Publicamos a seguir dois textos sobre o mesmo tema – O “Sete” ou o
“Guarda-Cabeça” – abordados de forma diferente, quiçá complementar, como o leitor poderá
verificar. O primeiro é do renomado poeta José
Lopes, bem conhecido de todos nós. O segundo é de Augusto Casimiro, português (Amarante, 1889 – Lisboa,1967) militar
de carreira, poeta e escritor também conhecido pelos cabo-verdianos que se
dedicam à cultura e à literatura do País, político, opositor republicano do
“Estado Novo” sendo por isto exilado para Cabo Verde onde esteve preso de 1933
a 1936. Entre várias obras publicadas tem o «Portugal Crioulo» totalmente
dedicado a Cabo Verde.
A «noite de sete»
(Costumes
populares de Cabo Verde)
Por José Lopes
Deve-se interpretar o
título como significando a noite do sétimo dia.
O assunto é alusivo a
certa prática relacionada com a Medicina
e cuja origem é antiquíssima, – não se podendo averiguar como, quando e onde
começou.
De mais-a-mais nela
entra, ou, pelo menos, entrava no princípio,
preponderante dose de superstição.
Esta era inevitável nos
tempos em que as populações insulares eram ainda então muito atrasadas, tanto
mais que nas mais baixas camadas preponderavam elementos étnicos provenientes
da Guiné.
Afora isso está provado
que, mesmo entre povos civilizados, a Instrução
não influi em absoluto na superstição a ponto de a extirpar.
Os povos germânicos
acreditam nas Ondinas dos Lagos e nas Fadas que habitam as montanhas. O mesmo
acontece em todos os países, donde as inúmeras lendas da Escócia, Irlanda e
Escandinávia, principalmente. Assuntos esses que inspiram sempre os seus bardos
ou poetas.
As tradições gaélicas
são pura poesia popular.
O poeta preferido de
Napoleão I, o Grande, era Ossian – Ora, Napoleão era corso, e a Córsega é terra
de superstições.
Aonde quer que vamos, em
suma, lá iremos encontrar por toda parte a superstição e sua inevitável
influência na imaginação das gentes. E tudo isso nada mais é que a pressuposição
de existir o que não vemos e o ansioso desejo de o descobrir.
Disse que o caso da
chamada «noite de sete» se relaciona com a Medicina em seu sentido específico
de pretender curar. De resto essa insigne Ciência começou pelo Empirismo, e o
próprio Bichat afirmava que trazia caminho errado. Ainda hoje abundam as
práticas empíricas, e é de ter em
consideração que influem nelas as crendices de carácter religioso. As mèzinhas
nunca se fazem sem benzeduras e rezas. O espiritual não pode separar-se do físico.
Os melhores ensalmadores possuem todos um ritual de fórmulas. A palavra mezinha
é mesmo deturpação de Medicina.
O ser humano observou
que muitas crianças recém-nascidas eram atacadas dentro dos primeiros sete ou
oito dias de existência do mal chamado trismo ou trismus, o
tétano infantil. Daí a prática de a família velar o infante durante esses dias críticos, mas principalmente no sétimo.
Sabia-se que o facto se dava amiúde, mas ignorava-se a causa. Só mais tarde se
soube que a origem do mal era microbiana, e ainda muito mais tarde que um
ilustre sábio, Nicolaër, descobrira e separara o terrível micróbio do tétano.
Ora, é sabido pelos
menos ignorantes que o micróbio de Nicolaër é do tipo telúrico (de télus = terra), isto é, que em geral vive no solo
podendo encontrar se no pó vulgar, em excrementos de cavalo, etc., formam-se os
chamados esporas que servem de veículo àquele temível elemento patogénico.
Esses podem abundar mais em certos lugares. Parece, por exemplo, que abundam
mais na Praia que em Mindelo de S. Vicente. Compete aos da especialidade
averiguar se é, ou não, assim. Se é seco o pó em que se aninha o micróbio, com
facilidade pode o vento transportá-lo como faz (por exemplo) ao pólen das
flores.
Alguns insectos podem
também servir de veículo.
Havia o costume (não sei
se ainda hoje existe) de as parteiras curarem às vezes com pó de terra muito
fino o umbigo dos recém-nascidos. O Doutor José António Alves Ferreira Lemos,
distinto e benemérito Médico-cirurgião que outrora prestou notáveis serviços em
Cabo Verde, onde deixou saudosa memória, comentou num relatório que algumas
parteiras empregavam o pó fino que às vezes se forma nos beirais das casas,
chegando a colhê-lo dos casulos de certo insecto grylhida, parecido no formato
com o ichnêrmon, a que a gente do
povo chama, em S. Nicolau, bananinha seca. Esse ou outro pó seria
portador do micróbio de Nicolaër e por
isso causa do tétano de que morriam muitas criancinhas
recém-nascidas.
Como já ficou dito o
morbo manifesta-se dentro dos primeiros oito dias, e daí veio o costume de
velar na sétima noite o menino. Também lhe chamam. ainda hoje guardar a cabeça
(do recém-nascido). Aí fica a explicação da chamada noite de sete.
O costume, verdadeiramente lendário, servia de
pretexto, mesmo no seio de famílias cultas da terra, para uma verdadeira festa
em que até se tocava e dançava pela noite fora, não faltando o famoso líquido a
que o célebre Almirante Vernon deu o nome, derivado do capote de grogran (gorgorão) que habitualmente
usava.
Hoje, certamente, ainda
se fazem tais reuniões em certas casas como
para perpetuar a tradição, mas necessariamente vão-se tornando mais raros os casos de tétano infantil, visto que
a Civilização vai avançando sempre, os
insulares vão-se ilustrando mais e por isso vão banindo certas práticas filhas
da ignorância, mãe da superstição. Hoje qualquer parteira vai à ambulância ou farmácia e mune-se do
necessário prescrito cientificamente para curar o umbigo ao recém-nascido.
Apesar disso muita gente (de todas as classes) continua a acreditar em bruxas e
feiticeiras e sortilégios e outras superstições. Nem a Religião o impede,
porque nas práticas inerentes entram até os objectos sagrados e os santos.
Isto, porém, já pertence a outra ordem de
ideias.
In «Cabo Verde» – Boletim de Propaganda e
Informação – Nº 146 – Novembro de 1961
*****
Guarda-Cabeça
Por Augusto
Casimiro
Outro costume lembra, transformado, um velho
rito tribal africano – o busahama ,
entre os rongas – e decerto, espalhado em toda a África bantu.
Quando o recém-nascido alcança o sétimo dia, família e amigos velam até depois
da meia-noite. No leito, remediado ou pobrinho das parturientes da Brava, a mãe
repousa, com o filhinho ao lado. Cercam-na as amigas. Ali mesmo, e na sala ou
terreiro contíguos, os convidados falam, ou jogam. Pela noite fora servem-se
bebidas, canjas, acepipes, doçuras.
Quando for meia-noite, passou o perigo para o
menino… Ele entrou na vida. O sangue encontrou, no corpinho frágil, seu ritmo
de força. As bruxas ou lobisomens nada poderão contra ele… Nem morte nem mau
fado…
Guarda-cabeça se
chama, na Brava, o amorável costume.
Na casa em festa os avós rejubilam. O pai
anda inquieto de alegria e prosápia. Toda a gente, numa discreta animação,
festeja a hora. Com o filho ao lado, no leito modesto ou pobrinho a mãe sorri.
As raparigas e os moços jogam, com cartas, o Sói-eu.
«Quem tem muito desejo de amar?
E a carta responde por quem a lança e diz
verdade:
– Sói
eu!
«Quem tem um olho preto que está a matar o
mundo?
E uma de olhos pretos matadores, se a carta
vem a jeito, tem de dizer:
– Sói
eu!
Os velhos batem as cartas da sueca.
Um violino chora, os violões embalam…
Ergue-se um canto. Baila-se mansinho.
Lá dentro a Mãe escuta e sorri. Como Nossa
Senhora no presépio de Belém.
In ”Portugal
Crioulo” Págs. 94/95. Augusto Casimiro – Edições Cosmos – Lisboa – 1940
2 comentários:
... e na sala ou terreiro contíguos, os convidados falam, ou jogam. Pela noite fora servem-se bebidas, canjas, acepipes, doçuras."
Sobre "Guarda Cabeça",
o interessante costume mereceu um sketch estr3eiado em 30 de Abril de 1955 em Dakar onde a figura principal foi o cantor Bana. O facto, ùnica vez que o cantor se fez actor, se encontra registado no livro "O Teatro é uma Paixão, a Vida uma Emoção" (Pgs. 110, 118 e 119)
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