Onésimo
Teotónio Almeida
in “Jornal de Letras nº 1242 (Maio de
2018)
Ser cronista de um evento em que se é
participante não é um acto curial nos códigos jornalísticos, a não ser num
registo diarístico, que não é o caso. Por isso faço questão de abrir estas
linhas deixando claro: este meu usar do chapéu de jornalista acontece apenas em
resposta a um pedido específico de José Carlos de Vasconcelos. Por isso teclo
em contra-relógio, quase na hora do fecho deste nº do JL, um apressado relato
do que foi a bela festa do Dia da Língua Portuguesa, evento anual ocorrido este
ano nos jardins das Nações Unidas, em Nova Iorque. Um programa rico, variado,
mas longo para ser reproduzido em pormenor. Sintetizarei: a parte da manhã
abriu com uma intervenção do presidente do Instituto Camões, Luís Faro Ramos,
mais as actuações em série de alunos de oito escolas portuguesas dos tri-states (Estados de New York, Connecticut
e New Jersey) – apresentações diversas, desde a recitação de poemas de autores
lusófonos (Jorge Barbosa, João Cabral de Melo e Neto, A. Ramos Rosa e Alda
espírito Santo) a breves interpretações teatrais e testemunhos sobre as razões
de estudar português. Seguiram-se contos tradicionais dos países da CPLP, por
Ana Sofia Paiva.
O programa da tarde abriu com uma actuação da
banda portuguesa Octa Push, seguida de um conjunto de intervenções
institucionais de: Mauro Vieira, representante permanente do Brasil junto das
Nações Unidas; Teresa Ribeiro, secretária de Estado dos Negócios Estrangeiros e
Cooperação de Portugal; Maria do Carmo Silveira, a santomense
secretária-executiva da CPLP. A culminar, a alocução de António Guterres,
secretário-geral das Nações Unidas, que acabado de chegar da Europa fez questão
de aparecer. Acentuou o carácter multi-étnico, multi-cultural e multi-religioso
do espaço lusófono, apontando a convivialidade reinante como exemplo para
outras parcelas do globo. E sublinhou a importância da CPLP como ponte entre
essa diversidade que nos une e o resto do mundo. Esta presença, pela primeira
vez, do português nas Nações Unidas pretendeu frisar o multilinguismo que
aquela instituição personifica contra o mundo uniformizado.
Houve ainda uma evocação, feita pela
escritora cabo-verdiana Vera Duarte, de
José Saramago, no 20º aniversário de atribuição do Nobel. E veio depois uma
mesa-redonda (sem mesa) sobre a língua portuguesa, com o Ricardo Araújo Pereira
(RAP) e comigo, moderada pela brasileira Mônica Grayley. RAP, com o seu
brilhante humor, brincou com algumas facetas da língua portuguesa inexistentes
noutras línguas, como por exemplo a diferença entre ser e estar. “Estás bonita
não é a mesma coisa de És bonita – pois isso dá uma confiança que não estou
preparado para conceder”, disse, com o seu mais sisudo ar irónico. Impossível
resumir as divertidas tiradas com que nos brindou. Várias delas incidiram sobre
o abuso dos termos e expressões inglesas pelos media (gozou com os que preferem dizer mídia à inglesa). Referiu, por exemplo, o brunch, refeição de que diz emergir todas as vezes sem saber se
comeu de mais para um pequeno almoço ou se ficou com fome depois de um almoço;
e no qual se consomem combinações de alimentos que deviam ser ilegais, como a
pescada com Camembert.
Uma série de outras piadas incidiu sobre a
cultura portuguesa e a comida (receio citar mal pois não tomei apontamentos):
sobre a moderna culinária portuguesa confessou que as descrições na ementa são
muito melhores do que a própria comida. “Eu por vezes sinto que não tenho
habilitações literárias para comer aqueles pratos.” – disse ele, a provocar
fartas gargalhadas na assistência. E no palco, porque eu ri também de boca
rasgada, como um pobre – o Ricardo chamou a atenção para o modo como os ricos
riem de modo controlado e boca quase fechada. Abro um parêntesis para registar
a tremenda popularidade de RAP, o que não é surpresa nem novidade. A razão
deste meu registo tem a ver com o facto de ele ter sido assaltado pela
pequenada das escolas, o que significa que também o conhecem, pois vêem-no na
televisão portuguesa.
Pela minha parte, contei sobretudo histórias
reais da minha colecção sobre a língua portuguesa no mundo lusófono, incluindo
o luso-americano. Num registo sério, porém, fiz questão de acentuar a diferença
entre o que era estar ali naquele espaço cheio de gente a falar português e a
lembrança de, em 1970, na minha primeira visita aos EUA, um dia, em conversa
com alguém no passeio de uma rua de Fall River, Massachusetts, ser aconselhado
pelo meu interlocutor a falar mais baixinho para que quem passasse por nós não
se apercebesse de que éramos portugueses. Fiquei menente, como se diz em S. Miguel, minha ilha natal, onde se fala
com um sotaque muito diferente da norma portuguesa.
Na mesma cidade, dois anos mais tarde, quando
decidi ficar-me pelos EUA a estudar, um advogado luso-americano de nome Freitas
avisou-me: ”Com um sobrenome terminado em vogal, nunca poderás ir longe neste
país.” Se esse senhor, filho de portugueses de nome Freitas (portanto terminado
em s, o que o terá ajudado a convencer-se de escapar à sentença de morte de um
sobrenome terminado em vogal), fosse hoje vivo, eu bem gostaria de lhe
perguntar se sabia como se escreve Obama. Ao ver ali a garotada livre e divertida,
ouvi-la expressar-se gostosamente num bonito português, era deveras
reconfortante. Por isso lembrei-me aos jovens presentes: ”Eram outros os tempos
e ainda bem que vocês hoje, habitantes desta América incomparavelmente mais
aberta a outras línguas do que a que conheci há quase meio século, têm
oportunidade de se expressar na língua que quiserem.”
Fiz questão de contar estórias reais tocando os
vários espaços lusófonos. A propósito, lembrei a frase de Mia Couto
parafraseando e alterando a estafada citação de Pessoa/Bernardo Soares – “a
minha pátria é a língua portuguesa”, o que me serviu para lembrar que cada país
lusófono tem a sua e, dentro deles, cada região usa natural e legitimamente o
seu sotaque (“o sotaque é a cor da minha língua” – escreveu o escritor
luso-americano José Francisco Costa, autor do livro Estórias do Tempo, que fui apresentar em Hudson, Massachusetts, no
dia seguinte). Contei, por exemplo, a do Francisco garoto de quatro anos,
sobrinho-neto do falecido escritor micaelense Daniel de Sá. Todo contente, foi
dizer à avó: “Vovó, estou a aprender brasileiro. Já sei uma palavra: Você quer
dizer tu.” Outra foi a do casal emigrante português no Brasil. A mulher chegou
primeiro, e só passados três anos se lhe juntou o marido. No final do primeiro
dia de contactos fora de casa, ele chegou a casa desesperado e queixou-se: “Não
entendo nada do falar destes brasileiros!” Então a mulher consolou-o: ”Ah! ‘Cê
tá-se queixando e chegou àgora?! Hàvia di ter vindo como eu há dois anos p’ra
vê com’ é que eles fàlavam!”
Mas basta que o espaço é curto, restando apenas
acrescentar que a festa terminou com a banda Choro Livre e a peça By Heart, de Tiago Rodrigues. Durante o
evento esteve aberta uma mini-feira do livro. Fiquei – ficámos, eu e muitos dos
presentes com quem conversei, incluindo os responsáveis Francisco Duarte Lopes,
embaixador de Portugal junto das Nações Unidas, e Pedro Oliveira, cônsul em
Newark – convencido de aquela convivência, entre jovens portugueses e
luso-americanos das mais variadas escolas ter sido um momento de robusta
alegria e de reforço da ideia de que falar português é giro e útil (cito
adjectivos ouvidos aos alunos). Isso ajuda-os a crescerem falando português
descomplexadamente. Mas senti até que os professores que lá estavam reforçaram
alianças e estímulos. Respirava-se satisfação por todos os lados e tenho isso
confirmado nos registos de rostos que fixei em fotos.
Uma curta nota final: o evento teve lugar no
relvado adjacente ao edifício das Nações Unidas. Ao que parece, é proibido
circular sobre a relva. Perante a estranheza de um circunstante ao
interrogar-se sobre a excepção, um segurança comentou: ”Pois! O
secretário-geral é português…
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