FOLHEANDO OS MEDIA PORTUGUESES

sábado, 31 de dezembro de 2016


     Não faltam análises a denunciar a má qualidade da nossa comunicação social na actualidade. Na verdade, sobram razões para destratar os media nestes tempos em que o vale tudo serve para disputar o mercado.
     Certo tipo de televisão está a tornar-se um autêntico agente de intoxicação mental. Os canais generalistas inundam-nos com programas recreativos decalcados do mesmo modelo rasca e repetitivo. Anos a fio o fazem. “Entertainers” de rasa cultura, mais palhaços de rua que profissionais de televisão, contudo destoando dos palhaços por não terem graça nenhuma, saturam-nos diariamente em longos horários matutinos e vespertinos com uma mistela de pseudo espectáculo de variedades, concursos e vulgaridades que muitas vezes roçam a ordinarice e a abjecção. Não adianta fazer zapping que o lixo é o mesmo. É evidente que há escapatória para quem dispõe dos canais da TV Cabo ou tem outras opções lúdicas e recreativas. Mas pobres dos velhos reformados e de magros recursos, faixa considerável da população que fica à mercê de tamanho atentado à inteligência e ao bom gosto!
    O mesmo é falar do chamado horário nobre (entre o telejornal e a meia-noite). A chapa é rigorosamente igual entre os três canais generalistas. Não há alternativa. Telenovelas, concursos ou “realities shows”, ou então uma que outra série de ficção, não raro sobre temas em que predomina a violência e a sordidez do comportamento humano, pouco espaço sobrando para programas culturais, educativos e formativos, que deviam, esses sim, justificar a dita nobreza do horário.
     Relativamente aos telejornais emitidos pelos canais em causa, o modo, o estilo e o timbre são rigorosamente iguais. Hoje em dia, quase que se tornaram dispensáveis os telejornais porque normalmente são caixa-de-ressonância das notícias que foram sendo repetidas ao longo do dia nos canais de especialidade informativa (RTP 3, SIC, TVI24 e CMTV). Por isso, a não ser que alguma figura pública seja eventualmente convidada para comentar os conteúdos noticiosos, assistir aos telejornais é um exercício de “déjà vu”. Mas inacreditável é quando a notícia já tratada em dias transactos é apresentada como se dada em primeira mão. Outro incómodo intolerável é o excesso de intervalos, sempre longos, para publicidade, muitas vezes decorridos apenas dois minutos depois de iniciado o serviço. Perante este cenário deprimente, actualmente não vejo os telejornais em directo. Só depois de transmitidos, com recurso ao processo de gravação automática. É a maneira de reduzir o tempo do telejornal a uns escassos 10 ou 15 minutos, alijado da ganga inútil, notícia enjoativamente repetida e publicidade.
     Escusado é falar nos programas em que se discute futebol porque esses deviam suscitar uma insurreição nacional. O objectivo desses programas não é o futebol como desporto e espectáculo recreativo, é explorar o lado javardo e indigno da natureza humana. O futebol, de que sou adepto, não tem culpa dos que dele se aproveitam para fins pouco recomendáveis. Mas valha a verdade dizer que alguns debates televisivos entre políticos pouco diferem em elevação e correcção.
     Seria ocioso, e talvez pouco avisado, ocupar o pouco espaço desta crónica com uma incursão na imprensa escrita. Mas a extrapolação que me proponho nesta crónica não dispensa falar do diário de maior tiragem na nossa imprensa escrita. Há nesse diário uma exploração “ad nauseam” da morbidez, do voyeurismo, da insinuação, do intriguismo, da denúncia, do instinto de abutre, do justicialismo primário, as mais das vezes com recurso a informações que fogem inexplicavelmente ao domínio de quem as devia guardar em segredo, o que é mais grave quando se trata de órgãos da Justiça. Esse jornal enche as suas páginas de criminalidade de toda a sorte, acidentes de viação, casos de pedofilia, violações sexuais, violência doméstica e outros derivados da degenerescência da natureza humana. O objectivo é mais explorar comercialmente o “voyeirismo” e o sensacionalismo do que informar por informar. Por exemplo, que interesse tem saber diariamente que a “Miss Bumbum” andou atrás do Cristiano Ronaldo ou que este tem um caso com esta e aquela? Citar Cristiano Ronaldo é como citar qualquer desses cidadãos ou cidadãs que enchem as páginas finais do jornal em apreço, regra geral pessoas de fraco ou nenhum calibre social e cultural, que estão longe de constituir exemplos de cidadania.
     A técnica do jornal é habilmente congeminada: notícias curtas, doseadas e variadas dentro da temática preferida, no entanto entremeadas com curtos e bons artigos de colunistas de mérito reconhecido e que assim lhe emprestam, talvez acriticamente, uma suposta credibilidade. É um facto que o jornal tem sucesso. Todavia, tal só poderia ser objecto de gratificação e reconhecimento públicos se o seu conteúdo primasse por uma razoável qualidade e não tivesse como principal, se não único, móbil o objectivo puramente comercial, sem olhar a meios para atingir os fins. Mas o modelo do jornal é idêntico ao de outros que pontificam por esse mundo fora onde há liberdade de imprensa. Nada tem de original.
     Não surpreende este comportamento generalizado dos media, entre nós como em quase toda a parte, porque sociologicamente há uma explicação. A comunicação social é o barómetro do nível social, cultural, político e económico de uma sociedade. Perante a realidade que se lhe depara, ela tem duas opções: ou rema contra a maré e tenta contribuir para melhorar o nível cívico e cultural do cidadão leitor ou espectador; ou fornece-lhe precisamente o que ele quer ou do que mais gosta. E dispensa grande trabalho de auscultação prospectiva. No nosso caso, basta olhar para algumas carências cívicas que ainda não conseguimos suprir de todo e em que pontifica um espírito insuficientemente crítico. Reflexo do nosso escasso investimento na educação durante séculos, a situação não é também alheia à influência que a perversa Inquisição exerceu na nossa alma.
     De facto, alguns dos nossos comportamentos, como o intriguismo, a inveja e a denúncia são reminiscências doentias dos efeitos daquela maligna instituição criada pela Igreja Católica quando ela tropeçou no percurso da sua história. É muito disso que alimenta as estratégias para aumentar as boas tiragens ou as audiências, no pressuposto de que competir no mercado explorando o lado nobre do jornalismo não produz bons resultados comerciais.    
     Resta auspiciar tempos novos em que a comunicação social não precise de depender tão largamente da disputa do volume de vendas ou audiências, para assim poder libertar-se e prestar ao público um serviço de real qualidade e utilidade social. O mundo digital está em franca e acelerada expansão e é possível que venha a assistir-se num futuro próximo a uma mudança radical das regras que norteiam a vida humana. Só assim haverá verdade absoluta nas palavras de Hegel quando disse que a leitura dos jornais é a oração matinal do homem moderno. Ora, nos tempos actuais essa oração só pode invocar a presença fatídica de demónios, em vez de ungir os espíritos.
     Bem, todo este fenómeno de libertinagem é indiscutivelmente fruto da liberdade e da concorrência que são filhas dilectas do estado de direito democrático. Mas o argumento de que as rosas têm espinhos não nos pode servir de lenitivo. Porque é pena que a democracia aceite no seu seio anticorpos que atentam contra o seu aperfeiçoamento como sistema político.
     Encontro na imprensa regional um espaço ainda imune à contaminação que assola o sector, não obstante também ela passar por dificuldades de sustentabilidade económica.
     
Tomar, Dezembro de 2016

Adriano Miranda Lima





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