Francisco José Tenreiro
(São Tomé, 1921 – Lisboa, 1963) Geógrafo, poeta e ensaísta. Foi aluno brilhante
do distinto geógrafo Orlando Ribeiro quem, de acordo com os seus biógrafos, o
terá estimulado a fazer a tese de doutoramento sobre São Tomé. Tenreiro foi
também docente no antigo Instituto de Ciências Sociais e Política Ultramarina.
Um
dos estudiosos da mestiçagem (portuguesa e africana), para nós, a par de
Gabriel Mariano, Francisco José Tenreiro, constitui uma voz e
uma referência na nossa cultura, para o entendimento de um dos fenómenos mais
interessante e harmonioso da humanidade. Ele próprio filho de um português e de
uma angolana, trabalhadora em São Tomé.
Na
sua escrita poética e literária, Tenreiro aderiu, e bem cedo, ao neo-realismo. «Ilha
de Nome Santo» é a sua principal colectânea de poemas e foi publicada em
Coimbra em 1942. Nela o poeta/ensaísta configura através de versos o respeito por
todas as raças. No poema “Canção do Mestiço”, diz-nos o poeta: “
Mestiço! / nasci do negro e do branco
/ e quem olhar para mim / é como
se olhasse / para
um tabuleiro de
xadrez (...) E tenho
no peito uma
alma grande, / uma alma feita de adição.” E mais adiante exalta a sua mestiçagem,
dizendo: “Mestiço! / Quando
amo a branca
sou branco / quando amo a negra
sou negro / Pois é...”
O artigo
que se segue é de sua autoria, e nele o leitor verificará como o olhar do
geógrafo, do historiador e do antropólogo, se cruzam e se interpelam para uma
explanação rigorosa das origens e dos fundamentos populacionais dos dois
arquipélagos – o de Cabo Verde e o de São Tomé e Príncipe.
Acerca dos arquipélagos crioulos
Por Francisco Tenreiro
De comum o tom moreno, mestiçado, das gentes.
Mas, mais que a tonalidade é um passado cultural que os assemelha sendo abundantes
os traços que, num e outro arquipélago, se repetem não obstante natureza
diversa; o fundo do quadro é em Cabo Verde o ar escalvado das linhas gerais do
relevo que escondem dos olhos a verdura de algum vale por onde corre água; é,
nas ilhas do Golfo da Guiné, com a insignificante excepção de Ano Bom, a
loucura do verde que esmaga e ilude as obras dos homens. Factos que advêm da
posição dos arquipélagos: um, limite meridional das Atlântidas, quase tão
europeu como africano, e outro, enganchado no amplexo do Golfo da Guiné,
nitidamente africano.
No conjunto, as ilhas foram descobertas na
segunda metade do século XV embora as mais meridionais cerca de dez anos mais
tarde. Achadas e povoadas pelo mesmo povo, para lá se transplantaram também
negros da África Ocidental aqueles que em terra firme estavam mais próximos:
guinéus num caso, gente da margem do golfo no outro, como por exemplo gabões.
Só uma ilha, certamente, por mais próxima do
continente, seria já povoada – a Formosa que mais tarde se chamaria de Fernando
Pó. Por isso ou por encontrar-se profundamente engolfada, Fernando Pó
tardiamente mereceu a atenção dos portugueses que, aliás, logo a cederam a
Espanha em troca de facilidades territoriais na América do Sul. Não obstante,
muitos dos traços da estrutura social «fernandina» serem hoje semelhantes à de
São Tomé, na minúcia dos padrões de cultura mostram-se muito diferentes.
O bubi
como o fernandino de Santa Isabel
pouco têm de comum com os «filhos da terra» de São Tomé, na sua generalidade
descendentes dos povoadores brancos e pretos dos séculos XV e XVI. Sem dúvida
que se regista em alguns arquipélagos atlânticos sucessão de elementos sociais
que os aproxima, seja em Cabo Verde ou nas Antilhas ou ainda nas ilhas do Golfo
da Guiné, que reduzem-se a dois: existência de populações crioulas nem sempre
estabilizadas e uma organização de espaço em torno de culturas lucrativas de
maior sucesso num ou noutro lugar consoante as vicissitudes da história e até
os retoques que uma ambiência diferente pôde produzir. Por todas as ilhas a
cana do açúcar, o algodão, o café ou cacau, foram as alavancas propulsoras da
fixação dos homens à terra e que atraindo africanos deram origem a populações
mestiças. Sendo assim compreende-se que se possa falar em arquipélagos crioulos
e se compare, como fez Lyall, as ilhas de Cabo Verde com as Antilhas. Por outro
lado se encontrem, apesar da não existência de populações crioulas, ecos de um
mesmo sistema de organização de espaço em arquipélagos extra-tropicais como os
da Madeira e Açores.
Repare-se, porém, que se está em presença da
generalização «fisionómica» que despreza os processos aculturativos a que as
populações arribaram nas diferentes ilhas. Enquanto que em Cuba, como o
demonstrou Fernando Ortiz, se chegou a um «mosaico cultural» e a algumas formas
de «compromisso» (sincretismo religiosos, por exemplo) em Cabo Verde e em São
Tomé as populações tenderam para a estabilização resultante de assimilação dos
diferentes elementos culturais em jogo.
Há hoje elementos que demonstram como a
expansão portuguesa consistiu essencialmente na transplantação de um estilo de
vida de cerne mediterrâneo para os trópicos. Padrões que se introduzem
integralmente tais como os instrumentos de farinar cereais que se
especializaram em concorrência com o pilão africano, e outros que sofrem os
retoques que a natureza sugere: um tipo de casa de pedra de loja e andar, com
escada exterior, que na ilha de São Tomé passou a ser de madeira e de cobertura
vegetal, se bem que a traça seja sensivelmente a mesma; ou ainda o catolicismo
que em pouco ou nada se modificou no que se refere a sincretismos enquanto a
língua ou cristaliza em torno de um vocabulário ou de expressões arcaicas de
dizer, como em Cabo Verde, ou ganha certo tipo de plasticidade onde não são estranhas
construções africanas e é o caso de São Tomé. Seja como for o arquipélago de
Cabo Verde e as ilhas de São Tomé e Príncipe são «familiares» graças a um
passado de colonização que, por comum, levou à constituição de uma sociedade
crioula peculiar. Sem dúvida que na génese da fixação de europeus e africanos
nestas ilhas desertas, teve um esquema de ocupação de campos à base de culturas
lucrativas.
Mas, que representam hoje estas culturas para
a compreensão do mundo sociológico das ilhas? Em Cabo Verde a estrutura
latifundiária cedo morreu e foi substituída pelo desenvolvimento de culturas de
subsistência à base do milho e do feijão.
Os próprios morgadios ainda tão vivos no
século passado esmaeceram perante o aparecimento de uma classe nova – a dos
mulatos – que por melhor equilibrada veio a sobrepor-se às classes criadas pela
diferenciação latifundiária. Hoje, a cultura do café na ilha do Fogo na passa
de arremedo da estrutura pioneira que, se no século passado, foi escravocrata,
não se mostrou suficientemente forte de forma a subsistir até hoje. Em S. Tomé,
de início, passa-se o mesmo; depois de os engenhos de açúcar em torno dos quais
se organizaram a economia e os contactos culturais entre negros e brancos o que
se viu proliferar, desde o século XVII até meados do século XIX, foram as
pequenas propriedades nativas de subsistência. Algo veio perturbar este destino
comum e original dos dois arquipélagos. De facto, a partir de 1820
introduzem-se em S. Tomé novas plantas: o cafezeiro e o cacaueiro. As condições
climáticas são propícias e novo surto de colono chega àquela ilha que retalha
na terra úbere o mosaico de grandes explorações agrícolas de tipo capitalista
quantas vezes usurpadas às famílias mais ou menos mestiças descendentes dos
primeiros colonizadores brancos e negros. Daí, hoje a estrutura social ser
francamente «pluralista» isto é, verificar-se a existência de grupos humanos
com vida cultural própria; ao contrário, de uma sociedade integrada como é a de
Cabo Verde, S. Tomé mais se assemelha a um mosaico onde europeus, negros
serviçais das roças e «filhos da terra» vivem em conjunto estilos de vida
diferenciados. São os «filhos da terra», aliás, o grupo quantitativamente
superior, que teimam em demonstrar ter valido a pena o esforço português de quinhentos
e seiscentos.
Black
and white make Brown afirmou-o há muitos anos Lyall
querendo ver em Cabo Verde fisionomia comum à das Antilhas. Tem razão Baltasar
Lopes quando nega a Gilberto Freyre, baseado em Lyall, a possibilidade desta
comparação; mas já não teria se, lado a lado, colocasse S. Tomé e aquelas ilhas
do Ocidente Atlântico…
A ilha de Ano Bom povoou-se à sombra de S.
Tomé.
Quem visita o minúsculo e único povoado que
existe verifica que assim é: no seu comportamento; no dialecto que falam, na
actividade a que se dedicam – a pesca – as gentes lembram os pescadores nativos
do Norte da ilha próxima. Pescadores que na aventura do mar ali se
estabeleceram não obstante a frustre ocupação portuguesa. Por toda a parte, no meio
dos ribeiros e dos picos, a influência portuguesa é evidente. Mas a ilha, dada
a sua posição no hemisfério sul e as condições de relevo, recebe menos chuva do
que qualquer das outras e mostrou-se sempre menos capaz para ocupação agrícola.
Foi o mar que trouxe os seus povoadores e só o mar os poderá continuar a
manter.
* * *
De comum, em todas as ilhas,
o tom moreno e mestiçado das gentes em função de convívio, que em muitas
remonta séculos, entre brancos e pretos. De diferente, as estruturas económicas
modernas e sociais que as vicissitudes da história e a saga dos homens
desenvolveram; aspectos que se entrelaçam com a capacidade ou aptidão da
natureza de cada ilha. Por vezes torna-se difícil saber até que ponto a
natureza é responsável pela maior ou menor humanização das paisagens; mas,
sempre e de qualquer forma, representam estas ilhas na sua maioria desertas uma
vitória dos homens sobre a natureza tropical. Traços comuns e traços diferentes
que vêm da natureza que lhes é própria e das civilizações que a elas chegaram.
Sem dúvida que valeria a pena estudá-los e agrupá-los segundo o predomínio de
uns sobre os outros. Ressaltaria então, apesar de certas diferenças de
pormenor, certa unidade de base entre o arquipélago de Cabo Verde e as ilhas de
S. Tomé e Príncipe, resultante da fisionomia de um povo que para umas e outras
levou igual sistema de colonização. Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe foram
ainda, em pleno oceano, as poldras da experiência sociológica que levaram à
radicação dos portugueses na outra «Ilha Grande» – Brasil.
In
“Cabo Verde - Boletim de Propaganda e Informação - Ano XII –Nº 137 de Fev.1961”
1 comentários:
Não conhecia este artigo, que li com interesse.
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