Tive oportunidade, através de um vídeo, de assistir à conferência realizada em S. Vicente sobre o tema da regionalização. Em primeiro lugar, felicito muito sinceramente o Governo por uma iniciativa, que, penso, tenciona replicar em outras ilhas, proporcionando a sua visualização, com recurso às modernas tecnologias, a todos os cidadãos interessados, vivam no país ou fora dele.
O conferencista, Francisco Tavares, fez uma exposição assertiva, fluente e coerente com os dados de que foi munido. Com grande poder de comunicação e visível esforço de empatia, procurou fazer passar a sua mensagem dentro das balizas que lhe foram estabelecidas ou impôs a si próprio. Mas são balizas que não fazem parte do meu jogo, e passo a explicar porquê.
Desde que eu e outros cabo-verdianos, na sua maioria naturais de S. Vicente, nos mobilizámos em torno da temática da regionalização, agimos na convicção segura de que a nossa ilha era a principal vítima do centralismo político e da concentração maciça do aparelho do Estado na ilha de Santiago, designadamente na cidade capital. Vítima pelas razões que fomos tornando públicas e referenciam uma nítida desvalorização social e económica da ilha, impedida, por mero critério político, de continuar a ser um importante pilar do desenvolvimento nacional. Sublinho em particular esta última condição, já que para nós o aproveitamento judicioso das potencialidades da ilha não se destina a satisfazer egos ou interesses pessoais dos que nela vivem, mas a servir Cabo Verde e os cabo-verdianos de todas as ilhas. Tal como foi no passado e que a memória dos que a não perderam regista com apreço e gratidão.
Contudo, depois de ouvir a exposição do conferencista, concluí, defraudado, que eu e os meus companheiros de reflexão andámos o tempo todo equivocados, porque afinal de contas S. Vicente enfileira com Santiago Sul, Sal e Boavista no rol das mais privilegiadas regiões do país, sendo a principal vítima do centralismo, espante-se, Santiago Norte. Antes de mais, é impossível não confessar que me desiludiu a conferência. Não pela qualidade intelectual do conferencista mas pelo conteúdo do que foi exposto. Estava à espera de uma abordagem com objectividade científica ao tema concreto da regionalização, focalizada na análise intrínseca do modelo perfilhado pelo governo, na explicitação das suas virtudes em detrimento de outras alternativas, nos custos da sua implementação e na forma de os compensar com outras medidas reformistas que importa empreender, focalizada também na solução para a coabitação política e institucional dos poderes regional e municipal no mesmo escasso território das ilhas uni-municipais, com especial acuidade em algumas, bem como na forma como ilhas exíguas, de baixa demografia e destituídas de massa crítica podem colher benefícios institucionais do poder regional, progredir e transformar a sua fisionomia social, etc., etc. Em vez disso, e ao longo de mais de 1 hora, o conferencista explicou com exaustão, mas com eficácia, apenas aquilo que toda a gente já sabe há muito e forçou o governo a aprovar a regionalização do país: que há assimetrias regionais e é preciso corrigi-las com medidas de descentralização de competências administrativas e transferências sociais. Para isso, o conferencista apresentou e analisou dados estatísticos cuidadosamente organizados sobre demografia, desemprego, PIB e outros, elementos genericamente conhecidos, mas que, na exposição, me pareceram não reflectir toda a realidade objectiva do país.
A estatística permite a leitura e a interpretação da realidade, mas o seu valor científico varia com o rigor, a isenção e a objectividade do uso que lhe é dado. Muitas vezes, para fins políticos, de propaganda ou jornalísticos, os seus dados são manipulados, por omissão ou realce do que for mais conveniente, por truncagem ou descontextualização deste ou daquele dado ou valor. Portanto, pode induzir conclusões para manipular ou mistificar a realidade e também produzir a mitificação, ou seja, o esvaziamento do conteúdo dos objectos transformando-os em formas vazias, conforme explica Roland Barthes. Não tenciono pôr em causa o rigor intelectual do conferencista, sequer a linearidade do seu raciocínio atinente aos factos da sua exposição. Mas não concordo com algumas extrapolações que ele faz sobre a realidade, como se verá a seguir.
Ao interpretar as taxas de desemprego, concluiu, para meu espanto, que a Brava tem a menor taxa do país e, em contraponto, Santiago Sul a maior. Se estes dois indicadores servem para apontar quem deve beneficiar do esforço de solidariedade interterritorial, depreende-se que, na linha do raciocínio do conferencista, em primeiro lugar estará Santiago Sul, a parcela do território nacional que, pelo contrário, tem sido a principal beneficiária do investimento nacional e o centro das maiores prioridades, detendo a primazia, entre outras, de acolher a quase totalidade do aparelho do Estado. Tenho dúvidas sobre a verdade da taxa imputada a Santiago Sul, quando as taxas mais gravosas de desemprego o próprio governo as tem identificado em S. Vicente. Mas vamos supor que essa taxa é verdadeira. Se Santiago Sul/Praia apresenta semelhantes valores, é sinal de que atrai população, extravasando os seus próprios limites naturais de acomodação demográfica. Tal significa que, em virtude dos privilégios que a política centralista e concentracionária conferiu ao longo do tempo a essa região do país, ela comporta em si uma superior oferta de trabalho, bastante acima da média nacional. Daí o efeito centrípeto produzido sobre o território da periferia, inclusivamente dentro da própria ilha (Santiago Norte), sugando recursos humanos e reduzindo consideravelmente massa crítica a outras parcelas. Desta forma, é natural que haja continuamente filas de espera nos centros de emprego de Santiago Sul, já que, por mais postos de trabalho que a região gere, nunca os haverá para todos os que a demandam. Assim, temos de convir que a interpretação da realidade é aqui deturpada, viciada, segmentada. Em vez de pôr em evidência todos os indicadores favoráveis a Santiago Sul e que lhe conferem privilégio sobre as demais regiões do país, o conferencista preferiu um raciocínio que induz a conclusão de que, tendo uma taxa de desemprego a mais elevada, aquela região do país é a principal vítima das políticas centralistas, e deste modo requerendo medidas correctivas à custa de outras regiões supostamente privilegiadas. Não o verbalizou de forma explícita, mas deixou-o nas entrelinhas. Perante este absurdo, ou corrosiva ironia, questionei-me sobre o rigor intelectual minimamente exigível a quem, sem pestanejar, confunde desta maneira a opinião pública.
Vejamos agora o caso da Brava, citada como detentora da mais baixa taxa de desemprego em Cabo Verde. Não sei se sim ou não, mas tudo leva a crer que, para o conferencista, e baseando-me no propósito que o levou a esta extrapolação, esta ilha estará então entre as mais privilegiadas do país e, portanto, relegável a uma ínfima prioridade na política de correcção de assimetrias. Ora, a Brava pode ter uma taxa baixa de desemprego em resultado da sua escassa população e de possuir uma economia de escala equilibrada e contida na sua restrita realidade interna, já que os postos de trabalho disponíveis encaixam com as necessidades da sua população. No entanto, como se sabe, a ilha padece de graves problemas relacionados com os transportes marítimos, afectando os seus abastecimentos internos, e as infra-estruturas que possui estão dimensionadas à sua pequenez territorial e demográfica. Assim, parece-me que não tem qualquer relevância científica extrapolar sobre a baixa taxa de desemprego na Brava.
O Outro indicador analisado foi o da taxa do crescimento demográfico desde 1940, com intenção de a considerar por si só sinalizadora de progresso e desenvolvimento, deslocada de tudo o resto. E nesse sentido o conferencista dividiu o país desta maneira: de um lado, as ilhas que têm crescido demograficamente porque atraem mão-de-obra, logo, consequência de terem progredido economicamente (ilhas atractivas): Santiago Sul, S. Vicente, Sal e Boa Vista. De outro lado, as que têm perdido população: S. Antão, S. Nicolau, Fogo, Maio, Brava (ilhas repulsivas), quadro apontado como indicador de subdesenvolvimento. Considero simplista e tendencioso o quadro apresentado, na medida em que há uma descontextualização das circunstâncias sociais que estão subjacentes ou determinaram o fenómeno demográfico analisado. Por exemplo, concluir que o crescimento populacional de S. Vicente tem uma relação causal directa com um desenvolvimento que se lhe injectou, não colhe de forma alguma. A população da ilha aumentou à custa da migração da ilha vizinha, porque era o destino mais próximo, como sempre o fora; a transfusão demográfica de S. Antão para S. Vicente é um facto incontestável mas não significa necessariamente o progresso da segunda ilha. As estatísticas têm denunciado altas taxas de desemprego em S. Vicente, porque a ilha regista precisamente um superavit migratório de populações de S. Antão, não obstante ter o seu desenvolvimento estagnado e em recessão devido a escassez de investimento estatal, incapaz, por isso, de garantir emprego satisfatório aos que a demandam. E releve-se que só recorre a Vicente a mão-de-obra menos qualificada, oferecida por gente pobre, porque a outra, de pessoal escolarizado e quadros técnicos, tem como destinatária preferencial Santiago Sul, onde é mais provável o emprego, as mais das vezes à sombra protectora do Estado.
Fico-me apenas por estes dois indicadores, mas oportunamente, numa próxima intervenção, poderei tecer outras mais considerações porque este tema oferece pano para muita manga. Para já, fique explícita a minha opinião, salvo outra melhor avalizada, de que a exposição do conferencista não atacou a substância concreta do problema da regionalização, como atrás referi. Abordou o que está a montante, ou seja, o quadro de razões que determina a criação de regiões administrativas, que já conhecemos bem e de longa data. E mesmo aí cometeu o pecado de passar ao lado, não creio que inadvertidamente, daquilo que é a mega causa das assimetrias regionais e das desigualdades no país: o Estado centralizado e concentrado na Praia, originando uma capital macrocéfala que absorve o resto do país funcionando numa lógica de autofagismo sobre o organismo nacional. Chega a ser irónico que Santiago Norte seja apontado como vítima do centralismo quando pertence à mesma ilha que, no seu conjunto, com as estruturas aparelho do Estado concentrado que integra e com os nove municípios criados artificialmente no seu território, absorve cerca de 80% do OGE. Está, pois, em causa a gestão enviesada e à margem dos princípios da racionalidade em que incorreu a política do Estado. Também merece reparo que não se realce que as ilhas do Sal e da Boavista cresceram graças ao empreendedorismo privado e não à custa do orçamento do Estado, como aconteceu com Santiago. Ocorre lembrar que no passado também a ilha de S. Vicente se tornou no que foi por mor do empreendedorismo privado e de dinâmicas sociais próprias desencadeadas na ilha.
Ansiamos por que a temática da regionalização seja abordada e explicada de uma forma que não denuncie receio de ir ao cerne do problema: desconstruir o Estado central para se poder edificar um novo Estado. Até agora, nenhum conferencista pôs verdadeiramente o dedo na ferida, não esclarecendo convenientemente a nação, antes deixando-a interrogativa sobre muitas questões de real pertinência.
Tenciono voltar a este tema.
Adriano Miranda Lima
1 comentários:
Excelente análise. É preciso mais cuidado na análise dos dados
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