, Partido Português, discurso proferido em 5
de Setembro de 1962 na Praia, durante a sessão do Conselho de Governo de Cabo
Verde, Livraria Bertrand, Lisboa, p. 123 - 150).
Desejaríamos analisar e esclarecer, nos próximos
subsídios, se o Arquipélago é de origem vulcânica e se faz parte do continente
africano e investigar a história da nação caboverdeana no mundo e da sua língua
crioula, como nasceram e se propagaram e espalharam pelo mundo os caboverdeanos
e a sua língua crioula. Depois do grande
sucesso do projecto de desenvolvimento económico resultante do privilégio do
monopólio de comércio com a África Ocidental (Subsídio 14), o trabalho da nação
caboverdeana organizado e articulado pela sua língua crioula fez do Brasil uma
grande potência económica, deu novos mundos ao mundo e novas línguas à África,
à América, a ilhas perdidas nos oceanos e à Ásia também, tudo isto ao lado e de
mãos dadas tanto com a nação portuguesa como com a sua grande e muito mal
conhecida diáspora religiosa.
*
Foi já traduzido e publicado com título errado: Pele Negra Máscaras Brancas, 2008,
Salvador da Bahia, EDUFBA,194 p. Para
esta côr, em francês há uma única palavra noir,
ao passo que em português há duas preto e negro. Em inglês black
é a côr e negro, como, em francês nègre não é uma côr e só se aplica a uma
“raça” humana com elevada taxa de melanina dérmica ou black skinned (= com pele de côr preta). Já ficou provado, que não existem raças na
espécie humana. Fanon referia-se à cor
da pele e sabia francês. Referia-se à
côr da pele noire ou preta, não
escreveu nègre (= negro), porque não
se referia a nenhuma raça “raça”. O
tradutor deve ter-se esquecido, ou não sabia, que negro tem sentido pejorativo,
quando se trata de “raça”, mas, no título deste livro, não se trata de “raça”,
é só a côr da pele. Traduttore, traditore, diz-se em italiano, ou tradutor, traidor, em
tradução portuguesa, mas, às vezes, é só incompetência, aqui talvez também
ideologia mal digerida ou preocupação comercial.
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